“À
sombra do mundo errado, murmuraste um protesto tímido”. É
isso só. A pessoa sem um pequeno grande verso drummondiano em que se encostar para tomar um fôlego, essa pessoa
perde o bonde, o equilíbrio, a frágil noção de limite e uma boa banda do juízo,
pode apostar. Não se mate, Carlos... Ah, não te matem... Não te matem nunca,
celeste amigo traqueostômico: minha eterna musa-inspiração, ar de tule, balão
anil de respirar... Outro jovem brutalmente assassinado, circunspecto Carlos,
outro crime medonho, massacre assinado por gente muito da sabida, especialista
em trucidar e ficar tudo por conta do bode, meu poeta conhece a figurinha
tantas vezes repetida, desde que o mundo velho sem porteira é o velho mundo. Essa
raça LGBT é um problema sério encravado no pelo da sociedade, cara, é preá
fêmea, parceiro, essa raça prolifera feito rato, o negócio é torar os bigodes e
as patas, cortar o aleijão pela raiz, ou será que pretendem assumir de vez as rédeas do
planeta tornando-se de repente a imensa, etérea bolota cor-de-rosa flutuando no espaço sideral, meu camarada? Cabe
aos ‘machos alfa adultos brancos
sempre no comando’ a espinhosa tarefa do providencial saneamento, a
dedetização: acabar com a praga e desinfetar ligeiro o ambiente: ghostbusters!! A debilidade mental da humanidade alcança raias bestiais, o êxtase da aberração. Deixe estar: ao homem de bem o homem de bem ainda
vai agradecer tanto, questão de tempo e do devido reconhecimento.
Depois da consulta, anteontem, umas dez e meia mais ou
menos, apeei as ancas no Lagoa Shopping, aquele cappuccino da hora, o de turbinar o coração e as ideias, a senhora
me entende. Com dez minutos de conversa fiada mais a moça do quiosque, entrou
um rapaz, deve trabalhar num andar ali de cima, um charme, uma simpatia o
menino, madame. Atrasou-se para o serviço, decerto, porque cumprimentou o povo
de todas as lojas, bora resumir: a mais generosa lançadeira de bom-dia que já vi é esse menino, cara. O
menino deixou um rastro de luz, um perfume de alegria, uma coisa
impressionante. O menino passou por mim de dente no quarador, sabe aquele
sorriso abrupto, adventício, o de alvejar o encardido da franja da manhã mais
esfumada? Assim. "Estás nu na areia, dorme, meu filho", dorme pesado no colinho ninho de Maria, sussurrei, lembrada da dor na carne do poema. Na falta do que fazer, fiquei matutando uma montanha de
besteira. Quantos amigos o guri tem naquele lugar? Quantos desfrutaram daquela
energia bacana, quantos gentilmente lhe acenaram, imaginando que poderiam lhe
querer algum bem legítimo, se ele não fosse tão irremediavelmente boiola?
Quantos fingiram direitinho que ele é um indivíduo normal, igualzinho a nós,
não é verdade? Quantos acharam que o menino vem pedindo uma robusta camada de
cacete, que alguém ainda lhe acerta a tampa, a senhora não enxerga como ele
desrespeita, provoca, ofende a família brasileira, nojento dando tanta pinta? Quantos
visualizaram seu corpo esfolado, os rubros pedaços sangrando, quantos
arquitetaram um plano perfeito naquele instante, aproveitando aquela mesmíssima
espada pairando reluzente sobre a sua cabeça de vento? Quantos dariam cabo dele
e da sua maldita corja esvoaçante, largando nas mãos de Deus a tal adaga manchada da barbárie?
É tão elementar, que a galera perversa não compreende, coitada: plante uma bananeira, transmute-se, vire do avesso, viva apenas uma semana uma vida que não
é a sua, sendo quem você não é, para ficar melhor para o capricho do seu
vizinho temente, sob pena de deceparem-lhe os culhões para dar para o gato, aí depois a
gente troca uns preconceitos. Pimenta no rabo alheio é refresco de atemoia. Bato pa tu pa tu bater pa tua patota, palhaço. Vá
capinar um lote na cadeia. Nelson Rodrigues dizia que o pior da bofetada é o
som. Uma porrada muda não humilha ninguém, acaba em pizza, algoz e vítima em
festiva confraternização. Façamos um barulho infame, ensurdecedor, molecada.