Sabe quando finda o dia
E uma lua se anuncia
Numa noite muito calma,
De estreitas ruas vazias,
Uma noite prateada,
Muito clara, muito fria,
Que te prende na calçada,
Mirando a água do mar?
Essa noite contagia
Tua existência sombria,
Teu corpo paralisado,
Completamente tomado,
Estremece enluarado
E é farol iluminado,
Aceso, pronto pra amar.
É meio assim a folia
Que ele me faz
Com o olhar.
(publicado em Poetas em Rebuliço, pg 12)
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segunda-feira, 27 de maio de 2013
domingo, 26 de maio de 2013
A ca(u)sa do poema
Minha senhora, acho uma doidice de minha parte, vir agora a público, digo logo, para fins de divulgação comprovadamente descabida, despropositada com pedigree, na cara dura do nó da madeira, uma doidice dessa o sujeito de juízo não espalha, não cochicha na outiva da própria sombra, a sujeita pensa que a superexposição ainda é pouca, abre o fole justamente aqui, no cândido, estreito basculante virtual entreaberto para os olhinhos afoitos do mundo, fico meio ressabiada, sabe como são os olhinhos afoitos do mundo, ‘fuchique’ e você: sem fronteiras, rarará, cada piscadela uma sentença de absolvição ou de morte, cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça!, rarará, o bagulho é doido, você é doida demais, doida, muito doida, você é doida demais, deveras. O espaço é escasso, a lauda é uma treliça, uma frestinha de nada esse humílimo bloguinho de retalhos de chita da mais fajuta, coitadinho do meu caderninho de notas falsas, rarará, entretantomente, a repercussão ressoa, o alcance, vou falar uma coisa séria, minha senhora, o alcance do blog é interestelar, são as constelações luzindo no rabo da gata, o blog desembestado: alerta, avante e para o alto!, além do alcance, o fuxico do ‘fuchique’ desalinha o horizonte, escancarado, a marreta a mil, demolindo as muralhas do cordato, do sensato, do coerente, do complacente, do conveniente, quem diabos liga!, o ‘fuchique’ vem que vem que vem com tudo, desarvorado, transpondo a barreira do sol e do som, o fuchique é o cara, minha cara, ultrapassa os limites do intangível, do insondável, do inimaginável, o meu gracioso rebento é um estilista, traçando e tecendo espalhafatoso bordado, confeccionando panos e panos de costurar manguinhas de botar para fora, que permanente, peremptoriamente, assim seja.
Houve um tempo aí, faz tempo, um tempo de pardais e verde nos quintais, rarará, um tempo besta em que, somente para desenfastiar o espírito errante entediado, eu adoeci do cabeção, essa minha predisposição a bater pino vem de muito longe, remonta a remotíssimas quimeras, sou meio pancada desde sempre, pois não é que sem ver de quê, cismei do cocuruto de fazer poesia? Paranóia, neurastenia, uma psicopatologia grave, não sei que bicho-grilo me mordeu, quando dei fé era a pena labutando, danei-me a rascunhar poesia a mais de metro, rarará, decerto uma psicografia sofrível, das piores, o desencarnado escrevendo ruim como o capeta, a febre do rato, eu ali, anotando, anotando, folhas soltas, avulsas, papel de embrulho, guardanapo, eu ali, concentrada, com a corda toda, virada no trem, me sentindo o bala, era o cabra assoprando e eu registrando, uma doidice. Um belo dia, me lembro como se fora anteontem, e faz uma data, meu camarada... me lembro de que decidi digitar minha pirita, juntei meus arremedos de batatinha quando nasce, rarará, tudo numa pasta intitulada ‘ouro de tolo’, a senhora acredita? Até publiquei umas coisinhas menos fraquinhas, isso em Petrolina, numa coletânea de poética ribeirinha contemporânea do eixo Petrolina - Juazeiro, um livro bem bacana chamado Poetas em Rebuliço, Poetas em Rebuliço é o livro das pedras raras do Velho Chico... e das minhas chulas bijuterias... Obviululantemente, uma ideia assim, tão disparatada, não foi minha, nem poderia – um doido precisa é de outro na porta – imagina se esse caramujo gordo e agorafóbico, nunca de núncares, jamais, em momento algum, inventaria de inventar de se embrenhar num embaraço dessa envergadura, rarará – sobressalto, ansiedade, uma vergonha do cão e um profundo cansaço. Aconteceu porque tinha de ser, porque tudo passa, passou, a correnteza do rio carregou, gostei de preservar apenas o doce esquecimento. Minha inútil Poesia Reunida perdeu-se em seguida, sem possibilidade de resgate; a dois passos de abraçar a morte, antes do penúltimo suspiro, meu computador cuidou de deglutir voraz cada estrofe, cada linha, todas as débeis palavras. Arrotou, saciado, faleceu depois, gosto mesmo é de preservar o doce esquecimento.
Se eu fosse poeta, o passeio matinal deste domingo absurdo – um domingo absurdo – se eu fosse poeta, bem que, pelo meu gosto, este domingo absurdo de beleza, o domingo está um descalabro de beleza!, se eu fosse poeta, o domingo resultava em fina massa de pão-palavra entre meus dedos entrevados, mãos entrevadas, porém vigorosas, dadivosas de amassar massa-palavra, vislumbrei um tonel violeta transbordando uvas frescas intumescidas, eclodindo polpas sob meus pés melados, ávidos de pisar a palavra-fruta, palavra-fruta rompendo roxa, lasciva, sangrando suculenta, meu movimento ritmado de macerar os cachos da palavra, calosos pés encarnados, encardidos da palavra-fruta, eu dançando uma dança alegre sobre a papa grená da palavra-fruta, o pão-palavra crescendo no forno à lenha... Pelo meu gosto, recolhia o sumo, a garapa, o espesso suco da palavra, pelo meu gosto era encher os copinhos de requeijão e de geleia, fatiar as rimas tenras, fofíssimas, ainda quentes, pelo prazer de atravessar a rua e convidar o irmão de caminhada sob o céu de pra que tanto azul, irmão de desilusão e covardia, quem não desatinou, atire a primeira, vá!, irmão cujos nome e sofrimento desconheço, mas acolho inteira a solidão, o fardo de tanta angústia, insisto, irmão, sinto-me tão frágil e forte, farta e solidária, se me restasse um breve sonho de poeta, ousaria convidá-lo a partilhar comigo a pobre e rica refeição de poesia: uma quadrinha, uma quadrilha, umas pequenas rimas esgarçadas, um soneto, uma redondilha, uma nova velha cantiga de ninar ou de despertar para a vida contente de continuar, vida caótica, vida concreta dentro deste domingo acintosamente deslumbrante, fascinante, estonteante - um domingo absurdo de beleza, um susto imenso, uma doidice! – vida em tudo, vida, apesar de tudo; vida, anos-luz maior que os contraversos de tudo.
Houve um tempo aí, faz tempo, um tempo de pardais e verde nos quintais, rarará, um tempo besta em que, somente para desenfastiar o espírito errante entediado, eu adoeci do cabeção, essa minha predisposição a bater pino vem de muito longe, remonta a remotíssimas quimeras, sou meio pancada desde sempre, pois não é que sem ver de quê, cismei do cocuruto de fazer poesia? Paranóia, neurastenia, uma psicopatologia grave, não sei que bicho-grilo me mordeu, quando dei fé era a pena labutando, danei-me a rascunhar poesia a mais de metro, rarará, decerto uma psicografia sofrível, das piores, o desencarnado escrevendo ruim como o capeta, a febre do rato, eu ali, anotando, anotando, folhas soltas, avulsas, papel de embrulho, guardanapo, eu ali, concentrada, com a corda toda, virada no trem, me sentindo o bala, era o cabra assoprando e eu registrando, uma doidice. Um belo dia, me lembro como se fora anteontem, e faz uma data, meu camarada... me lembro de que decidi digitar minha pirita, juntei meus arremedos de batatinha quando nasce, rarará, tudo numa pasta intitulada ‘ouro de tolo’, a senhora acredita? Até publiquei umas coisinhas menos fraquinhas, isso em Petrolina, numa coletânea de poética ribeirinha contemporânea do eixo Petrolina - Juazeiro, um livro bem bacana chamado Poetas em Rebuliço, Poetas em Rebuliço é o livro das pedras raras do Velho Chico... e das minhas chulas bijuterias... Obviululantemente, uma ideia assim, tão disparatada, não foi minha, nem poderia – um doido precisa é de outro na porta – imagina se esse caramujo gordo e agorafóbico, nunca de núncares, jamais, em momento algum, inventaria de inventar de se embrenhar num embaraço dessa envergadura, rarará – sobressalto, ansiedade, uma vergonha do cão e um profundo cansaço. Aconteceu porque tinha de ser, porque tudo passa, passou, a correnteza do rio carregou, gostei de preservar apenas o doce esquecimento. Minha inútil Poesia Reunida perdeu-se em seguida, sem possibilidade de resgate; a dois passos de abraçar a morte, antes do penúltimo suspiro, meu computador cuidou de deglutir voraz cada estrofe, cada linha, todas as débeis palavras. Arrotou, saciado, faleceu depois, gosto mesmo é de preservar o doce esquecimento.
Se eu fosse poeta, o passeio matinal deste domingo absurdo – um domingo absurdo – se eu fosse poeta, bem que, pelo meu gosto, este domingo absurdo de beleza, o domingo está um descalabro de beleza!, se eu fosse poeta, o domingo resultava em fina massa de pão-palavra entre meus dedos entrevados, mãos entrevadas, porém vigorosas, dadivosas de amassar massa-palavra, vislumbrei um tonel violeta transbordando uvas frescas intumescidas, eclodindo polpas sob meus pés melados, ávidos de pisar a palavra-fruta, palavra-fruta rompendo roxa, lasciva, sangrando suculenta, meu movimento ritmado de macerar os cachos da palavra, calosos pés encarnados, encardidos da palavra-fruta, eu dançando uma dança alegre sobre a papa grená da palavra-fruta, o pão-palavra crescendo no forno à lenha... Pelo meu gosto, recolhia o sumo, a garapa, o espesso suco da palavra, pelo meu gosto era encher os copinhos de requeijão e de geleia, fatiar as rimas tenras, fofíssimas, ainda quentes, pelo prazer de atravessar a rua e convidar o irmão de caminhada sob o céu de pra que tanto azul, irmão de desilusão e covardia, quem não desatinou, atire a primeira, vá!, irmão cujos nome e sofrimento desconheço, mas acolho inteira a solidão, o fardo de tanta angústia, insisto, irmão, sinto-me tão frágil e forte, farta e solidária, se me restasse um breve sonho de poeta, ousaria convidá-lo a partilhar comigo a pobre e rica refeição de poesia: uma quadrinha, uma quadrilha, umas pequenas rimas esgarçadas, um soneto, uma redondilha, uma nova velha cantiga de ninar ou de despertar para a vida contente de continuar, vida caótica, vida concreta dentro deste domingo acintosamente deslumbrante, fascinante, estonteante - um domingo absurdo de beleza, um susto imenso, uma doidice! – vida em tudo, vida, apesar de tudo; vida, anos-luz maior que os contraversos de tudo.
sábado, 25 de maio de 2013
Sedução
A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.
(Adélia Prado)
segunda-feira, 20 de maio de 2013
Estio
Aos ingênuos e
inapelavelmente ignorantes, aos burrinhos de presépio - os de coração bobo, coração-bola, coração-balão
inadvertido, os cornos mansinhos, os subservientes de dar dó, tadinhos... - aos
ingênuos e inapelavelmente ignorantes, deixo o legado, a maior herança: uma
eternidade de saúde, paz, incontáveis alegrias
e a minha incondicional, preciosíssima amizade. Amizade é diamante. Os
altruístas e benevolentes de fé, os conciliadores e condescendentes, os seres
fluidos e diáfanos, os positivíssimos, os acolhedores, os babacas de plantão,
os caramelados de enfarar o bolo, os titulares da primeira divisão dos afetos
desgovernados e sem ferrolho, sobretudo os doces bárbaros resilientes, os
resilientes devidamente certificados, dando a volta por cima, cabendo em todas
as molduras do mundo que sobrevive de mudança - resiliência, aliás, tinha de
ter daquela em pó, encapsulada, eu acho, resiliência injetável, emplastro de
resiliência, unguento de resiliência, chá de resiliência, elixir de resiliência
para o sujeito consumir diuturnamente, gota a gota, feito um floral de Bach,
impensável que um cientista jamais tenha cogitado uma coisa assim tão
formidável... Os simpáticos empáticos, os ligados na parada de sucesso do
fracasso contíguo, quem sabe proliferando no pomar vizinho, os distraídos mais
atentos às insignificantes mazelas alheias, os hipersensíveis ao quiçá
inexplorado universo do que não lhes contorna a beira do próprio umbigo, essa
gente nobre e elegante, circulando incógnita, vivendo essa longa avenida de gás neon, pele humana disfarçada de
qualquer um, nos vãos de escada da estrada da gente, a gente não dá um pastel
de vento pelos anônimos faróis ardendo iluminados, essa gente, entretanto,
ilustríssima leitora do meu padecer, essa gente é luz, é raio, estrela e luar, tocha cintilante, feixes de amor
aceso, reverberando na noite insana e infinita, permeando os eventuais
percalços de existir de outra tanta gente. Acomodo, neste velho e sofrido peito,
pouquíssimos empreendimentos pelos quais assumo valer a pena, de fato,
consumir-me, desfrutar felicidade, por exemplo, eis uma atividade que de prazer
me consome. Inspiro e expiro, sem açodamento, os fatos graúdos e miúdos,
ambicionando cada dia menos: menos competitividade, menos confrontos inúteis, menos
conflito, menos maldade, menos rancor, menos discórdia, menos inveja, menos
veneno: menos, cada dia menos. Uma das minhas pretensões da segunda-feira, por
que mato e morro neste exato instante, é a de dirigir-me, grata e comovida, a
essa brava gente amiga da gente.
Momento de luto e de ferrenha
luta, parceiros adorados. Persevero porque conto com o privilégio de escolher,
dentre canteiros de olhares fraternos, mãos solícitas, ombros acolchoados e cálidos
regaços, conto com o privilégio de escolher em quais braços-barcos,
ocasionalmente, desmaiar, disponho, pela graça divina, de lauto amparo para a
dificílima trajetória que ao findar vai
dar em nada, nada, nada do que eu pensava encontrar. Entendo que esta pequena
morte também vai passar, esbanjo experiência de morrer em vida. Sinto, dentro
do espírito, por outro lado, como se a dor, a cada amanhecer, mais e mais se
enraizasse. Sempre supus que despedir-me de minha fase fértil, portanto
reprodutora, seria um episódio para a posteridade, um lance complexo e
profundamente delicado. Alguns anos atrás, na curva perigosa dos quase
quarenta, decidi que seria mãe a qualquer custo, de qualquer maneira, uma
intimidade dessas bastante íntimas, que sooner
or later encontram espaço para, publicamente, revelar-se. Um amigo desses
que amam a pessoa perdidamente, tenho tantos amigos me amando perdidamente, a
senhora não faz ideia, madame..., um dos meus diletos amigos – amigo de cama,
mesa e banho, amigo de devaneio, amigo de rinha, amigo debaixo d’água e no meio
dos infernos – meu amigo, de repente, fez-se apaixonado amante, a gente tentou
tanto, a gente desejou tanto que essa criança acontecesse, nove meses de ácido
fólico, sexo, sonho e carinho se passaram, não engravidei, não consegui, “o filho que não fiz, hoje seria homem... não me percebeste, contudo
chamava-te... interrogo meu filho, objeto de ar: em que gruta ou concha quedas
abstrato? Às vezes o encontro, num encontro de nuvem”... Quando a conversa
encaminhou-se para as bandas das avançadas das mais avançadas das mais
avançadas das tecnologias, minha senhora, o meu amigo - pai de dois rapagões,
esperançoso de criar uma menininha - partiu para um doutorado longe de minhas
vistas, ocupou-se com alguma coisa verdadeiramente importante para o futuro da
ciência e da humanidade, decerto, minha natureza de mulher estéril,
acabrunhada, retraiu-se, fugi feito o diabo escapole da cruz, contrariada nas minhas
legítimas, honestíssimas expectativas de maternidade simples: coito, gestação,
parto normal e farto aleitamento. Coube a Ronaldo, Ronaldo meu marido, Ronaldo
meu amor, Ronaldo meu camarada, Ronaldo meu chapa, Ronaldo comprovadamente
estéril, os exames confirmaram, coube a esse companheiro absolutamente
extraordinário, a vigília: escoltar meu climatério, a menopausa – a revolução
dos bichos das minhas vísceras, da minha cabeça inchada, do meu inconsciente. “Não nos afastemos muito, vamos de mãos
dadas”, meu mais leal e devotado amigo.
Os hipersensíveis ao quiçá
inexplorado universo do que não lhes contorna apenas a beira do próprio umbigo,
aqueles para quem a vida extrapola o ego esdrúxulo – sombrio, infeliz,
amargurado, aqueles para quem a vida pulsa vida, vida vivida além do seu quadrado, essa gente nobre e elegante vem
protagonizando demonstrações efusivas de identificação, de compreensão
emocional, de aceitação, de zelo, de apreço, de solidariedade, de camaradagem, tenho
recebido tanto dengo, tanto mimo, tanto cafuné – aconchego real, aconchego
virtual - sou-lhes tão reconhecida, tão agradecida por tudo. Para não dizer que
não falei das flores, houve um comentário dissonante, aqui no bloguinho,
recentemente, uma fístula, uma perebinha à toa, cuja razão de ser escapa à
minha precária interpretação, encabeço a lista dos inapelavelmente ingênuos e
ignorantes, a senhora já viu como é, malogro formular uma teoria chinfrim, até
porque o leitor é um vulto esparso, prefere ocultar a face e o nome, deixemo-lo assim: pálido, inerte, esmaecido, inofensivo, se é de sua honrosa predileção. Relações subitamente descontinuadas provocam reações inesperadas, trata-se de perder a convivência comigo, o sujeito pira na batatinha, quem sabe. Quem me
vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Tô me guardando pra
quando o carnaval chegar. Vai passar.
Toma que é tua, Ronaldo querido.
Toma que é tua, Ronaldo querido.
quarta-feira, 8 de maio de 2013
O caso
Sei porque sei mesmo, sem confirmar nadinha na rede, eu
toda vida me pelei de medo dos achados e perdidos da mamãe zelosa e devotada de
todos os ignorantes de plantão – a internet gentil e generosa de todos os benditos
e satânicos dias da humanidade - nunca me incomodei de encabeçar a extensa e
constrangedora lista dos desconhecedores
oficiais dos assuntos importantes da vida, figuro, portanto, austera e
imponente, on top of the very list
dos mais ou menos jumentinhos, não havendo argumento plausível contra consumado
fato. Não refuto, não me queixo, sequer pondero, não pronuncio a nem bê, sei porque sei mesmo: sou mais um que desentende, com propriedade
e garbo, dos entretantos e dos finalmentes de tudo, sigo às cegas, burra de pai
e madrasta, sigo sã, na medida do possível, serenamente, pois que sei porque
sei mesmo, jamais seguirei sozinha nessa estrada de cascalho de brilhante,
caminha o caminho comigo um mar de gente. Na fria manhã que finda, do ventre do
sol gelado - cabisbaixo, descorado, decadente - irrompe, solene, o outono.
Respiramos outono desde abril, minha senhora. O pé de outono esgarçou o útero
da terra novamente, impunemente. Nu de vestes, trajado de poente: assim é o
outono, voraz e simplesmente. Reconheço a pálida estação pelo cheiro, um aroma
de cravo murcho açoitando as minhas carnes e peles, brisa embolorada
embaralhando meus sentidos e minha mente.
Houve um tempo em que estive muito longe de completar
cinquenta anos de idade. Tão longe, mas tão longe, que esqueci que o momento,
qualquer hora, de supetão, despontaria no horizonte. O tempo passou, ninguém conte com nove
novenas para deter o tempo, o tempo é foda, ele sempre vence. Não vejo por que
deva entrar nos sórdidos detalhes acerca dessa cronologia desconcertante, jovem
leitor com tanto futuro pela frente, poupe-me da especulação, da insistência no
abuso da calculadora científica, coisa mais antipática, deselegante e pedante,
vamos combinar, não revelo nem para o bispo que estou a dois passos de fechar a
conta. Três entre quatro mulheres de Atenas sofrem horrores com os tais
distúrbios do climatério, as estatísticas não mentem, a senhora sabia? A
menopausa é quando a gente deixa de sangrar feito esfaqueada, a senhora
concorda. Quanto ao climatério, minha amiga, o climatério é o oco do mundo, um buraco
muitíssimo mais embaixo, abissal, eu diria, fuja que é briga de foice, das
violentas, esse aí tem credencial para desmantelar a alma da gente. Eu comprei
a raspadinha premiada, acredita? Agora, bonitinha, aguente. Meu marido fala bem
assim: “puxado, hein, mãe?”. Nego
não, Ronaldo. Está bastante obscuro, complicado. Contando contigo para
sossegar, meu rei adorado, para tirar uma pestana, cochilar molinha na vastidão de um céu sem rasura, que é para mim, o teu abraço.
Minha professora de canto cantou a pedra: “Adriana, mulher! Esse berreiro à toa,
vontade de correr doida, o nó na goela, palpitação, ansiedade, frio do cão, calor
dos infernos, o sono ruim como o diabo, Adriana, mulher!, aposto meu piano,
isso é coisa de climatério.” Fui trocar uma ideia com Zé Luiz, o maior
ginecologista da América Latina, o cabra é médico para mais de metro, um homem
velho, a senhora dá licença? Impressionante como eu confio, olhinhos fechados e vendados, no jeito de olhar e ver dos velhos. O combinado foi ele me proporcionar alguma
condição de sobreviver à tormenta, tenho tanta esperança de despertar para um
inédito dia, um dia ostensivamente azul e quente, completamente limpo de agonia, o
combinado foi o devido minucioso acompanhamento, a partir do resultado de um
exame de sangue que fiz hoje pela manhã. Esse
exame a gente faz em jejum, doutor?, indaguei, ela é autêntica capricorniana, sofre a tua dor resignadamente, capricorniana autenticíssima. Atente para a resposta: “Não, Adriana.
Tome o seu desjejum normalmente, em seguida, vá para o laboratório fazer a
coleta.” Nessa estrada de cascalho de brilhante, caminha o caminho comigo
um mar de gente. A moça do balcão do laboratório cismou do rabo que o exame
precisava de jejum, pense aí numa novela. Querida, o médico disse que não carece não. A fila engrossando na telha das
minhas costas e o bate-boca comendo solto. De repente, só ouvi foi o gasguito
da moleca, aquela frase atravessada, que acelera os batimentos da pessoa, a
gente pensa que vai desmaiar, a senhora sabe como é? “Muitas vezes, o próprio médico não sabe, minha senhora! Nós do
laboratório é que sabemos!” Uma fedelha ainda regurgitando leite Ninho
Crescimento, visualize aí, madame, duvidando da palavra santa de Zé, não duvido que Zé tenha assistido o trabalho de parto da genitora dessa égua adolescente, Zé é um sujeito
que cuida da mulherada moça e passada, rarará, desde que a mãe dessa moleca era
menina, minha gente! Impaciência tem limite, desde que se queira. Não quis! Chutei o balde, me espalhei, ó! Pois eu não volto amanhã para realizar o
exame coisíssima nenhuma, minha filha, mas nem que a vaca tussa! “A senhora
queira aguardar um instante, que vou me informar.” Com mais um tanto,
voltou a moleca: “a senhora tem razão, é
sem jejum mesmo.” Atravessado o
primeiro deserto, mudei de sala. Sentei-me diante de uma garota que podia ser
minha neta, a bichinha tadinha, boazinha que só, conversando tão direitinho, degringolou,
de repente: “a senhora está em jejum, senhora?” O sintoma mais evidente do climatério é a irritabilidade. Menina de Deus! Tem misericórdia! Isso aqui
é uma pegadinha, é? Quinze minutos de blá blá blá para convencer a loirinha
de que a dúvida já havia sido esclarecida na recepção. Não blasfemo, devo
merecer. Resolvida a pinimba, agradeci - a educadérrima de praxe - demorei um
tiquinho de nada para afastar-me da simpática loirinha, a senhora compreende,
minhas articulações me matam. Pois não é que a loirinha achou uma brecha, nesses exíguos dezoito segundos, para encaixar ali, no olho do furacão, o desfecho dessa história? “Dona Adriana, mas a senhora não fez uma
refeição muito pesada não, não é?” Por hoje, chega. Nos encontramos alhures,
macacada.
quarta-feira, 1 de maio de 2013
Vitrine
Quando eu parar de trabalhar, pelas minhas contas falta
pouco, vou dedicar minha nada mole vida à baixa literatura, àquela dos ratos do
porão, de rodapé de brochura de quinta mesmo, que a minha humilde pessoa produz
aos borbotões – chuchu na serra – escrevo inutilidades públicas como ninguém,
diga-se de passagem, a senhora cale-se para sempre ou desembuche agora a mais
cristalina verdade: esse sorrisinho, brotando rasteiro nos lábios, no vão das bochechinhas
rosadas, denuncia: a senhora concorda, madame, sinto sem ver, sem conseguir,
sem desejar explicar. Pressinto, pressinto não, apalpo as rosadas bochechinhas: nem dissimule, madame, a senhora concorda. Minha intenção é perseverar na leitura e releitura dos
bons, meu apaixonante e apaixonado dever de casa, Deus me livre de um dia
acontecer de abandoná-los, minha intenção é morrer lembrada do céu que me
separa dos melhores do mundo, do tanto de reencarnação que me aguarda, até chegar
o momento da minha asmática, tatibitática palavra amarrar, dos carcomidos, ilustres sapatos de Rubem Braga (meu pai e minha mãe, meu mestre, meu guru iluminado, a
bênção!), o cadarço. Nem deveria compartilhar uma coisa feia desse jeito, venho
confirmando, estrada afora, o que fora outrora uma leve suspeita: a idade tem
essa capacidade de fomentar cidadãos para lá de sem vergonha, a pessoa assume, de bermuda, a safadeza, rarará: consumi o
grosso das horas da terça-feira dormindo, dormi de roncar, dormi de rachar o
bico, coma profundo, das 14:00 às 19:00 h, pronto, despejei, que se dane, minha
reputação não anda lá essas brastemp,
“lerda, lesa, acomodada, preguiçosa, não martela um prego numa barra de sabão
de côco”, e isso, respeitável leitor, é o de menos, entre cositas mais xexelentas e desmoralizantes, rarará, quem se importa?
A fofoqueira bata com a cara na porta até ficar torta.
Mentira minha que passei o grosso da terça-feira
dormindo, parto, armadurada, em minha própria defesa: precisamente às onze
o’clock e alguns o’clockinhos, a atleta fora de forma que vos dirige o verbo,
estava asfixiada, bufando, vomitando as tripas, nos amplos salões da Academia.
De ginástica, madame, academia de ginástica, né possível que o seu miolo de
galinha deduziu outra coisa, sinceramente. Por falar nesse assunto antipático,
na linha ‘já que tá dentro, deixe’,
rarará, desabrochou a pulga no jardim detrás da minha orelha de burro, uma
suspeita no meu pensamento, um fantasminha encasquetado no juízo, sobre a fantástica
realidade das academias, os fitness clubs
ou fitness centers, talvez devesse
referir-me dessa maneira àqueles espaços, para elevar o nível, para enfeitar o
maracá desse terreno. Pise lento no tatame, para a senhora ter certeza de entender
direito, é líquido e certo: seu rei mandou dizer que sua flacidez está
encurralada, seu destino é sucumbir, das cinzas brotará sua nova identidade:
Maria da Rocha Sarada Turbinada. Tenho para mim que, aos camundongos de academia,
caberá a chapa quente do mármore do inferno, ninguém se iluda: é derreter a
empáfia e a musculatura na chama da fogueira da vaidade exacerbada, pode
apostar. Tudo demais é veneno, Dona Rita sabia. Não é segredo para a senhora,
nem para o povo da rua, que eu acho que todo gordo devia nascer morto, o
planetinha azul pertence, de papel passado, com firma reconhecida, ao
contribuinte classificado ali naquela faixa entre a esquálida magreza Olívia
Palito e a anorexia galopante. O problema é que, apesar das taxas completamente descontroladas,
da gordura no fígado, das articulações irreversivelmente comprometidas, apesar
do fio da navalha suspenso por um fio, no cocuruto da cabeça oca, o gordo, de
gaiato, sobrevive. Sobrevive de pirraça. Aí é que são elas, madame. Aí é que são elas.
No horário promocional da academia, titia escrevinhadeira
oficial do fuchique vem a ser a única
bastante gorda do pedaço, a senhora avalie o constrangimento do peixe-boi fora
d’água, eu sou só, eu só, eu só, eu. Não
conto com a metade do culote sequer, de uma coleguinha avantajada, para
socializar os pecados da gula e a alcachofra, meu derredor é hipertrofiado, da
moleira à panturrilha, quem se engana que academia é ambiente para gordo,
acorde, amor!, livre-se cedo, ao menos da bainha da manta lipídica, meses antes
de matricular-se, academia é reduto de esqueletos ambulantes, é desse jeito.
Emagreça ligeirinho, madame, anteontem, até porque a senhora nunca vai entrar
num modelito GG de lojinha de trajes típicos de academia, a senhora sugiro que
desista, compre o pano, mande costurar uma roupitcha sob medida, mais larguinha. Escanchada no selim da
bicicleta que não anda, todo castigo para gordo é pouco, a senhora imagine, observo
a movimentação da mulherada, dos homens também, dos homenssexuais, inclusive, rarará, o pau que mais dá na academia, é impressionante como essa
gente se parece, por isso que tenho tanto medo dessa engenharia de uniformizar
a massa, de confeccionar por encomenda os lotes de bunda, de coxa, de abdome, olhando
aquela profusão de espelhos, parece que tô vendo a esteira rolando, os
bonequinhos enfileirados - as Barbies e os namoradinhos das Barbies - escoando da linha de montagem para a embalagem, da embalagem direto para a
prateleira. Francamente, count me out,
não tenho condição de participar da brincadeira. Minha distração de academia é
lorotar miolo de pote, adoro. Falo mais que o homem da cobra, é o suor descendo
e a língua ferina trabalhando, rarará, falta grave, nem sei como ainda não
sofri uma repreensão, uma advertência, o cartão amarelo. Ou vermelho. A
avaliação física é um episódio à parte, vamos combinar. De uma frieza traumatizante
para os fracotes de alma mais sensível, o questionário é enxuto, aponta para o
ponto e atira, metralha a caixa dos peitos, confunde a cabeça da gente, são demais os perigos dessa vida pra quem
tem paixão por uma conversinha transversa, um tiquinho mais diagonal,
rarará, uma troca de ideias mais difusa. Nome? Idade? Peso? Altura? Bebe? Fuma?
Escoliose? Lombalgia? Diabética? Hipertensa? Casos na família? Alguma doença
degenerativa? Outras informações relevantes? Objetivo? Objetivo? Madame,
objetivo? O que a senhora busca? Manhã de sol, meu iaiá... Manhã de sol e noite
de lua. O de comer, o de vestir, uma casinha de sapê, amor ilimitado e amizade
que não decepcione a camaradagem da gente. Cachorrinhos. Circo, sonho e poesia.
Alguma saúde para perder para o implacável tempo. O tempo é foda, rapaz, ele sempre vence. Sinto
o abraço do tempo apertar e redesenhar minhas escolhas... Envelhecer. Definhar no
salto, deteriorar na classe, perecer dignamente. Busco isso e uma cerveja, se
não for pedir muito. Dar as costas.
Caminhar, decidida, pela estrada que, ao findar, vai dar em nada. Nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada
do que eu pensava encontrar.
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