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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Intermezzo

Careço de coordenação motora fina para preservar o papel do presente. Carente de nascença, dilacero o laço e o embrulho, despetalo a flor da folha cintilante, vivo ávida de madureza e de infância. Os dedos buliçosos, lambuzados de chocolate meio amargo, imprimem, na copa da prenda, o dossiê -  as expressões digitais da murcha  guria temporã, tatuadas na polpa do fruto de vez. Jovens mãos velhas e artríticas apalpam gomos de esperança - a sólida semente - de novo. Pausa para a menina fazer anos-luz, acumulando rugas e janeiros.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Quadrilha

“Família, família, papai, mamãe, titia... Vive junto todo dia, nunca perde essa mania”. Eu nem sou muito fã dessa música, nem sei quem canta, Titãs, arrisco um palpite. Entretanto, vira e mexe, cantarolo esse pedaço, o único que decorei, com aquela cara de quem curte Titãs adoidado, mas é mentira minha. Da banda, eu só conheço bem mesmo é aquela música que diz que o cara não botava nem o pé na escola, trabalhava sem se distrair e só via carne, se roubasse um frango, “Marvin, agora é só você, eu fiz o meu melhor, e o seu destino eu sei de cor”, essa aí é genial, admito. Falta agora eu googlear a letra, para descobrir, abismada, que a letra nem é coisa de Titã nem nada, melhor deixar isso de lado e levar o barco, devagar. A minha patética ignorância no assunto, aliada ao meu estúpido preconceito com relação ao roque nacional, que eu não sou perfeita, eis o que me impele a prosseguir, tocando o barco em águas rasas, prefiro não aprofundar a pesquisa. Nem fazer projeto de pesquisa eu sei, avalie o despreparo. Tem música que não serve para coisíssima nenhuma, é ruinzinha de dar dó, daquela de romper a membrana do tímpano, coitada, mas a gente mal ameaça investigar quem envernizou a barata, a bicha gruda no juízo da gente, a gente canta a bicha todo dia, canta que se espanta. Um tempo desse,  ano passado, por causa de um comercial de cd da banda Calypso, flagrei-me a repetir “tome chá de maracujá, que essa loura aqui não vai te acalmar, sai de mim”, blá blá blá, pelo menos três vezes ao dia, um mês inteirinho. A mídia adverte, subverte, perverte, converte o que você não imagina, naquilo que você, nem de leve, suspeita. A mídia é um perigo. “Família, família, papai, mamãe, titia...” A gente sabe que “a roupa suja da cuja se lava no meio da rua, ...despudorada, dada, à danada agrada andar seminua... E continua”. “Que o Chico Buarque de Holanda nos resgate... E xeque-mate”.
Família serve para fazer raiva e para fazer falta, um velho sábio de Ouricuri revelou, certa vez. Eu escutei o velho sábio e concordei com a pessoa dele, em grau, em gênero e em número, até que a morte me separe deles, o clã dos Oliveira. A intrépida trupe é numerosa. Vinda dos que vieram antes dela, Dona Rita inaugurou a nova leva. Rebentou oito vezes, deve ter engravidado umas dez ou doze, sete vidas vingaram, sete é conta de mentiroso, mas é a mais pura verdade, sendo eu a problemática caçula raspa do tacho, e Tia Iêda, mãe de todos, a problemática primogênita. Os preás do meio deram cria que deu cria, de modo que, assim por alto, descontando a minha má-temática, o saldo é quase trinta, até o momento, isso porque eu desconsiderei os agregados, aderentes e simpatizantes, excluí os vindouros filhos dos netos ainda solteiros porém enamorados, esses também já se coçando para contrair matrimônio e perpetuar a espécie, as tais alminhas ainda penduradas, futuro do presente, presente do futuro, sei lá. Crescei e multiplicai-vos, ordena o livro santo. Seu Biu e Dona Rita, dois santos seres de luz, trezentos e oito andares acima, vez por outra, debruçam-se sobre o parapeito da janela do céu, para olhar a prole, proliferando feito mato rasteiro, porteira afora. Quando a molecada ultrapassa todos os limites do razoável e do execrável, Seu Biu mais Dona Rita, muito bem assessorados por Cristiane (a menina santa, a galega intérprete da mocidade independente, o anjo porta-voz da juventude transviada), a superpoderosa santíssima trindade intervém, manda seus recadinhos do coração, via Tia Isis, a paranormal correspondente internacional  interplanetária da família. A comunicação abunda, clara e direta, em high definition. Tia Isis acessa uma planilha reencarnatória pormenorizada só dela, e elucida todas as sem razões inerentes ao milagre de estarmos todos enlaçados, aqui, agora e depois, tudo junto e misturado, na perfeita harmonia do desequilíbrio da carne convulsa, sem vestígio de viabilização de escapatória, quem quiser que fuja, o reencontro é certo como a lua, chega me dá um frio na barriga. Pode acreditar, todo aquele que, piamente, acredita. Eu, de minha parte, acredito em tudo que desejo, sobretudo na magnânima, porque generosa e benevolente, herança genética - salve Mendel, salve ela! -  herança atávica, vislumbrada no açúcar e no sal, no fortuito gesto, na fibra do cabelo, no tom da voz, no olhar, no queixo, na graça e na teimosia.
Desde que nos mudamos para cá, a pousada dos Barroso está a todo vapor. Gente da família visita muito a nossa casa. Penso se o paraíso somos nós, os melhores anfitriões que conheço, ou é o lugar, pois moramos onde as pessoas passam férias, lê-se nos adesivos dos carros da vizinhança. Habitar o paraíso é uma faca de dois legumes, os radicados nos Lagos cariocas compreendem a minha língua, sabem muito bem do que estou falando. No verão, peça para morrer. Armazene comida para três meses, os supermercados recebem apenas turistas, de dezembro até fevereiro, noutras palavras, nem no estacionamento você consegue entrar. Vá relaxar na cozinha, congelando o almoço e a janta para os três meses de sol a pino, os restaurantes recebem apenas turistas, não existe vaga para o seu carango nos oito quarteirões em torno. A vaga restante é a sua própria garagem, e vão lhe custar dez reais as duas horas de permanência. Caminhe até a praia, sem reclamar da vida, é verão. Chegando lá, permaneça de pé, contemplando o mar azul, a orla recebe apenas turistas, não sobra areia para acomodar o seu traseiro. Se dirigir, beba muito mais do que o permitido, sóbrio, meu bem, você não vai sobreviver aos engarrafamentos diários. A contrapartida é a delícia de surpreender-se com a visita das crianças. Criança tem essa capacidade de abalar as estruturas da casa, se a casa tiver cachorro, principalmente. Gente que não se amarra em criança misturada com cachorro, pra mim, é gente em quem a gente não pode, nem deve, confiar.  Semana passada, hospedamos, mais uma vez, meu sobrinho Eduardo e a mulher. A novidade foi o kit completo: ele, ela e  a duplinha Lara e Duda, minhas sobrinhas-netas. Vocês me perdoem a franqueza, meus outros tantos adoráveis parentes visitantes ocasionais, minha franqueza ainda vai acabar comigo, mas as meninas são divertidas demais. Rir é o melhor remédio. Ri muito, Ronaldo riu ainda mais.  Eduarda e Valentim se estranhavam todo dia, aterrorizados, um com o outro, protagonizando as cenas mais hilárias, inesquecíveis. Nunca vi meu cachorro tão desparafusado, maluco, histérico, latindo de rachar, quanto mais velho, mais descompensado fica o meu pobre cachorro, ele é igualzinho à dona. Eduarda fugia dele como o diabo da cruz, ele marcando em cima, rosnando, avançando no calcanhar dela, uma correria, uma algazarra, um pastelão. Foi dela a célebre frase, no momento em que, segurando as lágrimas, despedíamo-nos: ‘ninguém precisa chorar, Tia Adriana já vai pra Recife mesmo... Vó é que vai chorar que só, mas quando Tia Adriana voltar pra cá de novo’, disse isso com aquela carinha linda, rindo-se toda, os dentinhos separados à mostra, eu achei a coisa mais linda. Durante a ceia de Natal, Lara, a irmã de Eduarda, que acabara de experimentar rabanada, encarou Ronaldo, abrindo o sorrisão de dentinhos separados, as duas saíram ao pai, os mesmos dentes separados, Lara disparou: ‘Tio, você pode guardar umas dessas ranabadas pra gente levar na viagem, por favor?’ Ele riu de perder o tom. Todos rimos. De perder o fôlego. No dia em que as duas tomaram banho juntas, aqui embaixo, Eduarda percebeu que esquecera o xampu no outro banheiro; Lara, sabida, desenrolada de carteirinha, tranquilizou a outra: ‘Não tem problema não, Duda! A gente usa os de Tia Adriana, olha só, ela tem vários!’. Dessa história eu só soube à noite, de volta pra casa, do trabalho. Vânia, a madrasta-mãe, foi que escutou a conversa e me contou, também entre risadas. Que menina mais engraçada! 
Família serve para fazer raiva e para fazer falta. As crianças partiram, os cães sossegaram, foi-se o que era doce: o rebuliço e a euforia. Instalou-se aquela paz fastidiosa,  desconfortável e intrusa que teríamos preferido desabrigar do nosso teto. Não vejo a hora de ter um neto. Aguardo, ansiosa, a notícia da gravidez de Erika, a sobrinha carioca que Deus me deu sem eu pedir, uma pessoa de quem gosto tanto, que é como nossa filha querida, vivendo ali, pertinho da gente. Ela me confidenciou, na festa do casamento, seu plano infalível, tomara..., de maternidade, para breve. Vinde a nós os pequeninos. Vinde a nós o seu bendito fruto, filha, com muita saúde. “Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Rita que amava Dito que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava toda a quadrilha”. “Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família”. À família. Ao milagre de estarmos todos enlaçados. Depois, aqui e agora.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Rebento

Eu não faço ideia de como se sentem os duvidosos da veridicidade dessa história desse menino santo nascido da menina Maria e do Criador, concebido sem penetração, e adotado, sem qualquer registro de alvoroço, pelo nobre carpinteiro José. Minto. Parece que José não caiu na conversa de Maria, assim, de primeira, não senhor. Parece que um anjo teve de confirmar tudo direitinho. O enredo desse samba tem anjo do abre-alas até o último carro, anjos trabalhados no lamê e no paetê, todos os serafins, querubins e afins, sendo palavra de anjo, palavra de rei. Eu sou muito fã de José, de carteirinha. José devia ser um cara muito do especial, muito do correto, muito do íntegro, muito do caboclo com sangue no olho e muito do furado na venta por Maria, essa última expressão aí - furado na venta - sendo muito da comumente usada na minha terra, isso se a pessoa quiser se referir a um homem muito do enrabichado por um determinado rabo de saia. Além do mais, José era muito do avançadinho para a época, isso é ponto passivo. O anjo revelou, ele acatou, achou que era isso mesmo, podia com o pote, pegou na rodilha, pagou para ver. ‘Já que tá dentro, deixe’, que é como tem de ser. Assumiu a criança, indiferente à lâmina afiada da língua do povo, e fez História. Seu filho nasceu igualzinho a ele, na fisionomia e no caráter, veio ao mundo naquele canto aonde vêm ao mundo as crias das vacas e das jumentas, igual em tudo, à exceção daquele dom de que o povo até hoje fala: Jesus nasceu e cresceu para ser milagreiro. Jesus Homem de Deus, o mago da colina, a alegria dos homens seus semelhantes, o cabra macho turrão, o inconformado, o afoito, o forte, o fraco, o consolador dos aflitos, o curador de todas as perebas, o ressuscitador dos mortos, o produtor de vinho do bom, o multiplicador do pão de cada dia, o salvador de cada filho fiel, e de todos os ímpios. O filho de José fez História. Quanto à Nossa Senhora, creio em Deus Pai todo poderoso, e no meu glorioso São José, não existe, no céu e na terra, devoção maior do que essa que lhe devoto, Minha Mãe Rainha, rogo a vós conceder-me a graça de dormir em paz com a minha consciência e com as minhas tímidas certezas,  cobri-me, Virgem Maria, na escuridão das noites infinitas, com vosso sagrado manto. Todas as mulheres do mundo deviam chamar-se Maria, declaro aqui, solenemente, o que penso. De que tamanho eu seria, se me chamasse Adriana Maria? Os historiadores, os antropólogos, os filósofos, os filólogos e os ufólogos mergulham tão fundo nas controvérsias relacionadas a esse acontecimento, cegam, de tanto cascavilhar o fundo do pote, remover as quinquilharias do baú do tempo, porque o passado é preciso conhecer, para melhor prosseguir. Vai ver o Nazareno nem existiu, ou até existiu, aniversariando em fevereiro ou março, existiu menor do que o folclore propala, longe léguas de ser essa brastemp toda.  Confesso que não acompanho as escavações, sou de uma ignorância lamentável, no que se refere a assuntos cristãos, morro de medo de que me convençam de que esse realismo maravilhoso é conversa fiada de Cortázar, de Izabel Allende ou do fantástico Gabriel, não o anjo, o Garcia Márquez, dos Cem Anos, cuja leitura, confidencio-lhes, jamais concluí. Da solidão de não acreditar, vou escapando, mais ou menos, como posso.
Eu não faço ideia de como se sentem os duvidosos, sei que euzinha da silva, entro no clima natalino, no dia trinta de novembro, permanecendo intoxicada até seis de janeiro, na pior das hipóteses. Acredito em tudo, sã e salva. Vejo Maria parir o pequeno dentro do meu quintal. O bom do Natal são as providências a serem tomadas para a ceia e para a reforma íntima de todo ano. Dezembro é o mês do meu inferno astral, a torcida do Santa Cruz em peso, mais a do Flamengo, além da galera Gaviões da Fiel, não é segredo para absolutamente  ninguém, todo mundo está farto de saber que o meu aniversário natalício é dia 14 de janeiro. Aguardo, portanto, os cumprimentos. Meu inferno astral fica mais e mais infernal, as time goes by, deve ser coisa da idade. Entretanto, se tem uma coisa que me enche de alegria de viver, uma coisa que eu adoro, essa coisa é preparar o meu coração, a minha familinha e a minha casinha para o Natal. É fim de ano, em ritmo alucinante. A gente sempre quer comprar um eletrodoméstico novo, a gente quer mudar o pano dos sofás da sala, a gente sempre abre novos crediários, a gente vai até o centro da cidade vinte e oito vezes, entre o dia 1 e o dia 23 de dezembro, a gente ainda dá um jeito de dar um pulinho daquela loja da Francisco Mendes, no dia 24 à tarde, porque a gente decidiu, de última hora, que o marido merece demais aquela camisa que voltou para a prateleira, porque ela era muito cara. Muita gente testemunhou, o povo da rua viu, das vinte e oito idas ao centro, vinte e sete idas foram muito bem assessoradas pelo marido,  ele comportou-se feito um rapazinho, não deu um pio de pinto, sorriu até, na fila do caixa, ele merece outra camisa cara, além da que já compõe a decoração, ao pé da árvore estrangeira, desde a semana passada. A gente tenta ser muito melhor do que tem sido, ninguém duvide disso.
O perigo é Papai Noel abrir as asinhas e querer mandar no pedaço. Não adianta a gente gastar dinheiro demais em dezembro, comprar presente até para o Papa, se a gente perder o foco. O foco é sentir-se gestante prestes a dar à luz um grande amor. O foco é a faxina. Arreganhar as portas, as janelas, os basculantes, iluminar  as sombras. Tirar o pó dos móveis e das almofadas. Arrumar o quarto, a alma e a vida para a chegada de um principezinho, como se o principezinho fosse o seu primeiro e único rebento, tarefa das mais desafiadoras, difícil pra danar, vamos combinar. Colorir de azul-bebê as paredes em torno do berço de Sua Majestade o bebê. Mister jogar no lixo os entulhos da velharia carcomida e embolorada, acumulada ao longo dos quase doze meses, pelos cantos de todos os cômodos da casa. Mister arejar todos os espaços. Mister descartar rancores e sentimentos maus e mesquinhos, empilhados nas quinas do espírito, dois, dez, vinte, quarenta anos a fio. Livrar-se de imensurável mala sem alça, como se extrai um siso, ou dois, que os sisos não servem para nada. Fundamental chorar um pouco, de saudade, de arrependimento, de medo, de tristeza extrema. Fundamental, sobretudo, escancarar todos os dentes restantes para o futuro do mundo: abrir para gato e cachorro o doce e largo sorriso da maternidade. Só as mamães são felizes, a mais pura verdade.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Azulzinho

“Hoje eu estou sozinha e não aceito conselho, vou pintar minhas unhas e meu cabelo de vermelho... Se eu perder, eu perco sozinha, mas se eu ganhar, sou só eu que ganho”. Eu nem sou muito fã de Ana Carolina, do repertório dela, sei cantar uma meia dúzia de seis ou sete baladas maneiras, mas dessa aí eu gosto muito. Essa é daquelas que a gente canta alto, forçando a garganta, assim como a gente imposta a voz para cantar Garganta. Garganta é outra música que ela gravou, acho até que foi por causa de Garganta que ela ficou famosa, “não sou beata, me criei na rua, não mudo minha postura só pra te agradar... Aprendi a me virar sozinha”. Esses versos que tratam desse assunto delicado e inflamável, “a solidão é fera, a solidão devora”, essas letras mexem demais com os meus sentidos. Eu poderia discorrer, sem susto e prolixamente, sobre o tema, sempre me senti like I don't belong, uma boa alma, mas por demais sozinha, nesse vasto mundo. Acontece que hoje é sexta-feira, o dia da graça, o dia da caça e do caçador, não convém, portanto, cutucar o cão com vara curta, magoar ferida mal cicatrizada.
Transgressora da moral e dos bons costumes, hoje pintei minhas unhas de azul new york, pra ficar com mão de puta. De uns tempos para cá, dei para me enxerir para o inusitado, tem que ver, com a cara de pau que Deus me deu. Não me importo mais um tico com a opinião pública, e digo isso com a alma lavada e enxaguada, cabendo inteira na palavra franca, a palavra franca, francamente, me faz jus, do pé à cabeça. A minha franqueza ainda vai acabar comigo, pode apostar. Na sapataria, de manhã cedo, a moça me perguntou se eu gostava das sandálias que ela estava experimentando. Disse que não, sem sofrer, esclarecendo que o problema estava nela, não nas sandálias. De quebra, no ápice do atrevimento, ainda aconselhei a moça a esconder o joanete num modelinho mais adequado à sua deformidade, a moça tem aquele calombo na lateral do pé, uma coisa horrorosa. Eu não estava gostando mesmo, só falei a verdade, e funcionou feito uma peça original de fábrica. A moça ficou tão agradecida, ficamos melhores amigas, desde então. Às vezes, a minha franqueza me causa um transtorno dos diabos, às vezes consigo contornar, outras vezes nem tanto, aliás, quase sempre nem tento, que se dane. Para cada amigo perdido, faço novos três ou quatro, saio no lucro. Da sapataria, segui a pé para o salão, com as rubras rosas todas se abrindo pelo caminho, hoje é sexta-feira. Faz um tempo bom que eu frequento esse salão, o Star, e não é pela cabeleireira, digo logo. A cabeleireira é uma gordinha muito da gente boa, olha a redundância, conversadeira que só, acho que ela sabe passar o melhor café do Rio de Janeiro, adoro o cafezinho de lá. A gordinha muito gente boa, pasmem, não me inspira a menor confiança, francamente. Ela exibe uma fragrância de cabelo, um cortinho modernoso, curtinho, de uma cor meio indefinida, um penteado esquisito, duvidoso, prefiro manter inabalável a minha relação de fé e de amor profundo com Cavanellas, meu hair stylist predileto, meu adorado mãos de tesoura, dono do Marcus Cavanellas Coiffeur, um salão de responsa aqui na Baixada Litorânea. Minha fidelidade ao Star, deve-se ao indiscutível talento da minha manicure, Renata, uma jovem linda, mãe de duas crianças lindas, uma mulher batalhadora que teve a infelicidade de se juntar com um troglodita cafajeste, coitada, eu tenho um carinho tão grande por ela, vira e mexe dou aula de reforço pra menina dela, torço muito pela felicidade dessas pessoas queridas, Renata, Vivi e Gustavo, seu filhote caçula, um menino de ouro. Quanto ao marido, desejo a ele uma boa morte, lenta e dolorosa, falando francamente.
De uns tempos para cá, dei para me ocupar de futilidades diversas, pela graça divina. Meu passatempo preferido, emparelhado com palavras-cruzadas de nível difícil, para quebrar a cabeça e afugentar o alemãozinho, é fuçar sites de esmalte na net, atrás de novidade. Fazia tempo que eu andava louca pelos lançamentos de Ana Hickmann. Ana Hickmann é aquele mulherão que fatura alto, vendendo bolsa, roupa, sapato, óculos de sol, esmalte e outras coisas que esqueci agora. Não sei dos outros produtos, no que se refere a esmaltes, francamente, não existe Colorama que afete a hegemonia de um Ana Hickmann, as cores são deslumbrantes, todos os esmaltes são de secagem rápida e têm durabilidade incontestável, mas são caros, vamos combinar. Entretanto, vale a pena, uma vez na vida, pagar mais por um Ana Hickmann. Lembrei-me agorinha de um episódio engraçado, um dia eu mandei vir do estrangeiro um esmalte caro pra raio, o bicho não secava era  nunca, devia ser coisa para a pessoa usar em dia de frio e de neve, suponho, um desastre absoluto. Rio quando penso na minha bestagem de gastar dinheiro com aquela porcaria, gente besta é a imagem do cão, minha santa mãezinha me dizia. Pois bem,  hoje, quando saí do Star, decidi passar na Aroma, uma loja de cosméticos e outros bichos, na tentativa de encontrar os tais lançamentos. Para a gente ser feliz às sextas-feiras, basta perambular pela cidade, ver a rua. Comprei todos os esmaltes de uma vez, na Aroma, e, de alma lavada, enxaguada e trajada de bom velhinho, fiz o caminho de volta, bem ligeirinho, com o saco nas costas, ho ho ho. Cheguei fazendo arruaça, distribuindo esmalte adoidado, o salão virou uma festa de riso, de cor e de brilho 3D, que eu não sou fraca. As manicures, cinco ao todo, naquele alvoroço, pareciam crianças abrindo os embrulhos de brinquedo novo, protagonistas de outro singelo capítulo do livro de historinha besta da minha vida. Para a gente ser feliz e fazer o outro feliz, por Deus do céu, basta muito pouco. Bom Natal.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Garfield forever

Vou lhe mandar um papo reto: eu tenho esse costume feio de reclamar da segunda-feira, toda vez que é segunda-feira, pode a segunda-feira ser a segunda-feira mais espetacular do calendário, pode a segunda-feira despontar verde, azul, amarela, encarnada e lilás, lilás, aliás, é um  tom de segunda-feira que adoro; pode a segunda-feira romper caleidoscópica, vária e multicolorida, com pedrinhas de brilhante para o meu amor passar, a segunda-feira pode travestir-se de nacarado domingo madrepérola, quando e o quanto ela bem quiser, segunda-feira é segunda-feira, aqui, no Cariri, no meu pequenino Miraí ou em Madri. Deus não quer que eu fique muda às segundas-feiras, então vou lá e reclamo. Esse semestre sucedeu de eu nem trabalhar às segundas-feiras, mas estremeço, do pé à ponta, ante a súbita ameaça de me descuidar e perder o hábito de xingar a segunda-feira, traindo, assim dessa maneira, meu ídolo de ontem, de hoje e de depois de amanhã, Garfield dos meus amores, aquele pão de quem sou a maior fã incondicional.  Sigo, portanto, me lamuriando por ali afora, resmungando queixas incompreensíveis até para mim, ciscando no terreiro sem saber direito por quê e para quê, completamente enfeitiçada e seduzida por aquele gato sedutor, até a raiz dos bigodes. Vou lhe mandar um papo sem subterfúgios ou chorumelas de percurso: odeio segunda-feira.
Meu salário foi depositado hoje, segunda-feira, a primeira de outro dezembro inadimplente. Meu décimo-terceiro era doce e se acabou-se no dia mesmo em que bateu lá no banco, uma coisa impressionante. Fazendo as contas por alto, de cabeça,  sem a calculadora, calculo que minha conta corrente deve menstruar até o dia quinze, permanecendo nesse estado vermelho vivo hemorrágico até janeiro, quando a gente recebe as férias, minha última esperança de equilibrar um terço das minhas finanças combalidas. Não é possível que exista alguém das minhas relações  interpessoais, que viva mais pendurada de dívida do que eu, que devo até os dentes da frente, literalmente, porque mandei fazer dois dentinhos novinhos em folha e o dentista, até a presente data,  não viu sequer a sombra do pico da primeira parcela da montanha de dinheiro  que me cobrou, coitado dele e de mim, coitadinha de mim, que, a propósito, pretendo, apesar da vergonha e dos pesares, dever com a máxima dignidade, dever e negar, sempre que possível, de peito aberto e coração tranquilo, até quando Deus quiser, enquanto eu puder.
Quando chega o verão é esse desassossego por dentro do organismo porque o verão é a estação da vadiagem, é quando a gente conclui o projeto SAMARA, a gente já comeu alpiste noventa e sete dias corridos, a gente já gastou três solados de borracha, bufando e regurgitando os bofes na ergométrica, já misturou lambaeróbica com samba, frevo, jazz e pilates localizado, a gente só fica esperando a hora de exibir esSA MARAvilha de corpinho escultural, espetacular, esbelto, rijo e sarado, nas areias de Copacabana, e correr pro abraço. Em dezembro, no meu parco entendimento das coisas da vida, se a pessoa não estiver na beira da praia, devidamente leve, livre, desocupada, tomando sol e água de côco, todo dia da semana fede à segunda-feira. Agora a pessoa imagine o meu estado psíquico nesse pós-greve filho de uma égua, com o semestre letivo acabando de começar, em dezembro, a minha estante se desconjuntando toda com o peso das provas ainda por corrigir, isso fora as redações e afins, as visitas chegando para as festas de fim de ano, Papai Noel a três por quatro, pipocando a dar com o pau, pelas esquinas da cidade, no âmago da decoração natalina mais cafona e esquisita que eu tive oportunidade de conferir desde o meu nascimento, a pessoa imagine o meu estado psíquico, se for capaz. E silencie, compadecida.  Monday sucks, that’s it.