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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Sabor de aurora

É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã. Um belíssimo horizonte. Ninguém, benemérito leitor assim, assado e cozinhado em banho-maria, neste conceituado caldeirão de lorotas, ninguém mesmo, desperdice seu tempo e congênita maledicência, a duvidar desse, ainda que tarde, despertar. Na gente deu o hábito de caminhar entre as trevas, de murmurar entre as pregas, de tirar leite das pedras, de ver o tempo correr. Pois muito bem, amanheceu o espetáculo. O mais engraçado é que a segunda-feira passada tinha tudo para contribuir com um carregamento extra de agulhas e de alfinetes para a crônica da sexta-feira, antecipada para quinta-feira à noite, tão somente porque o semestre acabou não sei como, de supetão, pensei que não, chegara a bendita hora de ser feliz, para ser infeliz mais adiante, feliz agora, sexta-feira... também. Os dois semestres, o findo e o recém-nascido, rá rá rá, aportaram entrelaçados, se lhe interessa acreditar, acredite, minha senhora, semestrinhos siameses, um grude só, eu, coitadinha, me esvaindo em preguiça e em legítima canseira, pálida imagem tridimensional apática, de dar dó. Para que tanto alvoroço, rapaz? Carrego, nas entranhas, esse arraigado sentimento de defesa do luto primordial pelo que se vai, bálsamo irremediável - uma pausa de mil compassos para ver as meninas - as devidas despedidas com saudade, saúde, sorte, sucesso, conte sempre comigo, a gente se esbarra por aí, gosto das coisinhas nos conformes, começo, meio e até loguinho, tudo direitinho, as antessalas arejadas depois, caiadas da velha, inédita luz, as mangas arregaçadas para o acolhimento do novo. De novo. Hoje, por exemplo, não dei aula aos abençoados de Petróleo II, completamente cega já, de tanto enxergar a razão por que os meninos sequer me reconheceram, ao pé da escada, ansiosos pela confirmação do fuxico do face, apenas: a aprovação, de cabo a rabo (parabéns, pessoas!!!), as avezinhas apressaram-se em lançar-me beijinhos fortuitos, dentro do ar, revoaram para o olho da rua. Entendo demais, meus amores, nesse particular, somos muito iguais.
Comecei a semana com o bode amarrado e não foi na sombra, não mesmo. Aposto que a senhora aposta na mudança do tom da conversa, não mais que de repente, principalmente se a senhora anda aí na pasmaceira, esparramada na sua rede social, tomando conta da minha nada mole vida, fofoca de facebook é fogo, o sujeito perde a repercussão de vista, a fofoqueira senior em questão, sou euzinha com farofa, admito, a culpa é do meu bucho de piaba, fico antecipando assunto de historinha, resumindo os próximos capítulos, rá rá rá, marketing, minha senhora, a senhora sabe. Divulguei, beforehand, o título da crônica, no livrinho virtual de dar a cara à tapa, danou-se a nêga do doce, meus trinta e um seguidores, quarenta e sete desafetos, mais um ou outro leitor neutro circunstancial, todo mundo ficou esperando a Peroba-do-campo, diga aí a mais pura verdade. De fato, estava armada de afiadas unhas e dentes para espetar o traseiro dos irmãos cara-de-pau de plantão, uma categoria sui generis de ser vivente, que circula, livremente, impunemente, nas luxuosas dependências da nossa valorosa instituição de ensino, destilando diárias, homeopáticas poções mágicas de fel. Debaixo dos caracóis dos cabelos, madame, vicejam desvios, fraquezas, vulnerabilidades, somos homens de bem e de mal, disso a senhora nunca se esqueça, orai, pois, joelhos esfolados, orai e vigiai, a ocasião faz o ladrão, mera distração, já era. Desconfio que o tema é recorrente, entretanto, nem é o caso de me aperrear com a postergação de tão pertinente enredo, rá rá rá, pano tem de sobra, tempo haverá, demonstrações inequívocas de cara-de-pausismo mau caráter com pedigree, a torto e a direito, pululam no breu dos becos porcamente iluminados, meu bem, é pau de dar em doido, se brincar, a memória fraca ajudando, acumulo ingredientes para escrever mais de cem.
Trinta dias redondos, eis o que a minha matemática capenga registra na madrugada, partindo da antológica, romântica noite dos gatos pardos da posse do amigo Anderson (e seus Blue Cats, rá rá rá...), ao clarão da lua e dos castiçais (lembram-se?), um mês certinho, de 29 de outubro até aqui. Meu balanço é favorabilíssimo, percebo a escola, nitidamente, descartando a bagagem sem alça, ganhando fôlego, elasticidade, um pé no sonho, outro no caminhar. Almoçamos juntos quarta-feira, jogando conversa fora, Brunão com a gente, estamos cada dia mais ligados, quem suspeitava disso, pode ter certeza, pode até espalhar. Pretendo construir, paulatinamente, tijolo com tijolo num desenho lógico, olhos embotados de cimento e lágrima, uma trilogia vermelha, branca e azul, emparelhada com a de Kieslowski, sobretudo no quesito rara beleza e poesia impactante, rá rá rá, uma profusa fatia do fuchique, pode confiar, num futuro qualquer, na hora exata, uma grossa fatia dedicada ao revolucionário momento presente, que atravessamos na valsa, embolados de chuva, suor e cerveja, frouxos de rir, produzindo História e resultados. Celebro a extraordinária conquista da galera da Licenciatura em Física, soube da ótima avaliação do MEC, fiquei contente pacas, nosso bebê, o pequeno grande físico Simba, merece todos os cumprimentos, uma maravilha esse reconhecimento, justamente no alvorecer da sua gestão. Depois que descobri, da maneira mais torpe e mesquinha, ninguém seja tolo de achar, entretanto, que aquela amputação de texto existiu, pelo contrário, jamais acontecerá, preservo meus relatos a ferro, madeira e concreto, depois que descobri que sou livre para escolher o léxico com que decido sentir e pensar e redigir as páginas da vida, minha filha, posso fazer o diabo com meu pomar de palavras, porque aprendi a correr riscos, digna e serena, e porque sei dar conta do recado, faço bem feitinho, ora bolas, sou, afinal, a proprietária da terra, dos frutos e das sementes.
Conheci uma professora de Macaé, Sandra o nome dela, parece que estava por lá ontem, entrevistando uns colegas da Licenciatura, para sua pesquisa de Mestrado, ou coisa que o valha, uma criatura bacaninha, conversadeira com farofa, querendo fazer perguntas até para o bispo, acho sensacional a criatura ter um pique desses para pesquisar, admirável mundo novo, quisera. Confesso que não trocaria olhares com ela, quem me viu na escola ontem, nem me viu, a montanha de provas, projetinhos e trabalhinhos mis soterrou meus restos mortais, eu, com esse corpinho avantajado, fiquei invisível, submersa na papelada, uma doidice com pedigree, nem tenho mais idade, vamos combinar. Ergui a cabeça porque nasci enxerida, num dado instante, entreouvi uma frase dessa moça, Sandra, guardei o nome porque gostei de escutar: “eu estou ENCANTADA com esse lugar!”. Terra, frutos e sementes dela, sem a minha interferência, deixo claro, Sandra me contou que a nossa escola tem uma energia boa, uma vibração positiva, disse que achou um barato a maneira como nos relacionamos, trabalhando com disposição e alegria, curtiu horrores a leveza e o bom humor da nossa sala dos professores, elogiou demais os colegas com quem teve mais contato, a senhora esperava tal depoimento a essa altura do baile, bela e meiga senhorinha? Nem eu. Quando julguei que houvesse terminado, Sandra ditou o desfecho dessa historinha para mim: “mas eu acho que tem a ver com o jeitão do diretor, não é? Ele me deu essa impressão de competência com camaradagem, tão acessível ele, simpático... esse cara deve ser um grande diretor, não é não?”. Um samba sobre o infinito. Transbordando de flores, a calma dos lagos zangou-se, a rosa dos ventos danou-se, o leito dos rios fartou-se e inundou de água doce a amargura do mar. Avisa em casa, ensina a teus filhos pequenos, querida amiga recente: é correnteza sem represa. Não se pode deter o coletivo movimento, muito menos dobrar um jovem coração de leão, idealista e amoroso. 

Dedico a crônica ao bebê Francisco, filho de João e Karlinha, que saiu do sossego para a confusão do mundo, no dia 30 de novembro. Um belíssimo horizonte para você, querido.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Epígrafe

“Eu não sou eu, nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio”... Numa festa imodesta como esta, vamos homenagear todo aquele que nos empresta sua testa, construindo coisas pra se cantar. Três vivas para Adriana Calcanhotto, xará com pedigree, por tanta emoção, tanto tino, tamanha bem sucedidíssima ousadia, pintando o sete com a nobre palavra de pluma e de chumbo da bichinha complicada com poesia não menos densa, rá rá rá: Mário de Sá-Carneiro, minha senhora, poeta gigante, regulando mais ou menos a estatura do Pessoa, gosto da pessoa no Pessoa e em Sá-Carneiro, sei que a poesia está para a prosa, como o amor está para a amizade. Adriana Calcanhotto, uma mulher do calibre de um trem, linda e lésbica bem resolvida, pela graça divina, fazendo o diabo com a bichinha complicada, noites de redentora loucura, mais um concerto que eu gostaria de haver sorvido, gota a gota, verso a verso, entre vinho e voz.  Eu não sou eu, nem sou o outro. Não sei o que há com as Adrianas, minha senhora, todas as Adrianas da minha estreita, cotidiana convivência, são puro malte, grãos selecionadíssimos, de primeiríssima qualidade, adoráveis fêmeas especiais de luxo, a senhora tire por mim, essa flor de ser vivente, essa criatura tão bacana, desvencilhada das obrigações, assim tão cedo, num passe de mágica, às 11 horas da sexta-feira, acredite, minha senhora, sem um fio de cabelo de culpa, Deus nos livre da culpa, esse mal sem lenitivo. Ocorre que amanheci doida para conversar, estamos cada vez mais íntimos, minha senhora, sem hora para fechar o bar. Tinha consulta com a dentista, a moça do consultório ligou, desmarcando, adiaram meu sofrimento para quinta-feira, achei quase perfeito, sugeri nova consulta em 31 de fevereiro, para o meu calendário, de longe, a data mais adequada, a atendente não achou a menor graça, nem sempre o dia está para pilhéria, vou dizer, eu é que preciso aprender. Acabo de elaborar, muitíssimo a contragosto, deixo claro, três provinhas de recuperação, mandei para a reprografia, com sorte, cruzem os dedinhos, ninguém providencia as cópias, a molecada vai adorar passar por média, eu, de minha parte, quero é prazo, jogue fora a rabichola e deixe a tanga voar, né não, meu camarada? Ia corrigir uma pilastra de exames finais, de Petróleo e Gás, especificamente, me deu um esmorecimento de repente, procrastinei, rá rá rá, amanhã vai ser outra manhã, tudo pode acontecer, até rebentar, por dentro do meu organismo, uma súbita, incontrolável vontade de trabalhar, quem sabe...
Quase nada na vida me dá mais prazer que escrever, sempre fui assim, desde caprichosa menina nordestinada a no Rio vir morar. Nas salas de aula do Colégio Nossa Senhora do Carmo da minha infância chatinha, que podia ter sido diferente, mas nunca foi, ora essa, fico com ela mesmo e mesma, é o que se tem, eu escrevia demais na sala de aula, por Deus do céu, matemática com biologia, tome-lhe física, química no toitiço, uma tortura, disciplinas de fazer o sujeito gostar de escrever, é isso. Religião, puta que o pariu, aula de religião, então, Virgem Santíssima, aliás, no instante em que eu, finalmente, compreender o que a aula de religião está fazendo dentro da escola, minha senhora, prometo que conto, imediatamente, a você. Para não faltar com a verdade verdadeira, minha grande diversão, meu passatempo, meu deslumbramento era a aula de Português. O meu semblante denunciava, provavelmente, nunca fui de abrir meu bico, nada disso, o olho da professora de Português atravessava o mar de gente, acredita? Olhar de imergir e trazer à tona, resgatar-me do fundo da sala, para eu respirar. Sempre arrastei um bonde pelas professoras de Português do Colégio Nossa Senhora do Carmo – Vera, Xênia e Zezé, as melhores da cidade, porque elas me viam, queriam saber de mim. Nem desconfiava, na época, que aquela casa abrigava nada menos que o crème de la crème das tecelãs das letrinhas. Essas três mulheres pescadoras de ilusão, em diferentes fases da minha vida escolar, conquistaram a minha alma e o meu coração. Tanto que desisti da Psicologia aos quarenta e três do segundo tempo, na fila do banco, prestes a fazer a inscrição para o Vestibular Unificado que os anos não trazem mais. Pisei o chão do CAC - Centro de AIDS e Contaminação, rá rá rá, o Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, carregando no peito a única certeza: serei professora de Língua Portuguesa.
Jamais consegui lidar com estrelismo, é uma brochação só, coisas de Seu Biu, minha senhora. A empáfia e o pedantismo não conseguem expressar-se no meu idioma, eu, de minha parte, nunca comprei o dicionário. Simplificar a vida, meu lema e bandeira. Eu não sou eu, nem sou o outro, rapte-me,camaleoa. Vou de mim para o outro e vice-versa, misturando as tintas. Uma história de amor vai e vem em ondas, como o mar lambendo a encosta, na rocha esculpindo o desenredo infinito. Pedra e água desencontradas, inacessíveis e indisponíveis, produzem desencanto só, e a inevitável, tantas vezes providencial, mudança dos ventos. Sou felicíssima, pinto no lixo, exercendo a minha profissão: I'm an alien, I’m a legal alien, I’m an English...  teacher, that’s it! Quase instantaneamente, desisti de ganhar o pão às custas da última flor do Lácio, inculta e bela, apesar da Licenciatura concluída com toda honra e toda glória, capricorniano é fogo. Fiz da língua do patrão a minha última morada, devo isso a Abuêndia Padilha e seu British accent I take tea, my dear, rá rá rá, a essa altura do baile, merecidamente aposentada, decerto, um beijo, querida. Professora Abuêndia e seu jeitinho manso de ninguém dar nada por ela, o cão de camisolão, foi ela quem, sabidinha com farofa, vislumbrou uma brechinha de acesso, na minha cara pálida de desgosto. Pois bem, Abuêndia descalçou ligeirinho as sandálias da fama, olhou, sorriu, acenou... e me tomou pela mão.


Para Lu, que puxou o assunto.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O outono da matriarca

Bom dia, diletos amigos e amigas da rede blogue. Hoje, a bem da verdade, desde ontem, amarrei meu bode, e com categoria. Faço de um tudo para esquecer a quarta-feira útil, praticamente engatada já, na gloriosa terça-feira da consciência negra, voto em três dias feriados, no ano vindouro, e para sempre, assunto encerrado, black is beautiful, eu quero um homem de cor, etc., etc., etc., quem me conhece, entendeu faz é tempo, que eu dava um quarto ao diabo para ser escurinha, rá rá rá, escurinha é foda, ‘aquela moça escurinha’, eita, eu dava um quarto ao diabo para ser pérola negra, no sangue, na mente, no gesto, no tom da pele, nos pelos, no clarão dos dentes, na graça, na resistência, esse furor, essa delicadeza, a coisa mais querida, a glória da vida. Dona Rita ficava era cabreira, ressabiada, quando eu dizia:  Mainha, escreva aí, ainda vou me casar com um preto retinto, que é para dar um upgrade na genealogia dessa família, melhorar a raça, me lembro como se fosse hoje, Dona Rita branca de neve, rá rá rá, olhava duro, pedindo a Deus que eu estivesse só de brincadeira. Eu quero me casar com esse aí, Mainha, isso era a gente vendo TV, eu, na pândega, for a change, instigando, referindo-me ao incomparável, intangível menino Milton Nascimento de três corações. No clã dos Oliveira, Dona Rita administrava o fã-clube do negão, tiete até o mucumbu, de carteirinha. Na hora de assistir ao negão reluzir no palco, ao vivo e na mais bela cor, sentadinha na segunda fila, a velha desabou com farofa, desmilinguiu-se toda ao som do blue, do pé à ponta, conto porque vi, meninos, eu vi. Dona Rita ria de morrer com a história do casamento com o negão, argumentava que a empreitada seria meio difícil, esse aí não gosta de mulher, aposto o que você quiser, minha filha! Tantos dos nossos desgostam do sexo oposto, quando se trata de fazer amor e sexo, minha nobre gente é uma figuraça, uma esquisitice, um laboratório, uma ciência, e a vida segue assim, lá em casa e no oco do mundo, segue gauche, estereotipada (que seja, ué?!), contraditória, exclusiva, aos trancos e barrancos, inclusiva, também, amém. “Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça, todas as mães se reconheçam, e que fale como dois olhos. Caminho por uma rua que passa em muitos países, se não me veem, eu vejo e saúdo velhos amigos. Eu distribuo um segredo, como quem ama ou sorri, do jeito mais natural dois carinhos se procuram. Minha vida, nossa vida, formam um só diamante, aprendi novas palavras e tornei outras mais belas. Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças.” Drummond e Milton Nascimento, a bênção.
Amanhã é dia de branco. Capricorniano original de fábrica, tadinho, sofre mesmo de véspera, mas nem é essa a razão do meu bico de tucano. O agravante é a frescura de Ronaldo. Meu marido acaba de surtar no melhor estilo, deu um piti daqueles, de drag queen menstruada com cólica, a senhora nem queira saber por quê. Chilique master porque, a essa altura do baile, eu não aprendi a estender a roupa na corda, dá pra tu? Aproveito o ensejo para salvar o seu matrimônio, madame: nunca, jamais, em tempo algum, exponha ao sol o primoroso enxoval, dobrando as altaneiras peças ao meio. Se pretende que o planeta sobreviva, com a gente dentro, estique as cuecas e prenda-as com dois pegadores, faça exatamente o mesmo com as crocodilas camisas do seu respectivo, deixe-as por um triz, penduradas na extremidade da extremidade, a um milímetro da queda fatal, do contrário, nenhum trapo secará, daqui até a eternidade. Colei chiclete no Manto Sagrado, venerável seguidor do meu destempero! Só não fico mais injuriada por causa do toró bem mandado, São Pedro, dessa vez, caprichou no dever de casa, tome-lhe chuva no cocuruto dos panos do quintal, exemplarmente espichados... e encharcados, rá rá rá, acho é pouco, para Ronaldo deixar de ser besta. Duas encarnações e meia agora, meu bem, para enxugar a trouxa de minha sinhá, tomou?
Não estou boa para pobre, pronto, falei. O infeliz do exame da tontura confirmou a suspeita da doutora: labirintopatia com discreto comprometimento da audição esquerda, manifestado, feito a gota serena, sob a forma de vinte e quatro horas de zunido na cabeça, isso apenas. Gastei sola de sapato, para cima, para baixo e para ambos os lados, a dama do asfalto, procurando a farmácia misericordiosa que me concedesse uma meia-entrada, um desconto de professor inadimplente, quando o próprio médico já vai dizendo olhe, a medicação não é barata, mas é a mais apropriada para o seu caso, minha senhora, a pílula é pó de pedra preciosa, pode confiar. E se eu lhe revelar que a maldita é feita de ginkgo biloba prensada? A senhora vai duvidar, né? Isso é o pau que mais tem no Mundo Verde, tem tanto que tão vendendo, doutora, barato feito bolo de goma! O comprimidinho do Mundo Verde tem o efeito de uma água de coco, no cérebro da desequilibrada, é mole? Para aprumar o juízo, tem que custar uma limusine, sabia não?! Em cada esquina de Cabo Frio, o remédio tem um preço diferente, de 95 contos (na Pague Menos) até 139 patacas (o preço da Tamoio, não passe nem na calçada, minha senhora!), preços vários, para todos os bolsos, pode escolher. Tô meio desconfiada de que a conversa com Drª Karina, justo no fim do fim de semana prolongado, foi que me deixou estropiada... A bolinha em questão, nas abalizadas palavras da especialista, aumenta o fluxo sanguíneo, melhorando a oferta de oxigênio na cabeça. A bula esclarece: indicado para problemas de memória, função cognitiva, tonturas, dor de cabeça, vertigem, distúrbios circulatórios periféricos, problemas de retina e, puta que o pariu, estágios iniciais de demência, como Alzheimer e demências mistas! O começo do fim? Ou o famigerado THE END, assim maiúsculo, propriamente dito? Deseja escapar de ficar velho, parceiro? Quem é coxo, parte cedo... Parta antes, meu camarada! 

sábado, 17 de novembro de 2012

Conto de areia

Fiz strip-tease na Santa Ceia, aposto a medula! Só me faltava mais era esta, o marido cobrando historinha nova porque é sexta-feira, me diga aí, rápida como quem rouba, madame, está direito isso, está, minha senhora? Perambulávamos, do verbo ‘tô à toa na pista, meu rei apreciaria um rolé ao luar?’, é público e notório que, em sexta-feira ampla e irrestritamente enforcada, a minha pessoa não bate o prego na barra de sabão, nem para o bispo, honrarás pai, mãe, o teu trabalho e o teu frosô, ficando a ordem dos fatores por tua conta, rá rá rá, toda vida comedida, me pelei de medo de extrapolar, de pecar por excesso, ‘menos é mais’ é o meu lema, quem foi ou é meu aluno, sei que sabe, hein, meu bichinho lindo da senhora mamãe dele, estarei faltando com a mais pura verdade, por acaso? Já comecei a rir com os meus botões, doida de pedra, da minha compulsão por tergiversação, vocês não atinam na vaselina maciota da gente manter um blog de fofoca, assim feito o meu, melhor um pouquinho, mais prestigiado, vá lá, um cyber diary arretado, positivo e operante com farofa (a coisa mais besta desse mundo de se fazer, visse, Luana?), se eu tivesse uma coluna semanal num jornaleco de quinta, ganhava um dinheirinho mais ou menos, sem sombra de aperreio, levando o leitor na banha da conversa, mais sopa do que tirar pirulito da boca de guri buchudo, escrever instantes é enganar o bobo na casca do ovo, simulando singular inteligência, espontaneidade, lirismo, ironia, picardia, criatividade pulsante, eloquência, blá blá blá, blá blá blá, o boboca narrador achando-se a bala, o último q-suco do deserto, rá rá rá, o bobo leitor comprando gato por lebre, eita, é muita besteira para uma página só, garanto que me aposentava muito antes de esvaziar o pote da lorota, numa boa, tarefinha fácil, extremamente fácil, demais até, chega perdi o bonde, ah, achei de novo, eu, Ronaldo e quatro mil oitocentos e doze mineiros, mais ou menos, enchíamos a tarde cinzenta (é folga, chove em Cabo Frio, é desse jeito!) de pernas brancas, pretas, verdes, vermelhas, amarelas e azul-varize, anda, manda teu corpo desmembrar..., de repente, na esquina da Assunção com a Francisco Mendes, incontestavelmente fora de hora, retumba o atrevido questionamento: “tu vai postar alguma coisa no blog hoje? Olha lá, o povo fica esperando, pensa que não? Deu linha, é fogo, agora, minha filha, aguente!
Veja bem, amigo seguidor, preste atenção, não é todo dia que o misterioso mar está para peixe grande, tem vez que a gente olha pedra e vê pedra mesmo, Adélia, principalmente quando o cósmico combinado, lavrado em cartório do céu, nosso amor do outro mundo, quem quiser, eletrocute-se de inveja, é cortesia da casa, ninguém jamais duvide do nosso encontro escrito nas estrelas, o combinado é o marido compensar cada ausência de curta ou longa duração, com o marido estudando um disparate jurídico qualquer, léguas distante da esposa adorada, na volta, é o seguinte, o marido tem de devolver a ela a calmaria, aterrar o cânion, reconciliar as extremidades do abismo, habilidoso e apto para ocupar todos os momentos e espaços ocasionalmente dedicados ao blog. O facebookiano que se preza, pormenoriza, em esguias fatias, seu doce e salgado dia-a-dia, na superexposição pessoal que eu também hiperproduzo, minha trademark é enfeitar maracá, é sabido, além disso, a rede é uma entre minhas vinte e uma manias, réu confesso. A essa altura do campeonato, a senhora está careca de saber que abandonei a partida no primeiro tempo, lacrei o notebook, para fazer coisa mais interessante, qual seja, amar a água implícita, o beijo tácito, a sede infinita. Navegar recônditos oceanos de prazer e de alegria, eita!, namorar o meu marido querido, até o diabo se escandalizar e Deus nada mais entender, assim seja. À galera do blog, as batatas, vão arrumar o que fazer, né? Desde o retorno do Rio de Janeiro continua lindo, estamos carrapatados, sem brecha para um inocente parágrafo, o causo principia e logo cansa, o mar não está mesmo para peixe, antes para a praia, em abençoada parceria. Me dá um beijo com tudo de bom e acende a noite na Guanabara, meu amor talismã. Você me dá tanta sorte, de cara.
Uma taróloga de Olinda, Dona Célida, aquele vulto de candura, falou bem assim, no dia da consulta: “o Imperador está chegando, Adriana, e ele vem de longe, cortando as ondas, para ser todinho seu, vem apagar a marca do açoite do passado, vem cicatrizar a chaga e secar o pranto de quem já sofreu tanto, vem na paz, bom e sereno, talhado para lhe ensinar as lições do amor maior, que você tão bem desconhece, minha menina, vem lhe inaugurar a primavera da vida, vem tratá-la a pão de ló, cuidá-la como da primeira rubra rosa amanhecida, da maneira que você merece, porque você, mais do que qualquer mulher, não se engane, não se martirize, Adriana, você, mais do que ninguém nesse atordoado mundo de meu Deus, merece. Não acreditei numa palavra, a senhora me acredite, comparei o discurso de Dona Célida a um anjinho barroco, atracar o barco, isso e aquilo, uma lapinha, superlativa babaquice, floreada de exagero, falando sério, não pretendo mais mentir nessa minha vida, fiz promessa. Achei que Dona Célida mentira com farofa, descaradamente, senhora dona da chave da poesia. Um belo dia, noite alta, vinha eu, lanhada de tempestade, gemendo de fome e de frio, mareada de tanto mar, exausta de naufragar, aí, tchan!, cumpriu-se a sagrada previsão da bruxa da Sé. Irrefutável destino: terra firme, afinal. Do escuro, avistei o cais, porto seguro onde ancorei meu saveiro, baixei e queimei as velas. Doravante, Ronaldo, velejar sozinha, nunca mais. 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

The seeds of love

O galope só é bom, bem livre de cantar. Minha vontade, não vou mentir, é apelar para a pradaria, o alazão desestribado, campina afora, baque solto e virado nos pentelhos de Jane Fonda, duas de mim no retrato, eu no berço da estrebaria, eu rasgando no dente o bucho da ventania, ancas indômitas, amplo quadril insurgente, requebrando na sela, mal escanchado. De sábado até aqui, sem tirar um dia só, absolutamente maracatudo convulsiona-me as artérias do coração e da mente. Às vezes, minha senhora, não se encontram as palavras que se está respirando. O apressado come cru, reza o ditado, entre sentir e elaborar, aspiro as partículas acontecidas, pelo bem de vagar, é meu dever inspirar e esperar. Mamãe eu quero morrer percutindo a tamarineira alfaia retumbante, numa batucada de bamba, alma cheirando a talco e a pó-de-arroz, valeu, Fluzão! (singela homenagem a Ronaldo, menino tricolor carioca, a loucura e a besteira que dorme comigo...), baticum bumbum de bebê, sacudindo as recentes pelancas ao sabor do jaz aqui mesmo, a vez é esta, no gargarejo da vida – bastidor e palco iluminado. Em cada pancada, o enredo ecoa, o bombo rompe a semente. A fofoquinha de hoje trocou de roupa dezoito vezes, anda ainda nua pelo meu país, a mais cristalina verdade. Mudou de cara e cabelo, mudou de olhos e riso, mudou de sonho e de tempo, desconfio que a carta na manga-rosa – doce essência imaculada – segue comigo, so(e)mente porque é franzina e sozinha, desde criancinha. Se existe um viés pacificado e ‘pacificante’ (UPP particular, rá rá rá...), no turbilhão de inconsistências do meu desajeitado estar à flor da pele do mundo, esse viés é o cochicho das horas sob o capacho dos dias, passa anel, passarela, passatempo, um ponto, um conto em cada canto da memória, história na gaveta puxa mote do decote costurado na coxia.
Nunca vou me libertar daquela música, desisto. Quando aposto meu fígado que esqueci, subitamente, assombrada, recordo. Dedilho o aço do instrumento impenetrável, solfejo, assobio, a voz encontra a nota remota, o verso antiiigo, como se ao passado barco coubesse resgatar o futuro náufrago, sempre fui retrógrada de todo, de carteirinha, caprina cantante e dançante... retroativa. Deve ser por isso que a minha saudade faz lembrar de tudo outra vez. Das muitas terapias experimentadas na roda de samba, amigos leitores, claro, que ninguém é doido de achar que sou madura, centrada, aprumada e bem resolvida assim (rá rá rá rá), de graça, nananina, já lanhei o lombo em quase todas as modalidades de tratamento psicológico existentes, divãs alhures, de todas as vãs naturezas, suingues módicos, caros, caríssimos, exorbitantes e indecentes, das muitas terapias, foda mesmo, com farofa, foi a provocante biodança. Entrei de gaiata no navio, entrei, entrei pelo cano, pela graça divina. Fazia análise transacional, na época, mais perdida de mim do que um ceguinho no ranger do tiroteio, morria de medo do respeitável público, do julgamento alheio. O psicoterapeuta, um dos sujeitos mais sabidos da minha vida, de saída, farejou que o buraco era muito mais embaixo, recomendou a suruba redentora: biodança na veia, me disse pra eu ser feliz e passar bem, ora bolas. Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci, mas depois, como era de costume, obedeci. Biodança, a ciência dos sentidos, é terapia grupal, trata-se do seguinte: tome-lhe música, emoção, movimento, envolvimento e confronto – a evocação do quarto escuro, enfrentamento decisivo com as aberrações internas que o sujeito deseje, de uma vez por todas, descortinar, para ver o bicho que vai dar, um lance assaz estimulante e exigente. Caiu-me como uma luva a brincadeira, dois encontros por semana, mais as imersões, no meio do mato, os instigantes projetos Minotauro, pau para comer sabão e pau para saber que sabão não se come, três anos de inferno e maravilha, sob o doce olhar atento, dentro dos braços de nuvem de Almira Rocha, a encantadora de gente. Por falar em saudade, Mira, onde anda você? Onde andam seus olhos que a gente não vê?
Anteontem, conversava com um colega de profissão, a respeito das relações interpessoais da sala de aula, assunto para um engradado de cerveja, vamos combinar. Papo de gente grande, a gente discordando visceralmente dos respectivos antagônicos pontos-de-vista, sem ganas de ofender ou injuriar, entretanto, deboche e humor maduros, jamais confundidos com insulto, a expressão da felicidade, afinal de contas, eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem, apenas sei de diversas harmonias, bonitas, possíveis, sem juízo final. Conquistei, ao longo da estrada, o direito de defender que o bacana de ser professor é a intimidade, minha senhora. O bacana da intimidade é a confiança recíproca de que a intimidade se alimenta, dia após dia. O bacana da confiança é o consentimento para errar o passo, sem desanimar. O bacana de errar é superar, acertar na mosca, logo adiante. O bacana de acertar é mudar. A gente não pode é trocar alhos por bugalhos: ser sem-vergonha não tem absolutamente nada a ver com ser vulgar, antes com esbanjar coragem de ser quem a gente é, essa metamorfose ambulante. Amor é o que dá coragem e coragem é flor que dá no generoso jardim do reconhecimento do limite individual, em vias de dilatar-se. Quem não soube à sombra, não sabe à luz. Dor de transformação. Cada coisa em seu lugar, cada lição a seu tempo. Os desafios são para você desistir, sem que isso, eventualmente, represente fracasso, sobretudo, para você resistir e celebrar o eterno deus mudança. The seeds of love blow with the wind of change, dear William. O galope só é bom, bem livre de cantar. Let your balalaika (should I say saxophone instead?) sing! 


Para os pupilos de Hospedagem 1, protagonistas da comovente aula de sábado. Did you ever think that we could be so close, like brothers? 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A dona da história

Minha suspeita virou fato consumado. Fábio Lima, da crônica passada, crônica passada é o máximo, acabei de me lembrar da minha mãe, de quem jamais esqueço, questão mesmo de sobrevivência, a minha mãe dizia ‘coma não, está passado!’, referindo-se ao alimento esquisito ao seu apuradíssimo olfato, àquele pão de aspecto e aroma vencidos, às frutas, principalmente, ‘coma não, está passada, é comer e adoecer!’, parece até que, no preciso instante de que preciso, preciso instante de que preciso, ali na esquina da Saudade com a Sossego, a dois passos da União, assisto, carpida de nostalgia, à cena: o nariz enfiado na geladeira, supervisionando as catequinhas plásticas, isso sim, isso não, isso Deus me livre. Deus é que sabe como escapo da disenteria e da cólera (é mágoa!), sem o seu cuidado, Dona Rita, minha estimada mamãe, mamãe querida do meu pobre coração atormentado... Deus é que sabe. Darei continuidade ao pontapé desalinhado de mais uma resenha antecipada, minha senhora, com fé no Altíssimo, vá desculpando tamanha escassez de foco. Antes, entretanto, imodesta com farofa, por todos os meios e para todos os fins, declaro que os mais belos nomes de rua do mundo inteiro, e de Marte, floresceram no glorioso Recife da dona da história. Rua da Saudade, do Sossego e da União. Rua do Sol, da Harmonia, da Amizade e da Aurora da minha vida que os anos não trazem mais. O miolo da Veneza Brasileira estende os braços para a Rua do Hospício - asilo, exílio - um privilégio para poucos. Receio enlouquecer. Acuda, mainha! Não bastasse a cor do acolhimento nos muros do meu Recife Antigo – abrigo, percorrendo os caminhos de volta para casa, piso poeira e poesia na polpa do meu chão adorado.
A crônica passada está dentro da validade, fique à vontade para ler a Trança, você, bem-vindo amigo recém-chegado à ciranda, García Márquez foi um upgrade, rá rá rá, convém intercalar, vez por outra, entre os meus devaneios idiotas, alguma coisa que, de fato, preste para alguma coisa, sabe como é, um vestido novo emprestado, para valorizar as curvas do blog, do contrário, uma hora dessas, aposto meu caçula que ninguém mais me visita. Trança tem fim, metade e começo, essa aqui, pelo andar da carruagem, não garanto. Por falar em dar uma passadinha para um café e duas cuias de conversa mole, soube que Fábio escreveu um comentário sobre Trança, ele próprio me disse, fiquei em cólicas para ver, Fábio é balaio cheio, minha senhora, um cara de discernimento e profunda inteligência, opinião abalizadíssima, portanto. Um pitaco favorável de Fábio, e eu, depois de amanhã bem cedo, publico uma brochura de devaneios idiotas, com direito à noite de autógrafo e tudo, tudo devidamente organizado por meus impolutos alunos do curso de Eventos, os melhores fazedores de festa do Rio de Janeiro. O lance final nada mais é que o seguinte: as pessoas pensam que escrevem coisas bacanas (ou não, rá rá rá), eu corro para autorizar as postagens, a resposta é o silêncio que atravessa a madrugada, uma brochação com pedigree, pense aí. Aconteceu várias vezes. Lamento informar, leitores do Brasil, mas não tenho como resolver isso porque não aprendi, eu abro a boca quando tenho certeza, do contrário... Gastei três dias e três noites construindo este virtuoso espaço de baixa tecnologia, uma janelinha chinfrim com varal para pendurar letrinhas, nada mais. Não sei otimizar o blog, até porque odeio o verbo otimizar, imagina se tenho cacife para orientar meus colegas sobre como comentar meu texto. A escola está recheada de informáticos de todas as fragrâncias, outra categoria de gente do melhor cetim, outros que trabalham pouco, rá rá rá.  Aliás, as incansáveis operárias daquela instituição são as professoras de idiomas, coitadinhas, sendo, delas todas, eu, de longe, a que mais trabalha, cada um venda o seu peixe, né, meu diretor? Minha sugestão para os nobres colegas é rasteira feito poleiro de pato: troquem uma ideia com essas adoráveis criaturinhas cibernéticas, meus respeitos e um beijo em cada um, busquem a luz no fim do túnel. Eu já morri de ensinar que o sujeito pode arruaçar à vontade, soltar a língua, picotar o verbo a valer, a moderação de comentário existe, ora bolas, sei fazer bom uso dela, basta o sujeito assinar depois, escolher a opção anônimo e enviar o presente. Se for de grego, eu mando para o raio que o parta, simples assim. Só não me deixe só, que eu tenho medo do inseguro, gentil senhora.
Desconfio que perdi o fio da meada, uma atipicidade. O mote de hoje, doçuras, em qual esquina dispersou-se, realizo que não sei. Sentei-me diante do computador, cabeça latejando, na intenção de aliviar a dor do peito opado de saudade. Engraçado é que meu cérebro doente sabe de cor a trilha sonora de todas as ausências. Não posso esperar tanto tempo assim, me sinto só, me sinto só, me sinto tão seu. Que culpa a gente tem de ser feliz? Que culpa a gente tem, meu bem? É o velho amor, ainda e sempre. As torcidas botafoguense, fluminense e rubro-negra sabem que Ronaldão bateu asa, está fazendo um curso sobre um desses assuntos jurídicos que ele ensina a qualquer desembargador, com o pé nas costas, desde criancinha. Ronaldo é rato de escola, tem uma disposição invejável para estudar o que já aprendeu, um troço impressionante. Ninguém tire meu marido por mim, sou completamente diferente, daí o encaixe perfeito. Eu sou de sair de sala de aula assim, totalmente impactada com minha esférica burrice sem vestígio de quina que eu perfure para acessar o conhecimento de qualquer besteira fundamental para a minha condição de humanidade diuturnamente (des)construída. Sempre contei com a sorte e com o correr da vida para entender um pouco de tudo, bem mais para adiante, no futuro de um pequeno dia. Desisti de fazer conta das intactas novidades descartadas à beira da estrada, investigações que sequer desembrulhei, esgotada de susto e de preguiça. Se alguém quer matar-me de amor, que me mate na Hospício, onde ainda hei de residir, beleza maluca, decerto. A solidão é fera, a solidão devora, é amiga das horas, prima- irmã do tempo, e faz nossos relógios caminharem lentos. Meu cérebro doente sabe de cor a trilha sonora de todas as ausências, meu amor. Onde é que você some? Que horas, me diga que horas, me diga, que horas você volta?

Para ele, minha bússola.

sábado, 3 de novembro de 2012

A luz é como a água


REVISITAR O QUE É BELO NUNCA É DEMAIS...

A LUZ É COMO A ÁGUA

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.
— De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.
Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.
— Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.
— Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.
Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação, 
— O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.
No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada.
— Parabéns — disse o pai. — E agora?
— Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.
Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.
Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.
— A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai.
E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.

— Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada.
— disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.
— E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.
— Não - disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.
— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela —, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.

No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.
Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.
O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse.
— Deus te ouça — respondeu a mãe.
Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.

Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.
No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.


(Gabriel García Márquez)

Para Lua Cris, no dia do seu aniversário.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Trança

Outro dia, não faz muito tempo, escrevi uma historinha encomendada, coisas do vasto mundo, minha senhora. Porque era sábado, o dia internacional da língua solta, Bruno Giga não se fez de rogado: ligou para a minha residência, despejou treze cântaros (palavra chique da gota serena!), treze cântaros de conversa mole, inclusive, minha senhora, dispondo de tempo para a experiência, no quesito papo furado, proponho que a senhora tente bater a nossa marca, não vai nunca farejar o pódio, digo logo, ninguém subestime a nossa hegemônica capacidade, minha e de Giga, de entreter falando água, somos os dois, minha senhora, absoluta e relativamente, insuperáveis, rá rá rá. Bruno quis que eu discorresse sobre sorriso, gentileza e afins, mais ou menos isso. Tanto lambe, até que fura, calçada com as alpercatas da humildade, indaguei se o pedido fora mesmo aquele: uma autobiografia, rá rá rá, só de sacanagem, que não perco a piada nem por um decreto. Joguei um charme arretado, fiz um agá, um bico de tucano, ‘pode ser, pode não ser, não sei se devo e se posso’, quando dei fé, minha senhora, queda livre, tinha despencado com a moléstia, na lábia do distinto colega, caí feito um patinho gigante. Entre mortos e feridos, salvei um verbo e estreitei um laço, assim seja a minha pobre sina, menina.
A moda parece que pegou, a senhora me acredite. Aliás, tenho uma teoria a respeito dos professores de Língua Portuguesa da nossa escola: essa gente querida anda por aí coçando o saco, não existe outra avaliação possível. A intimidade com o novo diretor me confere a possibilidade de sugerir mais trabalho para essa raça folgada, desacostumada do serviço pesado, minha mãe sempre me dizia: a mente ociosa, minha filha, é a oficina do diabo. Macaco não olha o rabo, né não, mãe? Não dou quinze minutos para essa brincadeira atravessar as fronteiras do desconhecido, distorcida até o espinhaço, e cair na boca do povo, infectada, a palavra pronunciada e escrevinhada, advirto-os, deixa de ser sua para virar Sandy, minha senhora, nas imundas mãos dos mal intencionados. Com um tiquinho de talento e muita sorte, vira literatura. Onde é que eu estava? Ah, sim, é o seguinte: tenho uma segunda encomenda. Professor Fábio Lima das Letras e dos Significados, outro desocupado com pedigree, com toda a sofisticação que lhe acompanha cada passo (uma alma elegante é o que há!), fez a solicitação: se você sentir vontade, Adriana, escreva sobre a sua relação com a leitura, será ótimo. Minha Santa Rita da Concordância Nominal, em que cumbuca fui enfiar o talo!
Não sou a criatura mais indicada para essa empreitada, vou explicar por qual motivo: eu tenho preguiça de tudo, inclusive de ler. A bem da verdade, na perigosa curva das 47 primas, estou virgem da leitura de um livro muito grosso, pronto, falei. A história pretende que eu desanime, seja comprida demais, líquido e certo. Também não tenho inteligência, nem paciência para perder meu sono desenredando rebuscamentos, Deus me livre, simplificar a vida... o resto, meus amores, vocês sabem. Acho formidável que associem o meu jeitinho especial para contar causo, com a boa leitura, sou de carne e osso, tenho ego de sobra para inflar, mas a mais pura verdade, sem aparatos, é muito menos relevante. Comigo aconteceu de, garota ainda, ler coisa de gente grande, admito, pelo azar de crescer entre adultos habituados ao exercício da leitura. Na minha casa, pensando direitinho, não existiam livros comprados exclusivamente para mim, éramos pobres, ora. Perdi, quem sabe, o frescor do texto especialmente costurado para a minha idade, pode ser. Nélida Piñon, Gilvan Lemos, Suassuna, Amado, Galeano, Vargas Llosa, García Márquez, tantos autores de responsabilidade, me lembro como se fosse hoje, conheceram-me peitinhos de pitomba, zanzando pela Rua da Aurora, deveras. Acometeu-me um cansaço de que nunca mais me livrei. Hoje a minha relação com os livros é muito engraçada. Desisto imediatamente da leitura que não se acomoda na rede, abandono qualquer preciosidade desconfortável, aqueles tijolos presunçosos sobrecarregando-me os braços. Depois que descobri que a literatura cabe na imensidão da crônica então, Maria Santíssima, o que mais faço é reler os cronistas da minha preferência, um prazer inenarrável. O segredo está na liberdade de gostar para ler, suponho. Sem restrições ou preconceitos. Gibi é uma farra. Acho também que ninguém precisa ser traça para aprender a escrever, escrever é outra beleza, que a leitura pode suscitar. Ou não. Minha outra mania é poesia, leio demais, compulsivamente, no papel, na internet, na rua, na chuva, na fazenda e numa casinha de sapê. Na opinião de quem devora poesia, um mero poema... inscreve-se. Nesse particular, minha senhora, estou com Quintana, e não abro: in the wee small hours of the morning (quando vai alta a madrugada), lindo isso, quem faz um poema, salva um afogado.

Para Fábio Lima, claro.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Prelúdio

Verde perto. Até onde me lembro, a pedra de novembro é a esmeralda. Para o insistente zunido do pé do meu requintadíssimo ouvido, ao passado dou graças, aleluia, novembro é acalanto de ninar gente miúda e graúda, novembro é uma caduca e bela cantiga, toada antiga, no doce balanço do mar da menina maluquinha dos meus cansados, incansáveis olhinhos baços: a hipotético-epiléptica esperança. Desde que me entendo por cérebro pulsante e independente, ao passado dou graças, aleluia, bem-aventurados os de fazer a infância brincar de pensar, desde menina maluquinha, tenho essa alma burlesca de girassol desequilibrado, sempre escolhi sentar-me à janela da mínima gravidade, quero levitar sobre a graça e sobre a beleza, quero ver e escutar o patético e o poético, do jardim da casa, inclinada para o lado da esperança. Toda vida antipatizei, de cara e sem subterfúgios, com as águas de março fechando o verão, antipatia natural extensiva ao insólito mês de agosto do desgosto. O homem que eu amo faz aniversário em agosto, tem crachá de leonino, inclusive, mas ainda não me fez desfazer a inexplicável cisma, cerveja como são as coisas. Cá entre nós, duvido que consiga. Em contrapartida, simpatizo de morrer com maio, setembro, janeiro e novembro, novembro então, minha senhora, é o meu xodozinho, no dia que eu mentir, a senhora já sabe. Às vezes, imagino que esse chamego todo passa por Cris, minha sobrinha adorada, meu sol, meu ar, permanente erupção de estrelas dentro do meu céu de acaso. Cris nasceu numa ensolarada manhã de novembro, o dia mora na minha cabeça e nas senhas do banco, um bom psicanalista confirmaria a suspeita, caso eu desejasse, lamentavelmente, assim... eu não desejo.
Novembro tem feriados, no plural, um plus a mais (rá rá rá) para ele. Soube que a gente vai ficar de papo para o ar quase uma semana inteira, mais dois dias da semana seguinte, nem procurei entender como é a história, assenti no ato, à guisa de cordeirinho manso, gostei tanto da informação, deixei quieto, temendo o fatídico ‘não é bem isso’ dos mal amados bruxos de Salém de plantão, dessa gente, andamos bastante bem servidos, naquela respeitável instituição, faz parte. A propósito, tenho, doravante, um pacto de sangue comigo, devo comunicar-lhes: enquanto a autora deste blog respirar, nenhum ser, vivo ou morto, entre os súditos, reis e rainhas da terra, ninguém, absolutamente ninguém, nunca mais, vai meter aqui o bedelho. Prometo disponibilizar, na aba deste modesto diário, oportunamente, um espaço de aproximações, chamemos desse modo, um espaço com as minhas sugestões de leitura, abalizadas, portanto, leituras mais prazerosas e edificantes, aguarde. Os incomodados, mudem de estação, a minha porta da rua é minha serventia. Voltando ao assunto, menos insolvente fosse (rá rá rá), devidamente adimplente estivesse (sonha, Creonice...), tomava um trem para as bandas do Recife dos rios cortados de pontes, mas era na hora, feito caldo de cana, estou tonta da profunda saudade. Não tenho grana para um grapete com mariola, vou no Natal, por conta da imensurável generosidade de Ronaldo, vida longa para meu idolatrado Simba! Vivo.
Adoro ser surpreendida por Papai Noel, numa esquecida vitrine de novembro. A hidrocele do bom velhinho lateja, tadinho de Santa, vergado sob o peso do saco cheio, abarrotado de plausíveis e utopicíssimas expectativas. Novembro é o cavalo na sombra, é pit stop, pausa é a palavra, intervalo incubando dias de triste festa, que não há São João do carneirinho que me convença da alegria de dezembro. Dezembro é infinita tristeza aguda, vestida de gala, nada mais. Inaugura-se, afirmo-vos, no alvorecer deste primeiro de novembro, guarde a data, uma nova era, comprometida com o trabalho e a verdade, revolucionária em cada acerto e em cada erro, tenho certeza. A semente germinou, vai brotar do sal a colheita, pura e verdejante. Guardei, na despensa, os principais ingredientes das crônicas vindouras, raros mantimentos pinçados da posse, quem não sabia, agora saiba. As compotas e os potes cochilam, maturando, é lento o procedimento, deixa estar. Por hora, cumprimento o diretor eleito pelo discurso exato, limpo e comovente. Beijo Mariana e Rafaela, suas lindas filhas – seu sangue e sua alma – promessa. Acolho, em meu abraço de nuvem, a sua esposa – humana demais, como você – uma mulher simples e feliz, a quem você entregou seus olhos de lince, para que deles, olhos apurados, a mulher que o ama de amor igual ao das meninas (e tão diferente...), tomasse conta (que coisa emocionante!). Sábia decisão, meu diretor, sábia decisão. Seja muito bem-vinda, Lílian. Tempo haverá para o crescimento da frondosa árvore de espesso tronco. Dos ramos, dos frutos e das raízes. Um brinde ao futuro.