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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Vai passar

Desisti do salão de beleza por causa da chuvinha intermitente, ora chora, ora estia, espia. Os leitores mais recentemente integrados ao fuchique, meu faz de conta predileto, meu jeito manso de louvar aquilo que deve ser louvado – o nada e seu rugido – a filosofia do breve instante, breve, como a perdida flor que, longe, floresceu e o homem não colheu pra o seu amor (Geraldo Vandré, a bênção!), os leitores recém-chegados ao modesto reduto, desconhecem a rotina da sexta-feira. Sexta-feira é dia de estradar, qualquer desculpa valendo para o roto chinelo ganhar o oco do mundo, o paradeiro, no mais das vezes, é mesmo o salão de beleza – nicho de mínimas e desnecessárias historinhas para boi dormir – a matéria-prima deste glorioso espaço de inutilidades. Nosso venerável coleguinha, o gigante Bruno – o adorável Carlitos da instituição – um vagabundo arruaceiro, pouquíssimo afeito à labuta proveitosa e decente, tem dispensado suas muitas estéreis horas de trabalho, em nossa venerável escola, mergulhado na difícil  tarefa de arrebanhar, no laço, novos seguidores para o bloguinho. Bruno é um desocupado, cinco contos de réis e uma mariola para quem bem lhe arranjar um tijolo de sabão amarelo mais uma trouxa de roupa do seu tamanho, ninguém carece de arqui-inimigo, abrigando, no calor da algibeira, uma peça como essa – o gigante Bruno, meu amigo. A minha vontade, não vou mentir, é gastar o dia inteiro no fundo da rede, perdida em pensamentos para boi dormir, sem atinar para colocação pronominal, ortografia, conjugação e sintaxe, logo eu, que optei por ensinar, mais ou menos mais para menos, a língua do patrão, justamente para não me amofinar com essa questão enjoada do acento. Certo é saber que o certo é certo, havendo leitor, há de haver leitura, a culpa é todinha do gigante Bruno, ele me paga.
O assunto da crônica da sexta-feira em curso, e em decúbito dorsal, é um pé no saco, digo logo. Tento desconversar, lá vem o debate, com a bola toda, para assanhar, sem vestígio de compaixão, as frágeis fibras do meu pobre e insensato coração.  Ninguém tem letreiro na testa, mais um ditado arretado de Dona Rita, do qual preciso, em edição extraordinária, discordar, desde criancinha. Tem gente cujo mau-caratismo estampa os cornos feito um neon, um pisca-pisca abjeto, fosforescente, a reluzir a fronte sem vergonha, incandeando a escuridão do cego de nascença, o meu caso, uma coisa impressionante. Ontem à noite, no auditório, faltou um dedo mindinho para eu descer do salto e esculhambar, com os mais agudos impropérios, uma meia dúzia de simpatizantes da banda podre, gente retinta de alma, sem estilo, sem educação e sem compostura, freneticamente a debochar do meu candidato a diretor, isso bem debaixo do meu nariz, um acinte. A senhora veja bem, minha senhora, não se trata de homogeneizar preferências, três vivas à pluralidade de opiniões acerca do feito e do não feito na sala e no porão do nosso campus, o sujeito pode fomentar discussões em todos os idiomas latinos, a dar com o pau, o sujeito pode desfraldar bandeira de toda cor, lutar até morrer por aquilo que julga prioritário para si e para o outro, pode e deve, aliás, o sujeito não tem o direito é de debochar de quem, livremente, decidiu atuar noutra frente de batalha. Lamentavelmente, partilhamos, sob o mesmíssimo telhado de vidro, as agruras e venturas do cotidiano, o joio e o trigo. Sorte de quem, na graça e na raça, consegue separar os grãos de primeiríssima qualidade.  






(TRECHO RETIRADO DA CRÔNICA, A PEDIDO DO PROFESSOR DAMIÃO ALMEIDA, EM COMENTÁRIO DE SUA AUTORIA, PUBLICADO ABAIXO. NA SUA INTERPRETAÇÃO, HOUVE, DE MINHA PARTE, NO TEXTO, IRRESPONSÁVEIS ACUSAÇÕES INFUNDADAS A SEU RESPEITO. PEÇO DESCULPAS POR QUAISQUER ABORRECIMENTOS. JAMAIS TIVE A INTENÇÃO DE OFENDÊ-LO)  






Abro um novo e apoteótico parágrafo, o grand finale, para reverenciar o impávido Anderson Cortines, nosso bebê Johnson’s, a carinha rechonchuda na reta, tranquilo e infalível como Bruce Lee, por um IFF com a cara da gente. Sua indumentária para matar foi a velha camisa polo de tom escuro, a disfarçadeira das indesejáveis protuberâncias abdominais, a camisa polo preta de todo santo dia, Anderson Cortines escolheu vestir-se de negra transparência. Desejo resumir sua fala em um mero verbete de fim de dicionário: verdade, um bom começo de conversa. Anderson Cortines tem a extraordinária capacidade de envolver seu discurso no nítido sagrado manto da assertividade espontânea, nada parece estudado, ele faz do desfalcado quebra-cabeça uma brincadeira simples e fácil de jogar, atributo de quem é líder de verdade. Impossível desacreditar de sua nobre palavra. Os desafios que o aguardam são de meter medo em jaguatirica parida, quem viver, verá. Vi um professor colar o adesivo no peito, logo após o debate, numa atitude que me deixou feliz pacas. O novo  gestor será legitimamente conduzido ao poder – trono e coroa de espinhos – pelas mãos de seu sofrido, combalido povo, vamos de mãos dadas. O novo gestor contará com a dor e a delícia de tal respaldo, para governar para o bem, pelo fortalecimento e desenvolvimento da escola, templo de onde quero sair para os braços da morte, passando pelo purgatório dos meus mais íntimos conflitos de mulher, na direção do céu dos inocentes, para a minha vida eterna, com fé no Altíssimo. Torço muito por Anderson. Confio.  Nenhum reitor de juízo ousará virar-lhe as costas, nisso aposto minhas prejudicadas córneas e o fígado. O estandarte do sanatório geral vai passar. Bom desfile.

domingo, 23 de setembro de 2012

Festa

“Estou sendo perseguido, covardemente, pelos adversários”... Sim, fidelíssimo leitor, domingo é dia de Fausto Silva, entremeado por Alair Corrêa (é onze!), a cada intervalo comercial, no chão de estrelas do palco da Vênus platinada – plim-plim. Alair perde todos os cabelos da peruca, perde o tom, muda a cor da íris psicodélica - lente de contato gelatinosa, salve, salve! - que vai de azul-bebê à violeta, o sujeito está injuriado com as calúnias, política é isso. Será? Justificarei a ausência, dia 7 de outubro, aqui na capital dos Lagos, Cabo Frio dos meus amores, em um espaço de votação qualquer, não transferi meu título de eleitor para esta tão acolhedora e esfuziante cidade, abigobalice com pedigree. Alair já foi prefeito, aprontou, dizem, roubou abaixadinho, achou pouco, deseja repetir a dose. Meu marido fica para morrer, “o cara tá enrolado com a Justiça até as amígdalas”, retruca, alterado. Meu marido trabalha no Fórum, deve estar a par das inúmeras falcatruas do candidato. Por aqui, parece que vai caber ao Tribunal Eleitoral a decisão da eleição. Tomara. O filme já passou. PSOL neles, pessoas. Com esse meu raciocínio naturalmente lerdo e picotado, aos primeiros acordes da musiquinha do Fantástico, o show da vida, sei não, o jeito é “entrar no acaso e amar o transitório”, torcendo para que o polêmico tema me conduza, sem mais delongas, a um porto seguro de sombra e de água fresca, preciso alinhavar a crônica, concluir o devaneio, atracar o barco e tirar uma pestana, minha presbiopia almeja descansar.
Conto com a reencarnação para ajustar meu descompasso estrada afora, haja vista o quanto deixo tudo para depois, deixo e me arrependo, sempre foi assim. Pela segunda vez, acreditem, escorre-me, entre os artríticos dedos da mão, a oportunidade de votar em Cabo Frio. Quando me lembro de procurar o endereço da birosca onde a gente cuida da transferência, pimba, passou o prazo, fica o exercício da cidadania, de novo, procrastinado, uma lástima, meu velho nunca me criou descomprometida assim. Seu Biu votou enquanto viveu, minha irmã mais velha, Iêda, ficava uma arara, os dois votavam na mesma escola pública, na mesma seção, saíam juntos, “o que o senhor vai fazer naquela confusão, painho? Tem necessidade disso?”  “Confusão não, Iêda, é festa.”  Seu Biu era o máximo, uma lenda. Via a televisão, lias as notícias, conversava com as filhas letradas, com os genros doutores, com os vizinhos, com o povo passando na rua, escutava, sobretudo, a voz da própria consciência, era sensível, inteligente e muito justo, indignava-se, comprava briga, tinha e formava opinião, um homem admirável, meu querido pai.
Hoje, sem chance de escapatória, participamos de uma carreata, um candidato de cujo nome não me recordo, coisas da política. Será? Ronaldo inventou de almoçar batata rostie, a melhor da região é servida num restaurante lá em Búzios, tocamos para a badalada cidade, de repente, tchan, tinha um mar de bandeiras no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma zoeira dos infernos, já que tá dentro, deixe, fiz foi gostar, zoeira não, é festa. Um abraço da democracia. Política é isso. Será? Ruim foi almoçar picanha, sonho frustrado, o estabelecimento estava fechado, acreditem. Pois bem, estou sendo perseguida por esse assunto cabuloso, desde as duas horas da tarde, tenho de escrever, do contrário, Morfeu, esta noite, não me faz visita.
Pensei em procurar, no dicionário, o significado da galáxica palavra, desisti, em seguida, envergonhada. Política? Tudo é política. Vivemos um momento político importantíssimo, dentro da instituição de ensino onde exerço, a muque, mais ou menos plenamente, minha profunda vocação, a profissão dos exibidos. Nunca soube de um professor que não fosse, no frigir dos ovos, um vaidoso de carteirinha. Conquistamos o direito de, no próximo dia 3 de outubro, eleger um diretor-geral com a cara da gente, numa peleja do diabo com o dono do céu, diga-se de passagem. Ninguém desconhece de que lado estou, fazer uma escolha desse quilate, assumindo todas as responsabilidades e riscos inerentes ao ato, é a genética da minha família. Por que Fulano de tal? Anderson? Empatia. Identificação pessoal e profissional. Respeito e confiança. Quem não escolheu esse lado, ficou do lado de quem escolheu o outro lado, é um ponto de vista diferente. Política é isso: festa. Entrada franca.  Meu desconforto é a vertigem. Do alto do muro de onde alguns colegas, estranhamente, jamais se lançam, na direção do futuro a que aspiram. São educadores? Uma postura contraditória e esquisita demais para quem ganha a vida na vitrine.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Tem o dito

O que não tem remédio, remediado está. Amanheci de cabeça quente, abacaxi para todos os gostos, daiquiri matutino sem açúcar, azedando a minha doce sexta-feira, meu mel, meu favo, o dia da graça. Desmantelada, pintei de azul meus sapatos, ilustríssimo conterrâneo Carlos Pena Filho. Tomei o rumo da rua, andei por andar, andei. Todos os caminhos convergiram para ela, minha mãe, a matriarca da turba desvairada, a senhora do meu destino. Dona Rita tinha pouca escolaridade e muito juízo. Sabidinha da Silva, confiou seus rebentos aos cuidados da sabedoria popular, uma decisão muito acertada, Deus fala pela boca do povo, ela sempre soube. Pois bem, os ditados certeiros de Dona Rita perseguiram-me no trajeto de volta para o meu canto, desassossegados, uma enxurrada, uma avalanche - sinal de que devo compartilhar o ensinamento. Aos meus mais íntimos tormentos respondia, só para citar um exemplo: o que não tem remédio, remediado está, Adriana, apenas dê tempo ao tempo.
Tempo ao tempo. Nunca ouvi verdade mais verdadeira. Se angústia e desespero resolvessem meus problemas, querida, minha vida seria um mar de rosas cor-de-rosa, que de chororô e de esperneio, vamos combinar, eu entendo. Outro dia, conversava com Manuela, minha adorada afilhada e sobrinha, exatamente sobre a onipotência do Master of Universe – o Tempo. Manuela e o irmão cresceram na discórdia, inimigos mortais, um precisando do extermínio do outro para sobreviver, a relação de amor e ódio mais absurdamente complexa e dolorosa que tive a oportunidade de acompanhar de perto, entre pessoas do mesmo sangue, completamente dissuadida já, de alguma possibilidade de entendimento, de uma nesga de harmonia dentro daquela casa assombrada. Sofri demais por minha irmã Nilde, a mãe dos dois, uma mulher de muita fibra, de muita coragem e de muita fé, que viveu para os filhos, para criá-los para o bom e para o bem, ela e o esposo, Manuel, um dos homens mais extraordinários da minha convivência. Dê tempo ao tempo. Pois bem, venho, por meio desta, anunciar, nó na garganta, que o inimaginável aconteceu: a paz. O tempo tudo acomoda, e não é porque a gente esquece. É porque a gente envelhece.
O errado é da conta de todo mundo. Outro dia, corrigindo provas, surpreendeu-me um desenho de bruxa, mais um palavrão bem cabeludo, justamente ao lado do meu nome, na prova escrita de uma aluna, isso recentemente, aqui na escola do Rio. A bruxa era eu. Senti-me esbofeteada na face, fiquei estupefata com o atrevimento da moça, achei aquilo tão desrespeitoso, ainda mais assim, rabiscado em um documento, decidi conversar com ela na aula seguinte. Pois bem, a sabidinha da moça, que não é besta, escafedeu-se, na aula seguinte. Contei o ocorrido a seus colegas, sem omitir uma vírgula, abri o coração, exteriorizei todo o meu sentimento de indignação e tristeza sobre a debochada atitude, falei e pronto, lavei e enxaguei a égua. O errado é da conta de todo mundo, minha mãe soprando ao pé do ouvido. Repeti, palavra por palavra, quando a tal moça, nariz empinado, veio queixar-se, uma semana depois: o errado é da conta de todo mundo. Portanto, caros leitores do meu delírio, quem sai aos seus, não degenera, herdada a herança, viva a vida num BBB, como se lhe vigiassem cada soturno  passo, andando na linha, agindo reto, ainda que sozinho e no breu da noite. É da conta de todo mundo, aquilo que se faz fora do certo.
O risco que corre o pau, corre o machado, a viga mestra do meu bem sucedido matrimônio, um relacionamento fechado a sete chaves, advirto-os, para começo de conversa. É provérbio da minha santa mãezinha, a respeito de como conduzir um casamento. A máxima, com a qual concordo, do dedão do pé até o alto do cocuruto, é feijão com arroz sobre o linho do leito conjugal em que dormimos meu marido e eu, Dona Rita e Dona Conceição, minha sogra, uma mulher que admiro sem ver. Nós quatro sabemos que para um doido, outro na porta. Quem com ferro fere, com ferro será ferido, as tentações pululam nas esquinas do cotidiano. O que equilibra um chifre é outro, de igual envergadura, Ronaldo que nunca se esqueça disso.
Em terra de sapo, de cócoras com ele. Curto e grosso. Nunca descobri maneira mais eficaz de um filho assimilar a noção de hierarquia. Galo onde canta, janta. Isso era mainha sugerindo qualquer coisa que lhe conviesse, uma danadinha. Do ditado, a gente entendia o que ela queria. Esse servia para ensinar que, para o sujeito cantar de galo, o sujeito precisa antes fazer a feira e pagar as contas. Primeiro a independência financeira, depois a desobediência às regras que não lhe parecessem justas. Justíssimo. Para mim, tudo fez e faz todo o sentido.  Servia também para a gente entender que ela não pretendia preparar comida depois dos pratos lavados e da cozinha arrumada. Os retardatários que comessem alhures, retornassem ao lar de barriga cheia. Mato tem olhos e paredes têm ouvidos. Casa de ferreiro, espeto de pau. Escreveu, não leu, o pau comeu. Muito riso, pouco siso. Sua alma, sua palma. Ruim com ele, pior sem ele. Quem muito se baixa, o fundo aparece. Gaiola bonita não dá de comer a passarinho. Roupa suja, lava-se em casa. Tudo demais é veneno. Água morro abaixo, fogo morro acima e mulher quando quer dar: ninguém segura.
Quem boa Maria faz, em sua casa está em paz. Fui menina e fui moça, escutando a frase, acolhendo cada fonema, compreendendo tudo, perfeitamente. Dona Rita nunca gostou de ver a prole por aí, espalhada pelo oco do mundo. Queria os pintos debaixo da asa. Um belo dia, inventei de alisar banca de escola, fui bater na universidade, um desperdício. Uma professora dessas que não pisam no assoalho, uma sem graça de carteirinha, nem me lembro do nome da insossa antipática, um belo dia, sem mais nem menos, o pavão metido a cavalo do cão quebrou o encanto: boa romaria faz quem, em sua casa, está em paz, corrigiu. A senhora, por acaso, dependia dessa informação para seguir vivendo? Nem eu. Fica o dito por não dito. O melhor deles, o mais impactante, guardei para o fim, para suas reflexões mais (im)pudicas, esse me cai como uma luva: língua falou, cu pagou. A minha cara. Minha velha temia pela indefectível dobradinha tagarelice – abigobalice, a qual, desde cedo, caracterizou, insígnia distintiva - verruga -  a natureza de sua caçula. Sabe-se lá o que será de você, Adriana, tão avoada, e com essa língua de passadeira de igreja.  Nunca lhe tirei a razão, jamais poderia.

SONETO DO DESMANTELO AZUL


Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Abracadabra

"Vou apertar, mas não vou acender agora". Quem conta um conto, aumenta um ponto, atento ao momento da cobra fumar. Não pense que o cronista vive de brisa, costurando acasos ao seu capricho, ao seu bel-prazer, quando lhe dá na telha. A banda toca outro dobrado, vou esclarecer bem direitinho. De fato, o chamado é instantâneo, bate e fica, a gente sabe logo que emprenhou. O pulo do gato consiste mesmo é no encontro das águas, na sua premência em dar à luz, tão bonito isso, que vou repetir, dar à luz, a premência em dar à luz, coincidindo com a hora da pura semente romper-se em história. A gestação pode durar horas, dias, semanas, a vida inteira. Conheço pessoas que tencionam escrever faz oitocentos anos, acumulam lotes de motes, jamais entrando em trabalho de parto. Devem ser os casos mais complicados, para fórceps ou cesariana, multiplicadas por mil as chances do doloroso processo resultar em feto natimorto. Tantas esquizofrenias interpõem-se entre os atos de ver e escrever - pavor do erro, do julgamento, pavor de desapontar o outro e a si mesmo – desumanas as exigências sobre os ombros nus, os ombros suportam o mundo, mas são ombros de criança, criança suplica colo e aceitação. Um mínimo de condescendência para consigo, de  laissez-faire  e de cabeça de vento são fundamentais, não se pode forçar demais a natureza, entretanto.
Tenho tarefas importantes a realizar hoje, preciso preparar uma prova e uma aula. Não farei uma coisa, nem outra. Meus leitores são poucos e muito bons de coração, ninguém vai sair por aí badalando aos quatro cantos da escola, que eu me viro nos trinta, na base do improviso, contando com a experiência de que nem me lembro mais, minha memória é fogo. Hoje eu não digito uma prova nem para o Sumo Pontífice, estou pelas tampas com o desserviço do departamento de APOIO da instituição de ensino onde me arrasto, até o dia da bem-aventurada aposentadoria, não tarde, minha linda, que quero lhe usar, e o quanto antes. Semana que vem, vou pedir cópias de prova aos quarenta e seis do segundo tempo, só quero ver o bicho que vai dar. Ando doida por um revide. Meus meninos vão gostar é muito da brincadeira de adiar o exame, rá rá rá. Capricorniano é o cão, eu sou, e dobrada, feito tapioca. Agora é o seguinte: se existe uma coisa que me quebra, mesmo no lugar da solda, no país da delicadeza perdida, essa coisa é a gentil delicadeza, a virtude de curar todas as moléstias. “A delicadeza é a flor da humanidade.”
Um dia, minha irmã Dau, ainda menina, roubou uma flor do jardim de Dona Hermengarda, a vizinha lá de casa, para dar de presente à mainha, na mais singela demonstração de amor filial de que se tem notícia. A bichinha chegou na cozinha, o coração saindo pela boca, exultante pela proeza, ninguém a tinha flagrado no delito, os olhinhos apertados, rasos de afeto, estendeu a mãozinha, a rosa em flor, mainha fez foi virar Hulk. Eu não presenciei a cena, eu nem existia, na época, dizem as más línguas que mainha deu a braba, arrastou Dau pelo braço, Dona Hermengarda ficou chocada com a violência, tanto estardalhaço por causa de uma reles florzinha, a rosa de Hiroshima foi devidamente devolvida, acompanhada de um milhão de pedidos de desculpa. “Dona Hermengarda, por favor, a senhora me ajude. Eu não crio filho para se apoderar do que é dos outros, e sem pedir licença. Ela vai lhe pedir todas as desculpas que a senhora merece, vai lhe pedir essa flor, vai agradecer, só assim é que eu aceito o presente.” A pobrezinha da Dau chorou de morrer, passou a maior vergonha da vida, coitada. Aprendeu. A gente foi criada desse jeitinho ursinho carinhoso, pela graça divina. A minha mãe criou-se sem mãe, mas soube ser uma, com louvor. A minha mãe não alisou banca de escola, ela mesma e mesmo dizia, “não alisei banca de escola, mas sei ser educada e quero filhos educados.” Cresci fazendo concessões de todas as fragrâncias, acostumei-me a olhar para todos os lados da lei, “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas, com gente é diferente.”  Cresci pedindo desculpas até às pedras do chão, pelo meu excesso de peso. Cresci pedindo licença para caminhar ao sol. Cresci grata à humanidade, até pela bondade que nunca me fizeram. É berço. As palavrinhas mágicas vadeiam aonde vou, abrindo-me todas as portas, exceto as do departamento de APOIO ao docente, alguém deve ter enterrado uma cabeça de burro ali, o setor precisa ser exorcizado, com a máxima urgência.  A gestão é ditatorial, incompetente e causa um mal irreparável ao desenvolvimento da escola e do aluno.

domingo, 16 de setembro de 2012

Carga pesada

Lá vou eu de novo, como um tolo, procurar o desconsolo que cansei de conhecer. Arrematava a nova crônica, o pior aconteceu. Computa, computador, computa! Travou a porra toda aqui, foi-se o textículo pelo ralo, escorreu para o buraco negro da memória escassa, não sobrou uma onomatopeia, um ditongo sequer, para eu fazer um chá de camomila e desistir de me eletrocutar! Puta que o pariu, meu gato pôs um ovo! Gato não põe ovo, puta que o pariu... de novo! Três vivas para a folha nua e crua e para a fiel companheira bic ponta porosa, no suave deslizar sobre a pele branca do papel. Três vivas para o eterno enrabichamento por meu love affair, minha adorada caligrafia, meu caso sério, você mais eu e um bolero. É por essas e outras que não dispenso meu caderninho de páginas recicladas, um baú de côncavas reentrâncias, um passo de dança, minhas roliças letrinhas afoitas, jardim de maravilhas azuladas a bailar. A dificuldade reside entre a máquina e o assento, o marido reitera, zombando da minha escancarada ignorância, o que não sei sempre foi da conta de todo mundo, não ligo um tico, ria rios, Ronaldo, ria de rachar o bico. Confesso que não atino na razão por que não me levanto dessa maldita cadeira para um revigorante banho de mar. Na janela o domingo avança, verde, anil e amarelo, insistindo no convite impossível da criatura recusar.
“Eu conheço a minha liberdade, pois a vida não me cobra o frete.” Liberdade para escolher o melhor diretor geral para a escola onde dou meu sangue, em pleito a realizar-se logo mais, em outubro, against all odds, pela graça divina. Dar o sangue nas empreitadas nas quais mete o bedelho, aliás, nem é exclusividade do meu virtuoso candidato ao espinhoso e indigesto cargo de gestor do nosso campus, admito que também carrego o cacoete, modéstia à parte. Trata-se, inclusive, de apanágio familiar, arriscaria. Se ergues da justiça a clava forte, verás que um Guimarães de Oliveira não foge à luta, corre em nossas veias o ascendente senso de dever, saber que o certo é certo é herança de Biu de Rita, meu pai grande, que Deus o tenha em Sua glória infinita, assim seja. Minha religião é o trabalho, desde o princípio era o verbo, isso lá para os idos de 1986, me lembro como se fora anteontem à tardinha. Já da crônica perdida, querido leitor, nem um acento, lamento.  Minha religião é a palavra empenhada, hoje postarei uma historinha pé quebrado e dente sujo, necessito honrar o sobrenome e o compromisso. Sem querer tocar no assunto e já beliscando, amanhã vai ser outro dia. Cada paralelepípedo da Baía Formosa vai se arrepiar. Da esperança descerrem-se as esplendorosas cortinas, Alexander, o grande, vai passar.
Saber que o certo é certo. Ontem presenciei uma cena de partir a geleira de qualquer coração embrutecido pelas borrascas da vida. Na clínica veterinária, enquanto aguardava a vez de Valentim tomar vacina, um acontecimento, diga-se de passagem - a ferinha ferida é uma fera - tive a oportunidade de constatar, indignada, até onde pode chegar a maldade das pessoas. Uma criança de apenas cinco aninhos amealhou moedinhas o ano inteiro - 700 reais - para comprar uma cadelinha. Três dias após a chegada do animalzinho em casa, uma convulsão, o atendimento de urgência, o esclarecimento da médica: Nina desmamou muito antes do período recomendado, é minúscula, fragílima, vai ficar internada, tem poucas chances de sobreviver. Nina foi vendida por uma senhora muito da calhorda, uma tal de Adélia, que não quer tomar conhecimento do ocorrido, diz que não tem nada com o pato.  A criança adoeceu, a mãe me contou, entre soluços. Uma garotinha de cinco anos, sofrendo feito gente graúda. Fiquei horrorizada. Podia ter orientado a moça a lutar por seu direito na Justiça, pedir um laudo ali mesmo, entrar pesado, brigar pelo ressarcimento das altas despesas. Paralisada, não movi uma palha, entretanto. Solidarizei-me no pranto calado, tristíssima da vida, desiludida da humanidade.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

À vida como ela é

Conforme acordo firmado entre vocês e a minha envaidecida vaidade, na auriverde alvorada da Independência, com o coração estofado de clorofiladas esperanças de melhores dias para a brava gente brasileira, longe vá, temor servil!, reabro, britanicamente pontual, os trabalhos bloguísticos da sexta-feira. Estaria na maciota, ainda que a sexta-feira em curso não fosse sexta-feira de vadiagem, meus venerados leitores sabem que minha semana é inútil até a quinta-feira, o dia seguinte amanhece baiano, debochado e indolente, sob medida para a potencialização da imaginação desocupada, a fonte da vida. Confio cegamente no poder da imaginação desocupada para o resgate do planetinha azul e para a salvação da humanidade.  Da ociosidade vai nascer a novidade, podem apostar. Na condição de capricorniana pessimista por natureza, desconfio que esse privilégio agoniza, rumores anunciam  um futuro sombrio, lombos açoitados de segunda à noite da sexta-feira, que é pau para comer sabão e pau para saber que sabão não se come, eu não mandei a senhora dar parte ao povo dessa folga tanta, desse seu flozô, agora aguente o tranco, salário digno a senhora já tem faz é tempo, o governo que o diga. Um pé-de-moleque autêntico para quem sabia que ‘ficar de flozô’ é ficar enrolando, fazendo porra nenhuma, de papo para cima, azeitando o eixo do sol. Pernambucolismo saudoso. Pernambucanês é lindo.
Paulinho da Viola é o mais doce, elegante e requintado representante da música brasileira. Tirei o popular porque popular virou sinônimo de lixo. Popular agora é qualquer porcaria sem letra, sem harmonia, sem melodia, droga das brabas, vírus letal, devastador e hipnotizante, que lhe usurpa o bom gosto e o bom senso, assumindo ares de hit no som do seu carango e do seu computador. Sou maior e vacinada. Quando eu era muito jovem, a estante da sala de estar da casa de Candeias abrigava um tesouro, inúmeros sensacionais LPs de música brasileira, preciosidades que, no correr dos anos, lapidaram meu ouvido e paladar, sutil, irrevogavelmente. Meu peito estofa igualmente a papo de peru, sinto-me cevada de orgulho dessa herança. Havia um disco do Paulinho chamado Memórias Cantando, na capa, um bebê, vestido de arlequim, erguia os bracinhos para um pássaro pousado ao alto, um disco espetacular, revolucionário na poesia e na delicadeza, sei todas as letras de cor... Ó, dona dos sonhos, ilusão concebida, surpresa que a vida me fez das mulheres, há, no meu coração, uma flor em botão que abrirá se quiseres... Mente ao meu coração, que, cansado de sofrer, só deseja adormecer na palma da tua mão... Lágrimas no colo e arrepios na pele ao recordar as canções. Também nele, a extraordinária Coisas do mundo, minha nêga, hoje eu vim, minha nêga, querendo aquele sorriso que tu entregas pro céu quando eu te aperto em meus braços... Essa não me sai da cabeça, vocês entenderão por quê. Ou não.
A minha labirintite é figurinha repetida da crônica anterior, a fonte secou? . Por causa dela, visitei meu querido oftalmologista, Dr. Eduardo, ontem pela manhã, só para saber que o mal é da idade que vive a tal menina. Conversamos longamente, a recomendação foi a consulta a um neurologista e os oclinhos de leitura, aqueles de Dona Benta do Sítio, a senhora deve se lembrar. Caminhar para os cinquenta anos não tem sido tarefa das mais confortáveis para a minha pessoa, mas não entrego os pontos. Doravante, serei esses seis olhos pendulares, barco embriagado ao mar, é doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar. Quanto mais óculos, melhor para a minha tão desgastada imagem madura. Preciso impor o mínimo de respeito, oras. Na saída, entrei numa lanchonete para o tradicional cappuccino da semana, mais uma coxinha gigante, que não sou de ferro. Um aviso me chamou a atenção, até anotei num guardanapo, a reprodução é, portanto, fidedigna:  Sr. Cliente, ao sair, confira sua mesa, pois não nos responsabilizamos pela perca dos seus pertences. Obrigado. A gerência. Ao pagar a conta, comentei o deslize bem baixinho, hesitante, com a jovem do balcão. Ela me sorriu e disparou, categórica, peremptória: - Não, senhora. É perca mesmo. A assertividade que, em 47 primaveras de existência quase medíocre, jamais tive. Não peguei minha viola, parei, olhei, fui-me embora, ninguém compreenderia um samba naquela hora. Voltei para casa a pé, cantarolando Paulinho, cuidando para não perder o equilíbrio e cair, pela enésima vez, feito uma jaca podre, protagonizando outra risível cena de tombo, minha especialidade, para deleite dos transeuntes, sempre os há, e às pampas.  As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender.

Hoje eu vim, minha nega
Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mãos a mesma viola onde eu gravei o teu nome

Venho do samba há tempo, nega
Vim parando por ai
Primeiro achei zé fuleiro que me falou de doença
Que a sorte nunca lhe chega
Que está sem amor e sem dinheiro
Perguntou se não dispunha de algum que pudesse dar
Puxei então da viola
Cantei um samba pra ele
Foi um samba sincopado
Que zombou de seu azar
Hoje eu vim, minha nega
Andar contigo no espaço
Tentar fazer em teus braços um samba puro de amor
Sem melodia ou palavra pra não perder o valor
Depois encontrei seu bento, nega
Que bebeu a noite inteira
Estirou-se na calçada
Sem ter vontade qualquer
Esqueceu do compromisso que assumiu com a mulher
Não chegar de madrugada
E não beber mais cachaça
Ela fez até promessa
Pagou e se arrependeu
Cantei um samba pra ele que sorriu e adormeceu
Hoje eu vim, minha nega
Querendo aquele sorriso
Que tu entregas pro céu
Quando eu te aperto em meus braços
Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço
Por fim eu achei um corpo, nega
Iluminado ao redor
Disseram que foi bobagem
Um queria ser melhor
Não foi amor nem dinheiro a causa da discussão
Foi apenas um pandeiro
Que depois ficou no chão
Não tirei minha viola
Parei, olhei, fui-me embora
Ninguém compreenderia um samba naquela hora
Hoje eu vim, minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo a forma de se viver
As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender