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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Mingau

Banho tomado, corpanzil devidamente perfumado, que nunca fui de renegar um sabonete cheiroso, uma água-de-colônia azul ou esverdeada, dessas bem fresquinhas, melissa, chá verde, verbena, bergamota, jasmim, lavanda, flor de laranjeira, huuuuummm... Nada supera uma chuveirada vigorosa no cume do quengo, eita lá... A pessoa esfria um pouco o juízo fumaçando, borbulhante de dilemas vários, atribulações de tudo quanto é fragrância, tudo fêmea dando cria, problema é tudo fêmea no cio, afe, barriga livre para os filhotinhos se espalhando, uma praga, vai-te! Cochilou, a ninhada ocupa os minguados espaços de razão e bom senso, o sujeito fica doidinho, um caso sério. As charadas diárias são nível hard, cara, só digo isso. Uma novela mudar de fase. Desci as escadas, muito da linda, um bibelô balofo trajado de pijama de ursinho Puh, realiza aí, leitora, rarará: um mimo, uma delicadeza. Dormi o sono dos justos, hoje à tarde. Aliás, bom conselho, de graça: durma, minha senhora. Durma de esquecer. Dormir não soluciona porríssima nenhuma, está certo, mas adia, rarará. Pode até resolver, a senhora sonhando com um palpite seguro para o bicho, os números da megasena, quem sabe. Acordei desejando desesperadamente um prato de papa, não se trata de gravidez a essa altura do baile, asseguro-vos, passei da validade, rarará. Salivando por um mingau, acredita? Mingau de maisena feito com leite em pó, gosto que me enrosco. A colher de pau rodopiando na panela, a gente voa quando começa a pensar... Na escola, isso em 1837, a esferográfica imprimia a palavra 'maisena' com S, S de 'salvem-se quem puderem-se', rarará, ortografia é mesmo uma paulada, toda hora uma informação diferente, rarará. O que aprendi sobre modelar a inculta e bela, amores, veio da escola. Nenhum professor universitário acrescentou uma vírgula, um acento sequer, pasme. Na única escola da minha vida, tive grandes mestres. Três inesquecíveis professoras de Língua Portuguesa: Tia Vera, Xênia e Maria José. Zezé, na época, já era uma mulher, digamos, bastante madura, donde concluo: meus parcos conhecimentos ortográficos prescreveram, rarará. Tudo igual a mim: ultrapassado, mofado, obsoleto. As leituras feicibuquianas confirmam: perdi o bonde e a esperança. Na cozinha, ainda agorinha, repeti um dos mantras zezesianos: atanazar, bocafuzar, fuzuê, fuzaca e mozarca lembram algazarra. Escrevem-se com Z. Ela inventava uns recursos mnemônicos extraordinários, quanta criatividade, uma lástima ter descartado as primorosas apostilas, por outro lado, combinemos: papéis carecas, desgastados. Não teriam resistido tanto tempo. Um jeito de fazer a moçada decorar aquelas besteirinhas fundamentais, as consagradas configurações da última flor do Lácio, caro colégua. Decoreba com pedigree. A gente decorava tanto, de todas as maneiras. Do geral às particularidades. O trem grudava no cérebro, um esparadrapo. Foi assim, como um resto de sol no mar. Não se apaga. Basta precisar, bicho. Ao menor apelo, a lição desponta, manifesta-se: uma besteirinha iluminada. Atualmente, na sala de aula, a realidade é outra, o cabra desavisado que cair na esparrela de mandar um menino memorizar um cabelinho de sapo, compa, estará inevitavelmente fodido, arrisca-se a tomar um tiro no meio dos cornos, tamanha a defasagem com S, a brutal incompetência do pobre docente. Modernidades. Muitos profissionais supimpas, arrojados, ousam trilhar o caminho de volta, costurar as extremidades, passado e futuro enlaçados no presente, uma coisa bacana. Avante. Prossigam. Aplaudo. De casa. Convém descansar, descalçar os sapatos. Deixarei um naco de saudade acanhada, sofrerei a tortura da maior saudade, as frágeis fibras do peito, ai..., dilaceradas. Porém, devo confessar que sinto uma ponta de alívio, a dois passos de abandonar o barco. 

Corrente

39,90+39,90+27,00+37,00+49,90+76,00+25,00+17,00+22,00+56,00, certa como dois e dois quatro, do retorno à drogaria, madame, ainda em outubro. Mais corticoide, mais metrexato, mais ocupress colírio, mais concor e mais torlós, só aqui, me lasco. Nunca fiz as contas de precisamente quanto do meu breve salário é destinado aos malditos fármacos empenhados em melhorar meu estado geral, é sempre igual, as folhas caem no quintal, vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, tudo embaixo do glorioso tapete vermelho-sangue, rubra seiva de mim, rarará, a nobre alcatifa do honradíssimo banco do brasileiro enforcado: sonhe, o BB realiza. Conservo a cabeçuda esperança verde-mata, "mata ela, mata!", rarará, de desencarnar do azul para o azul, sem dever dois reais a Seu Ninguém, quem sabe. A senhora não se confundiu: dois dentistas. Um exclusivamente para providenciar implantes de me extirpar as vísceras. Aliás, na fresta mais dócil e pura de um pequeno dia, de repente, entenderei por que implante é tão caro. Hoje não. A dentista cuida de escorar o caco que perde o prumo. Ainda ontem, recebi uma notícia dramática, um açoite no lombo taludo: "aconselho você a fazer outro implante, esse dente não se aguenta muito tempo.", pá!!, desse jeito. Não achei o que vender em casa, tô partindo para as córneas, quero parar de enxergar meus horizontes, a leitora, acaso, se interessa? Cheguei a pensar em Ronaldo, rarará, parcelado, em duas vezes. Ronaldo não, nunca de never more, rarará. Ronaldo, colégua, não tem dinheiro nas galáxias que pague. Pega a doida de pedra se lembrando daquela música: errei sim, manchei o teu nome... Nome mais sujo que pau de galinheiro... Manchei o meu nome, mas foste tu mesmo, mundo cruel, o culpado, rarará... O fundo do poço tem mola. Na maior insegurança, um medo danado do grave pecado da mentira, eu garanti, capital letters: o fundo do poço tem mola, minha querida. Tudo, tudo passa. A dentista é uma querida, muito querida. Tantos momentos cobrindo, remendando, rebocando, resolvendo como pode, em horários inacreditáveis, coitada, os problemas cascudos das minhas arcadas corticoidemente afetadas... Como foi que examinei tanto o sorriso do meu umbigo, desconectada de todo, de todo, dessa pessoa tão disponível, tão amável, tão querida? Argamassa por cima das chagas. "Quando uma pessoa chora um choro em desatino, batendo pino, como quem vai arrebentar", é um impacto, uma descarga, um safanão no centro da mosca da sua cara. Um braço imenso, forte, içando a sua alma metida à gente, desencarcerando o fantasminha equivocado, lançando seus destroços de humanidade ao convés do mesmíssimo barco. Cara, somos as miçangas do colar em torno do pescoço do planeta. O cordão adorna, o cordão resgata, o cordão estrangula. Qual é a sua escolha? Reescrevo: impossível fugir, é, será sempre o mesmo barco. Ignoro o germe em questão, percebi, entretanto, claramente: não há, entre os anestésicos acondicionados no armário da doutora, um que atue na raiz daquela dor. Sou quase um irremediável caso de focinheira e manicômio, sei de cor. O minuto de lucidez é para não julgar. Não ofender, não contundir, não esfolar mais, os psicólogos, psiquiatras e afins multiplicam-se feito preás, especialistas especializados em mexer nas tais perebas. Minha parte é acudir o outro. Minha fatia é empatizar, consentir no pranto, respeitar o curso da lágrima cheia de sal, de som, de sentimento. Oferecer café, cerveja ou um cálice de vinho. Ensinar uns palavrões eficazes. Liberar meus ombros largos, meus abraços reconhecidamente acolchoados, meus ouvidos acessíveis. Luar sem amor, amor sem se dar? Na dúvida, olhe em volta. Na dúvida, expanda os limites do corpo, da mente, do coração descompassado. Na dúvida, simplesmente, acolha. 

sábado, 3 de outubro de 2015

Azeviche

Solzinho acanhado, não acham? Janelas abertas à manhã menos ensolarada que a do meu desejo. No momento, uso o notebook de Ronaldo, minha desvalida máquina jaz em coma profundo, bebeu demais, coitada, mas, cara, vou dizer, foi somente água mesmo. A quinta-feira passada entrou para a lista das piores lembranças do casal: triste, triste de não ter jeito. Graças a Deus, sei muito pouco sobre o que vai na copa dos telhados, disponho de torneiras e de chuveiros para o mero asseio da matéria: pele fresca, pratos escorridos, roupa limpa, casa lavada. Tudo tão singelo. Mínimas alegrias cotidianas cheirando à flor do campo, naturalmente. Ocorre que a caixa do vizinho transbordou, sobrou pra gente, o teto encharcou - uma peneira - o toró desceu pelo lustre, uma inundação dessas de cinema. Choveu gato e cachorro, tempestade dentro do nosso quarto. A cama, a cômoda, o guarda-roupa, o som, meus discos, meus livros e tudo mais. A recuperação do computador é uma interrogação, me aconselharam a aguardar um tempo, depois, tentar reanimá-lo. Pensei que contar a história me traria um discreto alívio. Não. É exatamente o contrário. "Sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada"... Quem, senão a guduxa pirada da bola, choraria um pomar de pitangas por um pirão de papel? As páginas secaram grudadas, um desconsolo. O cesto de lixo rejeita. Entretanto, não consigo me desfazer dos volumes, cinco ao todo. Perdi as 200 crônicas escolhidas. Quietinha, por favor, a madame nunca vai entender o que estou sentindo. O brogue dá um refresco, quando a coisa fica preta. Até o transparente, a demora é transtornar, desequilibrar o ambiente, H²O transparente não escapa, pimba!, fica preta. Aliás, por que preto é ruim? Por que ruim é preto? Preto é podre. De chique. Noite preta parideira das revelações abissais, incontestes. Seu Raul, o ator Val Perré, aquele negro espetacular da novela das seis, participou do programa de Fátima Bernardes, não pude escutar uma palavra, muita mulher cocoricando no salão de beleza, pintou uma torta de climão, um silêncio espinhoso, rarará, porque eu comentei: esse homem é estonteante! Acho o cara caprichado, guapo, belo de ver e de morder, acho mesmo. Aliás, deuses de ébano me tiram o fôlego. Visualiza o que teria sido a antológica cena do "serve...", com Fanny inspecionando um Leo negro lindo, tesão, bonito e gostosão de fechar o comércio? Ainda bem que racismo não existe, pela madona jabuticaba brasileira: valei-nos, Nossa Senhora Aparecida! Uma situação isolada, decerto. Atípica, esdrúxula, fora da terra e do ar, apenas isso. Menina, nos idos da faculdade, minha pessoa arrastava um avião por um colega de sala, um podemos ser amigos simplesmente, rarará, alto, espatulado, charmoso, distribuidor de um sorriso da criatura cair dura batendo, rarará, Auríbio, nome feio do cão, o nome dele é Auríbio, podia ser Apolo, rarará, o infeliz das costa oca nunca me deu nem as horas, que dirá um dedo de trela. Que interesse causaria uma branquela azeda, tonta, desmiolada? Pra galera, Auríbio era Marrom ou Negão, um sujeito meio reservado, de pouca conversa, cabra gentil, generoso demais, parece que ontem mesmo vi Auríbio arrastando o chinelo no Centro de Artes. Nada como o tempo para passar. O tempo avança, finja que esquece. Acabo de descobrir que Negão é professor universitário, veja você. Na graduação, Negão vendia a mãe por um passeio no corredor, um cigarro na cantina, o bicho faltava uma aula empurrada, rarará... O mais surpreendente é que Negão tornou-se facilitador de biodança, quem imaginaria? Uma tremenda coincidência, fiz tanta, tanta biodança, tantos anos da minha vida... Continua vistoso, um bom pedaço de mau caminho. Para o trânsito, provoca abalroadas, rarará... Desconfio que nós teríamos feito filhos bastante bem apanhados, assaz graciosos, meu chapa.