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sábado, 22 de outubro de 2011

Xampu com bobagem

Sexta-feira é o dia internacional da chapinha. Bati o ponto no salão de beleza, porque hoje é sexta-feira. Se existe uma coisa nesse mundo desmantelado de meu Deus, que eu gosto, essa coisa atende por salão de beleza. Nem sei como foi que eu não virei perua rata de salão, desconfio que seja só por causa da minha mais desmantelada ainda condição financeira. Escolher o esmalte da semana, bisbilhotando aquela cascata de cores, lendo os nomes, rindo da criatividade dessa galera do marquetingue, da propaganda, agora, por exemplo, descobri que existe uma nova coleção, I LOVE MY DOGS, cada tom é uma raça canina, poodle, husky, maltês, cocker, shar pei, chow chow e o nobilíssimo vira-lata, grande sacação de quem sacou que daria certo, uma coisa sensacional, quem tem cachorro e não comprou o kit, aposto que acabará comprando, o dono da empresa que lançou o produto acumulou mais uma baba, obviamente, deve andar muito satisfeito com os lucros da bem sucedida empreitada. Pois bem, escolher esmalte e lavar os cabelos naquela cadeira de cabeleireiro, o chuveirinho no quengo, preferencialmente com água morna, aliás, nem é lavar os cabelos, é pagar para que lhe façam a gentileza, é deixar-se ficar ali, no bem bom, derreada, de olhos bem fechados, consentindo na carícia, só no cafuné de pé de orelha. Vou dizer, aquela que não aprecia uma tarde consumida inteirinha num salão de beleza, sob os cuidados de uma biba extravagante capaz de assegurá-la, com todas as letras rosa-choque, de que você e a Carolina Ferraz parecem irmãs gêmeas, devia era se tratar com uma bolinha tarja preta, pois é ruim da cabeça ou doente do pé. Aliás, devia era se matar logo de uma vez, a mulher que não conta com a assessoria de um hair stylist  bem veado, cá pra nós, não merece viver. No salão de beleza, a gente mantém os olhos fechados, a boca fechada, quando dá, e os ouvidos bem abertos. Todos os conflitos humanos, todos os triângulos amorosos de todas as novelas em cartaz, todos os casamentos, todos os divórcios, todos os assassinatos, todas as crises econômicas, da esquina da rua até a Grécia, passando pelos Estados Unidos, o fantasma da inflação, a notícia bombástica do corte do pagamento do servidor público federal, a extinção das baleias, as ameaças ao planetinha azul, bullying, pedofilia, sexo, drogas, rock and roll, o Orlando Silva das multidões e o Orlando Silva dos esportes, qualquer, qualquer, mas qualquer querela, é assunto para o universo daquelas quatro paredes. Mister incluir nesse lúcido fragmento de texto os homens cabras machos, numa revolução comportamental que eu aprovo cem por cento, homens cabras machos que discutem conosco o trem que for, arrumando as unhas com base incolor de efeito fosco, pra cabra muito macho, no salão de beleza. É o lugar das respostas para as perguntas que não têm resposta. Nunca houve um dia sequer em que eu conseguisse sair de lá completamente incólume, sem ruminar as sem razões da minha existência coletiva, sem você, meu amor, eu não sou ninguém, eu, grão criatura entre as demais criaturas da terra. Sinto-me cercada de amigos de longa data, desde a mais tenra idade, os amigos de ontem, de hoje pela manhã, da semana passada, adiciono todo mundo no meu perfil facebook, a demora é chegar em casa. Por falar em amigo, vários dos meus amigos professores separam o joio do trigo com uma habilidade de causar inveja. Eu queria ter essa capacidade de não misturar alhos com bugalhos, amigos na primeira gaveta, colegas de trabalho na segunda, conhecidos na terceira, alunos e outros bichos na última, à esquerda, família imediata e parentalha no geral, também na última, à direita. Tenho parceiro com facebook só pra aluno, tenho parceiro que não adiciona aluno nem no raio que o parta, nem que a vaca tussa. Com a minha pessoa é essa confusão dos infernos, é tudo junto e misturado numa panela só, ignorante de pai e mãe, que sempre fui, dessa tal de hierarquia, os corpos vão perdendo o contorno, as almas se fundem, Adriana se fode, às vezes, mas não toma jeito. Sofro de uma urgência de aproximação muito da maluca. Com o marido foi assim também, essa intimidade precipitada, namoro, noivado, casamento e comunhão para além da eternidade. Em toda sala de aula onde eu entro, mais cedo ou mais tarde, meu romance virtual  com final feliz à barra da batina do padre Zé Roberto, que, à guisa de esclarecimento  absolutamente desnecessário, é a bicha celibatária que eu mais respeito no Morro da Conceição, o meu romance real tá na boca de um e de outro, vira a pauta do dia. Nossa Senhora Maria Eudóxia, padroeira dos bobos na casca do ovo, dos puros de coração, dos crédulos irreversíveis, dos vulneráveis de plantão e dos inapelavelmente suscetíveis à magia de todos os encontros, é que me guarda e guia. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Morde e assopra?

Uma mulher espera oito meses e um tanto para ver a face rosada da sua cria, sua filha também mulher, finalmente fora da barriga, uma menininha linda como, no campo, uma flor do campo. Esquecida de si, uma mulher se esfalfa em buscas na internet, estuda significados, aprende numerologia, consulta o oráculo, combina as letras e os sons. Uma mulher olha os olhinhos claros de uma menina recém-nascida do tamanho de um botão, e, enlevada, entre lágrimas, decide que aquela criança tem a maior cara de... Flávia Alessandra. O Apocalipse Now em versão piorada, vamos combinar. Só pode ser uma maldição familiar, sua avó Gertrudes Aparecida, sua mãe Beatriz Eneida, Catarina Cecília ela própria.  É nome pra mais de metro, a menina há de transportá-lo numa jamanta, pela vida afora. É sabido que eu não tenho nem a metade de um filho, mas, cá pra nós e pro povo da rua, um nome pode lhe pesar nos ombros feito uma cruz de São Francisco. Perguntada uma vez acerca do seu desejo de futuro para a filha, Elis Regina, a maior cantora do Brasil, respondeu assim: “Eu quero que ela ria muito, que ela não fique pesada nunca...” A filha é Maria Rita, nome duplo também, pela proa, pra ver o que é bom pra tosse. Eu tenho essa leve suspeita de que um nomezinho só, levezinho, curtinho, inaugura linhagens de felicidade, galera.  Pois muito bem. No capítulo seguinte, tempos depois, o prefeito da cidade onde a supracitada mulher deu à luz (Catarina Cecília, lembram?), o prefeito da cidade, num daqueles insights geniais que se tem duas vezes por encarnação, bate o martelo, digo, o champanhe, na pedra do cais, e danou-se a nêga do doce. O nome de batismo da nova orla da Praia Grande, lá em Arraial, é FLÁVIA ALESSANDRA. Flávia Alessandra, pra quem não sabe, é aquela global que Walcyr Carrasco queria ser, a robô gostosona da novela das sete, deve ser porque Flávia Alessandra nasceu em Arraial, não sei direito, sei que os arraialdocabenses não gostaram nem um pouco, tão reclamando até agora. Se eu num tô esclerosando, parece que o nome do teatro de Friburgo mudou um dia desses, a última vez que estive em Friburgo, existiam um teleférico e um teatro, o Ariano Suassuna, mas diz que não pode chamar as obras públicas, bem ou mal feitas, de nome de gente encarnada, diz que é lei, não sei direito, o que eu sei é que a pessoa tratar uma beira de praia por Flávia Alessandra é o fim do mundo e o começo do outro, onde já se viu uma barbaridade dessa, até porque, as más línguas propalam que Flávia Alessandra tem raiva de quem sabe que ela nasceu por ali, não bota os pezinhos dela na terrinha desde que saiu da terrinha, tendo o cuidado de bater as tamancas uma na outra seis vezes, pra terrinha desgrudar da sola e ficar distante dela. Também não sei se o teatro de Friburgo,que se chamava Ariano Suassuna, palmas para o meu amantíssimo professor de Estética na universidade, está de pé, não sei se Friburgo está de pé, tem vez que me dá um medo de ir lá, eu vi uma Friburgo tão linda quando eu visitei Friburgo a primeira vez, que eu voltei lá a segunda, a terceira, a quarta, a quinta vez, eu quis ser daquele chão, eu quis ter sobrenome alemão ou suíço, eita pedaço de serra pra escancarar pra gente o bonito. O bonito é bonito e é bonito. O bonito é pra se mostrar e pra se preservar, exalando beleza pela vida afora. A chuva matou a cidade e uma pá de gente que morava na colina. Quem tem a responsabilidade da ressurreição, não se ocupa de juntar os nacos do cadáver de lama, carne e concreto.
A coisa mais fácil pra mim é falar bobagem, vivo de falar bobagens infinitas. Não me incomoda, não me assusta, não me acanha, portanto, escrevê-las. Ninguém pediu a minha opinião, mas eu dou assim mesmo. A orla nova é esquisita e o nome da orla nova é esquisito. Quedam-se os quiosques centenas de milhas longe da água, ou bem o sujeito bebe, ou bem mergulha. Essa história de loura gelada não me pertence mais, mas eu me lembrei dos áureos tempos, medi os palmos de duna, achei que as mesas e as cadeiras, encarapitadas no alto como estão, para os apreciadores da concomitância mar e cerveja, representam considerável estorvo. A pessoa caminha, caminha e não chega. Seguindo noutra direção,  a pessoa caminha, caminha e chega num largo, uma área mais ampla, uma quina para a lua, o lugar dos amigos, dos amantes, dos idosos aos pares, aos quartetos, se a gente contar as respectivas bengalas, dos carrinhos de bebê, um vão para a pessoa se encostar sem afobação e contemplar o que bem lhe aprouver. Para fotografar o entardecer, para passear com o cachorrinho, para fazer as pazes, para falar de amor sincero, para rezar, para pensar na morte da bezerra, para um rol de prazeres que eu poderia elencar aqui sem sacrifício, uma lista em que, de forma alguma, a pessoa vai ler ‘levar duas boladas no olho do quengo’. Só essa sujeita aqui consegue, no espaço de dez minutos, ser atingida, em cheio, por uma bola no meio dos cornos, e logo duas vezes, dobrado feito tapioca. Eu tenho pra mim que faltou cimento pra construírem o campinho dos marmanjos. Ou faltou um planejamento decente. Ou falta um guardinha municipal naquele canto, não é possível o cidadão ter de sair daquele espaço para abrir espaço para uma pelada toda errada, de gente grande, no coração da pracinha. Questão de hora e lugar. Absolutamente inadequados.
Eu prefeita, digo logo, dava um banho de democracia. Promovia era um concurso desses de votação bombando no site da prefeitura, um concurso para a escolha do nome da orla, neguinho inscrevia lá as sugestões, fazia-se uma triagem das legítimas, tudo às claras, divulgavam-se os nomes finalistas, com o ganhador ganhando um presente porreta, uma coisa que não me ocorre agora, eu ia pedir uma mãozinha pros meus correligionários, lascava um retrato no jornal, a porra toda. Garanto que a comunidade ia aprovar, gostar, o nome caía na boca do povo pra nunca mais se apagar.
“O filho que não fiz hoje seria homem. Apóia em meu ombro seu ombro nenhum. O filho que não fiz, faz-se por si mesmo”, querendo chamar-se João.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Lua Cris

“Eu queria ser esse cachorro”. Isso é frase da minha irmã, referindo-se ao meu primogênito e a sua velhice muitíssimo bem assistida. Nicolau dispõe de médico particular, exame particular, tudo a tempo e à hora, não lhe falta remédio, nem petisquinho, nem a honestíssima pedigree sênior 7 anos mais, ele tem quatorze, mas tá dando tudo tão certo até agora, que ninguém mexe nesse time campeão, a saúde dele anda nos trinques, a saúde financeira da família, precisando urgentemente de entrar nos mesmos trinques, portanto, fica tudo como está pra ver se a maré vai mudar. Se a canoa não virar, a gente chega lá. Essa minha irmã é uma figura inoxidável. Já veio aqui três vezes, cada visita é um flash, meu marido gosta demais da companhia dela, os dois parecem amigos de longa data, tratam-se com um carinho, com uma intimidade que só vendo, é toda boa’ pra cá, é barbudão gostoso’ pra lá, vê-se logo que as duas almas estão se revendo, é reencontro, ninguém me convence do contrário. Em duas semanas, vão pintar as canecas juntos, na terra do frevo e do maracatu, ele vai viajar de férias, sem a minha pessoa, ela vai hospedá-lo em casa, com toda a pompa e circunstância. Saberei da farra, mas só depois, quando ele voltar, se ele um dia voltar. Essa minha irmã perdeu a sua única filhinha, uma das moças mais lindas que já vi, a filha mais doce e amorosa que uma mãe pode desejar ter na vida, em um acidente de carro bárbaro, absurdo, anos atrás. Minha irmã passou açúcar nessa galega filha dela, mas a galega também sabia ser braba feito um siri, se o momento exigisse, ninguém pisava nos calo dela não, ela subia nas tamanca, cada salto dessa idade assim, eu não sei como a minha sobrinha conseguia evoluir na passarela com tanta graça, trepada naquelas perna de pau. Agora tinha o seguinte, quando ela cismava de desintegrar a criatura, era tiro e queda. Pra derreter um coração de leão, dispunha de artilharia pesada. O olhar mendigo, uma carinha de querubim de procissão. Tinha um senhor chamego comigo, um jeitinho de dizer ‘tiiiiiiiiiiiia!’, assim mesmo, comprido, ‘tiiiiiiia, tás aqui eu nem sabia mamãe nem me disse!’, isso porque ela não falava mainha, era mamãe, eu achava lindo ela dizer mamãe e painho, isso não é comum na terra da gente. Mamãe. Batia o olho em mim e acabou-se, grudava na barra da minha saia, conversava comigo de se esquecer do tempo, era tanto assunto, assunto que a gente só conversa com tia, minha irmã ficava com um ciúme de dar dó. Ria fácil, ria alto, agarrada com um pedaço de melancia, pense numa menina apaixonada por melancia, era Cris. Tinha uma maluquice que só Cristiane fazia, quando eu menos esperava, às vezes me deitava na cama dela pra ler, pois num é que ela pulava em cima de mim, esfregava a cara dela na minha, ficava repetindo, ‘deixa eu ver o seu olhinho, deixa, deixa, deixa! Cadê? Cadê? Oxe, num tô vendo nada!’. Dizia isso imitando voz de criança, um gasguito fininho, estridente, jogava a cabeça pra trás, gargalhando, me beijava, recomeçava a farra. Eu fazia um charme, ‘sai daqui, menina doida!’, brincando de não gostar. Eu morava sozinha em Petrolina. Um dia o telefone tocou, atendi,  era Nilde, do outro lado da linha, falando baixo, balbuciando umas palavras sem o menor sentido... Aí, de repente, de dentro do pranto, eu escutei... 'Cris'. O telefone escapuliu da minha mão, me deu uma tontura, minha vista escureceu, lembro que minha garganta tapou, fiquei sem respirar, eu parei de respirar, saí doida atrás da minha ginecologista, um anjo chamado Mônica, Mônica me deitou numa cama, comprimiu meu tórax com toda a força do corpo em seus braços miúdos, comprimiu meu peito sem ar, eu grunhi feito um porco, um ronco rouco, urrei, gritei, depois desatei a chorar, não conseguia parar, nem queria, eu queria chorar até acordar. Eu havia sonhado com a amputação. No meu sonho, quem visitava minha irmã era eu, seu filho me abria a porta da sala, eu caminhava até o quarto para buscá-la, a minha irmã estava sentada numa cadeira de rodas, ela não tinha pernas. O corpo dela terminava no tronco. Eu liguei duas vezes pra Recife, falei com ela, perguntei se estava tudo nos conformes, pedi a ela que prestasse atenção ao atravessar a rua, que olhasse os carros, que se cuidasse muito, eu tinha tanta certeza de um perigo iminente, ela até caçoou de mim, ‘mas como é que eu vou sofrer um acidente de carro sem ter carro?’
Às vezes sonho que Cristiane está aqui, online, parece que ela vai se comunicar comigo, mas a mensagem não chega, eu fico sem saber, quem manda não ter o dom. Ontem eu trouxe melancia pra casa. Desde então, cada dentada é uma punhalada e um soluço, não arredo o pé do abandono de não poder lhe acariciar os cabelos de luz. Se eu fosse superpoderosa, Tia Dau, lhe dava as minhas duas pernocas, com tornozelo aleijado e tudo. Lhe dava o meu marido, os filhos, os cães, uma dúzia de netos, pedra, pau, cimento, tijolo e um carro zerinho na garagem. Comprava pra você todos os ingressos pra todos os shows do Chico, o songbook do Chico, cada CD que o Chico ainda vai lançar. Tia Dau, eu lhe dava a Europa, a França e a Bahia. Os feriados e os dias santos. O céu, meu bem,  e o meu amor também.  Seis milhões de dólares e uma maneira de explicar. Deixa eu ver o seu olhinho, deixa, deixa, deixa! Cadê, cadê? Oxe, num tô vendo é nada, Criiiiiiiiis!