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sábado, 23 de fevereiro de 2013

Deus é naja

Estás desempregado? Teu amor sumiu? Calma: sempre pode pintar uma jamanta na esquina.

Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos a muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele- humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou essa: -"Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim..." Descemos o elevador rindo feito hienas. Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas.

Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -"Por favor, preciso de uma jamanta às 30h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque estará no bolso esquerdo da calça". Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com Haddock Lobo, que tem aquela descidona) , você olha para esquina de cima. E lá está- maravilha!- parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."

Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" – ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema – Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

Deus é naja - descobrimos outro dia.

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma jamanta. A mil por hora".


Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

As coisas da vida

Não sei se a senhora sabe do que vou lhe contar, meus leitores são tão informados, profundos conhecedores de todos os assuntos. Talvez a senhora tenha raiva de quem sabe, não sei. Aposto que sua vida vai seguir, como dantes, no quartel de Abrantes, depois que eu lhe der uma informação muito importante para a sua boa formação (rarará) intelectual e psicológica, informação muito importante sem a qual, óbvio ululante, a sua vida, como dantes, de vento em popa, mesmo aos trancos e barrancos, vá lá, seguiria: Rubem Braga é o cronista do Brasil. Procure um romance de Rubem Braga. Não há. Pesquise uma peça de Rubem Braga. Não há. Um soneto? Não há. Ensaio, conto, novela? Nananinanão. O Velho Braga viveu e morreu cronista maior, único cronista, não fez vista grossa, nem deu de ombros, nunca traiu este gênero literário maiúsculo e prioritário, de todos o mais sedutor (quer fazer seu marido gostar de ler, madame? Crônica no cardápio do contribuinte, não tem erro!), croniqueta, cronicão, crônica breve, crônica urgente, crônica desesperada, sentida. Etérea, espessa, plúmbea, permanente. O Velho Braga ouviu rugir o leão da genuína vocação, a verdadeira natureza interior – sem aditivos, sem conservantes!, arregaçou as mangas, desbastou a facão o meio do mato, amassou o barro, construiu sozinho a estrada. Ladrilhou, com pedrinhas de brilhante, para quem quiser passar, o caminho que vai dar no sol cotidiano. Beco sem saída. Caminho sem volta. Graças a Rubem Braga, as coisas diferentes do mundo uniformizaram-se, em volume, estatura, tonalidade e relevância, minha nêga, as infinitas coisinhas do mundo assumiram a proporção do olho nu, acessibilizaram-se, para a mira de todo homem despido de preconceito, que se dispusesse a desamarrar o bode e enxergar a beleza e a grandeza do insignificante.
Uma leitora muito especial e muito querida sugere que eu utilize o espaço do blog para a exposição, a opinião e a discussão de questões mais abrangentes, mais gerais, que atinjam uma quantidade maior de pessoas, meus posicionamentos sobre o que vai na mídia, talvez, alguns temas mais universais, enfim, recomenda foco e frenesi, rarará, argumenta que meu objetivo, ao escrever, daqui por diante, no seu ponto de vista, claro, é uma sugestão, veja bem, levando em consideração a possível publicação dos meus textos, coisa e tal, meu objetivo precisa extrapolar o meu umbigo, ampliar contatos, identificações, reconhecimentos – ‘produzir’ empatia (?), Adriana. Acho muito engraçado quando ela espana a asinha, toda animada, solícita até a raiz dos cabelos, esse é um gesto admirável, compreendo, ela abre a boca devagar, articulando as palavrinhas da frase, rarará, parece uma professorinha fazendo ditado: você - pode - ter - uma coluna semanal - num jornal ou numa revista, rarará, as pessoas têm muita dificuldade no quesito sacação do pedaço de praia das outras  pessoas, a senhora me desculpe do fundo do coração, mas, enquanto leio os carnudos lábios alaranjados movendo-se, sem mentira nenhuma, é apenas nisso que penso. Fico muito constrangida de tocar nessa pereba, já trouxe o dicionário, desejo demais encontrar o melhor estilo, o vocabulário mais simples, delicado e adequado, longe da minha intenção desapontá-la, gerar algum tipo de rusga, azedume, Deus me livre, guardo um sentimento sagrado de respeito, gratidão, um carinho imenso por quem se interessa por minhas mal traçadas, mas tenho de esclarecer um cabelinho de sapo para minha especial e queridíssima leitora: não sei, mulher. Não sei. Tudo me confunde, tudo me atormenta, tudo me consome. Não sei separar o alho do bugalho, o graúdo do miúdo, o sensato do sensível, o luxo do lixo, o desmantelado do inapelavelmente bonito, tão bonito que mereça ser escrito. Não sei como apareceu a margarida. Não faço ideia do que mantém no ar este estandarte. Nunca retornei ao ponto de partida para examinar a fonte, os atalhos, para dissecar a trajetória do fuchique, duvido que acredite, entretanto, é a mais pura verdade. Acontece que eu fofoco por acaso, dentro da motivação do instante, não existe preparação, não existe modelo, nada, absolutamente nada é premeditado. Costurei três historinhas sob encomenda, admito, aos amigos tudo, aos inimigos uma péssima morte, é o meu lema, tenho minhas dúvidas sobre se a parada deu mais ou menos certo, há tantas controvérsias, minha senhora. Depois, tem o seguinte principal: colunista é cachorro grande, alpiste de grife, grão que não cabe no bico capiau de ave pernambucana esperançosa de pousar as avançadas primaveras no pé de pau daquele esconderijozinho de Olinda que ninguém sabe. Acrescente-se a isso outro seguinte: se eu inventasse de dar parte ao povo das minhas ignorâncias, dos meus desconhecimentos do céu e da terra, minha senhora, a interminável lista dava um livro robusto - o compêndio das minhas mais íntimas vergonhas. Por cima de tudo, o tiro de misericórdia: meu horizonte criativo esbarra nas muralhas da preguiça congênita. Ou de um inesperado, desatinado sofrimento. Hoje, por exemplo, pretendia compor um réquiem para Napoleão, o jovem cachorro de Isadora, que, subitamente, desapareceu da vida. A notícia me desarticulou o esqueleto, o raciocínio, a linguagem, acho. Senha inválida. Rastejo, invertebrada, incompetente para balbuciar uma sílaba. Não sei, mulher. Não sei. Ao abordar uma alma humana, seja apenas outra alma humana. E não se precipite. Não ouso tocar agora esta dor alheia, ela está demasiadamente perto. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Papo de anjo

Eu sou uma pessoa muito besta, vou te contar. A senhora percebeu, certamente, que o noticiário da TV é um disco riscado, a gente fica dando audiência ao furo de reportagem da semana passada, estou que não suporto mais ouvir a história do reumatismo e do marca-passo do Pontífice, sinceramente. Você abusou, tirou partido de mim, abusou. Sua Santidade renunciou, nem quis tomar conhecimento do serviço limpo e irretocável do envernizador da barata, Sua Santidade não aguentou a pressão, jogou a toalha, no melhor estilo, a escandalosa esculhambação católica do Vaticano e do mundo é pau de dar em doido, a política religiosa é cachorro taludo, arrocha o nó, não é balaio para qualquer adestrado felino germânico dos olhos de mel, a bola da vez vai ter de medir três metros e meio, daí para cima, rogo ao céu azul imaculado, que o sujeito seja uma parede, um cabra com visão além do alcance, um apóstolo de razão, culhão roxo e sensibilidade. Assisti ao day after, à primeira aparição do Velho Joseph, na telinha, no jornal da madrugada, pareceu-me um morro carioca recém-pacificado, tinindo de vigor, vendendo saúde a prazo, mordendo os rosados lóbulos das orelhas, um galeguinho brincando de passar o suntuoso anel para adiante, visivelmente apaziguado, contente por quebrar tamanho paradigma - um lance arrojadíssimo, paradoxal até - sem, entretanto, arrebentar a viga do espírito conservador, seu limite individual, a pessoa que a pessoa bem ou mal consegue ser, ora bolas. De onde tirar? Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar? Sabe lá? Confirmo, portanto, once again, a milenar, inequívoca teoria universal de que um trambolho desengonçado, uma mala da pesada e sem alça, devidamente descartada, em hora e lugar exatos, desopila o fígado, limpa o sangue, desobstrui as artérias, descongestiona os brônquios, relaxa a musculatura lombar e pélvica, reconstitui as articulações e a cútis, alivia e acalma, consola e acalanta, dá até sono. Antipatizei de cara com Bento, de com força, do começo até o fim de seu reinado, não vou mentir. Ocorre que não tenho a menor intenção de meter o bedelho nessas polêmicas questões teológicas, dogmáticas e doutrinais, na crença institucional instituída, digamos assim, apesar dos insistentes pedidos da galera que comparece à arena aqui do bloguinho, o assunto, na boa, não me apetece. Não tenho medo de nada porque vivo minha vida como quem sorve uma taça de saborosa bebida, rarará, não se trata disso, a coisa toda é que, para espichar o assunto, falta-me conhecimento antropofágico: existem conceitos religiosos do passado e do presente, que são tão engessados, ultrapassados e perfuro-cortantes, minha senhora, que são de retalhar a carne impura, de esquartejar o lombo do romeiro, a demora é temperar, refogar o picadinho e lamber os beiços, como se testemunhássemos um sangrento banquete pagão... canibal. Meu maior, meu único receio de mulher feita, no quesito ‘andar com fé’, devotado leitor, é o espelho se quebrar, quem me conhece, sabe. Nesse particular, escolho concordar com o Velho Braga, desde criancinha: há um certo conforto íntimo em seguir um hábito paterno; uma certa segurança e uma certa doçura. “Minha religião é o trabalho”, Seu Biu garantia que dava certo, eu sigo os passos, orando sobre patins, obediente. Nas missas, nos casamentos, nos batizados, nas crismas, nos velórios, dentro de qualquer igreja, a senhora tinha que ver meu pai, rarará, aborrecido, impaciente, deixando o recinto muito antes do sermão terminar, quase sempre. Quantas e quantas vezes, perdi as contas, exatamente ali, no calor da palavra sagrada, flagrei Seu Biu distraído, cabeça pendendo para o lado, examinando as colunas, as pinturas, as imagens dos santos, isso se houvesse imagens de santos para investigar, às vezes, erguia a cabeça, estudava os detalhes do garboso teto, me lembro que ficava tentando descobrir quais pensamentos povoariam aquela mente brilhante e sã – a sábia cabeça de homem bom de coração, de que tanto me orgulho, naqueles maçantes, cabulosos momentos. Seu Biu tinha horror a discurso, à falação comprida demais, era desse jeito. Seu Biu pretendia que seus filhos tagarelassem menos e agissem mais, que a gente fizesse alguma coisa que, de fato, prestasse, que valesse a pena, que, de alguma maneira, interferisse concretamente no sofrimento do outro, na necessidade do outro; ações, atitudes, ainda que num olhar, num breve abraço, num desprezo - atitude, hoje eu entendo perfeitamente. Quando se trata do mistério da fé, minha senhora, aprendi que o buraco é mais embaixo, cada um que mantenha de pé o delicado cristal do frágil corpo e da alma reticente, escorado no crítico, no mítico, no místico, no científico, conforme lhe convenha, como possa e deseje, Deus, conforme a senhora O conceba, não tem ranço de religião, o sujeito crê como quer, crê se quiser, e todos os caminhos parecem mesmo dar na lenda, digo, na venda, todos os caminhos dão na venda. Jamais ruirá por terra o humilde templo que aprenda a folgar os laços para o acolhimento e a celebração do terno deus mudança.
Eu sou uma criatura muito besta, vou te contar. Não me sai da cachola aquela piadinha bobinha, sem graça, que escutei faz tantos anos, ninguém nunca riu da piadinha, somente a retardada que vos escreve, semanalmente, idiotices bastante semelhantes, eu nunca me esqueci, rio de morrer dessa piadinha, eu sou mesmo uma besta quadrada. A senhora sabe quem é a avó da papa?? A véia Quaker!!! Uma coisa bacana de ser Papa é poder trocar de nome, a senhora vai me dizer que não é sensacional essa parte? Bento, João, Paulo e João Paulo seriam meus filhos, tranquilamente, gosto de todos esses nomes de menino. Se eu pudesse votar para Papa, imaginem uma eleição livre, direta - local, regional, nacional, finalmente, internacional, feito concurso de miss - para o trono de pedra de Pedro, partidos eclesiásticos do alto, do baixo, de direita, de esquerda, de cima do muro, rarará, o mundo católico em polvorosa, a Itália ensandecida (a Itália gosta de produzir Papa adoidado!), rarará, a Itália a mil, fazendo campanha, penso que seria uma rinha de galo, um acontecimento, rarará, eu manifestaria meu incondicional apoio à candidatura de um brasileiro porreta, um cabra muito macho, o querido Padre Zé Roberto, da Igreja do Morro da Conceição, o pároco que celebrou a cerimônia do meu casamento, o maior espetáculo da Terra. Fui me afeiçoando a Padre Zé Roberto aos poucos, a cada sorriso, a cada abraço, isso quando tinha a sorte de encontrá-lo na capela, nunca vi um padre mais batedor de perna nesse mundo, o padre foi na cidade, o padre foi no hospital, o padre está com os velhinhos não sei onde, o padre foi numa comunidade não sei onde, o padre viajou para um congresso, o padre está com as crianças carentes do bairro não sei qual não sei onde, o padre foi pedir tijolo e cimento para a reforma da igreja, o padre foi encomendar a alma de um moribundo não sei onde, chamaram o padre com urgência, ele foi, Padre Zé Roberto é um maratonista, venceria a São Silvestre, disso não tenho a menor dúvida. Um ano inteiro de missa no quengo por causa do bom humor de Padre Zé Roberto, a senhora pode acreditar. A missa do dia de finados foi o máximo, nunca ouvi palavras ao mesmo tempo tão leves e tão significativas, tão confortadoras, um sermão enxuto, exato, um homem comum partilhando com outros homens comuns os sentimentos humanos de dor, de dúvida, da conformação que precisa da certeza do amor para germinar. Foi na missa de finados que Padre Roberto, de repente, interrompeu a leitura dos nomes dos mortos, sequer chegou a citar os meus mortos, rarará, para comentar: “Chega, não é? Cuidemos dos vivos! Cuidemos dos vivos! Os que se foram precisam permanecer na paz que sei que encontraram! É preciso confiar na vida eterna! Vocês me ajudem é a concluir a obra desta casa, do contrário, morreremos todos com este teto desabando sobre as nossas cabeças!”. Todo mundo riu, aplaudiu, abriu a bolsa para ajudar o padre. Quando lhe contei do sufoco que havíamos passado, eu e Ronaldo, debaixo de um toró fenomenal, perdidos de pai e mãe dentro de Paulista, um lugar longe do cacete, lá onde o vento faz a curva, chegamos atrasados, esbaforidos e encharcados, ao maldito curso de noivos, uma reunião inútil e patética, com gente idiota, preconceituosa e burra, gastei o domingo inteiro segurando a boca de Ronaldo, pedindo pelo amor de qualquer deus que ele se mantivesse calado feito um poste até o último instante, para que o sacrifício acabasse o quanto antes, minha vontade era correr dali para os meus aposentos, quando lhe contei tudo, Padre Roberto desatou a gargalhar, riu de chorar, zombando da minha besteira com pedigree, recompondo-se, em seguida, para brigar comigo: “Por que vocês ficaram, Adriana? Minha filha! O pobre do Ronaldo fugiu do Rio de Janeiro dois dias para enfrentar isso, coitado! Deviam ter aproveitado o domingo para um romântico passeio, para namorar, com curso de noivos, sem curso de noivos, eu caso esse casal maravilhoso de qualquer jeito, não tem Papa que me impeça!!” Alguns breves minutos de propaganda gratuita na mídia, em Inglês, Espanhol, Italiano e Esperanto, rarará, e o povo haveria de curvar-se ao inevitável, aposto o que não tenho, Padre Zé Roberto estaria eleito!


O eterno deus Mu dança!
Gilberto Gil
Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá
Sente-se que a coisa já não pode ficar como está
Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar
Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar:
"A gente quer mu-dança
O dia da mu-dança
A hora da mu-dança
O gesto da mu-dança"

Sente-se tranqüilamente e ponha-se a raciocinar
Sente-se na arquibancada ou sente-se à mesa de um bar
Sente-se onde haja gente, logo você vai notar
Sente-se algo diferente: a massa quer se levantar
Pra ver mu-dança
O time da mu-dança
O jogo da mu-dança
O lance da mu-dança

Sente-se - e não é somente aqui, mas em qualquer lugar:
Terras, povos diferentes - outros sonhos pra sonhar
Mesmo e até principalmente onde menos queixas há
Mesmo lá, no inconsciente, alguma coisa está
Clamando por mu-dança
O tempo da mu-dança
O sinal da mu-dança
O ponto da mu-dança

Sente-se, o que chamou-se Ocidente tende a arrebentar
Todas as correntes do presente para enveredar
Já pelas veredas do futuro ciclo do ar
Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar
O deus Mu dança!
O eterno deus Mu dança!
Talvez em paz Mu dança!
Talvez com sua lança 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Pudim de passas

Porque eu não sou da informática, eu sou da invencionática, outro célere passarinho pantaneiro de Manoel de Barros, o guri artista caduco, o reverberador oficial do mais certeiro, do mais lúcido e encantador quinhão da poesia brasileira de todos os tempos. Sou sua fã, Manolito. Se eu tivesse que contar com intermediário, um pobre homem pecador, trêmulo, como eu, de pavor, face às multiplicadas inconsistências da minha tribo umbilical, das robustas e sombrias angústias daqui, dos arredores, e do plano astral, se eu tivesse que contar com algum semelhante racional, fervendo de fé no vácuo, para os contatos imediatos com o andar de cima – Jesus Cristinho, Pai e Mãe, mais a comitiva esperança, escolheria o pastor Manolito, o arauto maiúsculo da singela palavra. De Deus. Ele nasceu em Goiás, no longínquo ano de 1916, acumula 97 primaveras, portanto, digito os dígitos sobressaltada, em calafrios, rogando a todos os escalões das camadas do céu, por todos os anjos e santos, misericórdia. Quero a graça de morrer mais cedo, nem sei se alcanço, sigo amontoando tantos desvios e deslizes pelados e cabeludos na algibeira, falar dos outros, por exemplo, essa sórdida atividade inferior a que me dedico saltitante, rarará, com o maior e melhor afinco, a senhora acompanha a fofoca no bico do calcanhar, que eu sei, falar dos outros é falta gravíssima, não me lembro quantos pontos na carteira, trata-se de passaporte para o mármore gelado (não seria quente?) do subterrâneo, a quadrilha da fornalha assoprando a labareda, Satanás, em júbilo, fritando a gorduchinha devidamente espetadinha no tridente. A sina mais sofrida e humilhante para uma criatura sem talento e sem quaisquer habilidades dignas de nota, a pessoa que olha pedra e vê pedra mesmo, dia após dia, é envelhecer demais em cima do lombo da Terra, vamos combinar. Na minha superficial avaliação, não cavuco as entranhas de coisa nenhuma nessa minha vida, que eu pareço doida com pedigree, mas sou só mais ou menos, isso de sobrevida estendida, feito garantia de eletrodoméstico, tinha que ser privilégio dos extraordinariamente especializados em abstrações e agudos devaneios, qualquer carregador de água na peneira que não fosse capricorniano, rarará, tinha que ser privilégio dos bípedes pensantes emplumados superiores, em cujo jardim da pupila, a poesia, against all odds, rompe retina e floresce.  
Eu sou da invencionática. Recebo, efusivamente, a notícia da instalação de quadros interativos, para anteontem, nos laboratórios de idiomas da escola, um índio mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias. Conheço um quadro interativo como conheço a Capadócia. Quando a novidade assolou as salas de aula da Cultura, eu arrumava as malas para a lua de mel, não vou mentir. Acolho, entretanto, o artefato, sem um tostão de desassossego, não era, na ocasião em que juntei com meu bem as escovas de dente, tão velha que não pudesse casar, rarará, não sou tão irremediavelmente senil, a ponto de não apreender um leve sopro de modernidade. Eu nem tencionava me exibir, mas ando bastante amostrada, depois daquele papo de livrinho publicado, tal e coisa, compartilho, com a madame, uma qualidade do meu coração vagabundo, coisa meio rara entre os viventes acadêmicos do salgueiro do azulado planetinha. Graças ao meu protuberante e vaporoso bucho de piaba, se eu não sei, minha senhora, todo mundo sabe da minha brutal incapacidade. Minhas inúmeras limitações cognitivas são domínio público, culpa de Dona Rita: nunca esconda sua condição, nunca minta sobre sua (in)competência, minha filha! Pão é pão, queijo é queijo, sabe sabe, não sabe não sabe, fecha o bico, vai estudar e pronto! Não tinha jeito de minha mãe punir por mim no colégio, rarará, o dez era do professor (o professor é espetacular, um gênio, Adriana vai é bem em matemática, gabaritou o primeiro simulado, rarará!), o zero era meu (que burrice é essa, menina! Vai pro quarto estudar agorinha!), rarará, ponto final. Gosto do quadro por causa do seu nome de batismo, vejo reluzir em seu regaço, disfarçadinha de microchip, entre as lentes, placas e parafusos, a límpida semente – uma doce promessa de interação, interação é a palavra mais importante da minha profissão, juntamente com a palavra humildade, interação é um sentimento com movimento, a coisa mais querida, que, entretanto, jamais vigora no peito de algumas gentes. Existem pessoas que têm uma relação de amor profundo com as máquinas, etc e tal, eu penso que cada contribuinte interage com o restante da raça podre como pode, haja psicola!, psicologia é a profissão do passado, do presente e do futuro, deveras, acho mesmo que tudo se ajeita, dias melhores vieram e virão, prefiro conservar no bolso meu rapé de esperança.
Acabo de ler uma lista dos trinta piores livros brasileiros, não me pergunte quem desperdiçou seus preciosos minutos na peleja de elencar os títulos, que nem vi o nome, a infeliz ideia revela uma pernosticidade sem precedentes, não existe isso de livro ruim, o que acontece mesmo é que o volume fica ali, diante dos seus grandes olhinhos amendoados, coçando-se para abrir as vestes, aguardando a vez de, finalmente, desnudar-se, a preferência é do freguês, que tem de estar sempre certo, ora. Há livros que nos matam e há livros que nos salvam, esse assassinato ou esse resgate com pulso são tão delicadamente particulares, questão de foro íntimo, a senhora concorda? Vá tratar a pereba da babaquice, meu camarada, que extrapola o limite do tolerável! Entre os piores livros do Brasil, a senhora acredite, figura Mar Morto, do capitão do mar Jorge Amado. Que sacanagem filha da puta da minha professora! Exigiu que eu lesse um dos piores livros do Brasil, quando eu nem sabia ainda que era essa flor de gente! Esse livro de que nunca me esqueci, rapaz, zelou pela minha combalida, conturbada mais que a média, adolescência, isso sim. Graças à filha da puta, comi Jorge Amado cru, de cabo a rabo, incendiada. Pastoreávamos a noite como se ela fosse um bando de irrequietas virgens na idade do homem ou coisa parecida, eita, uma coisa de corar a face cálida da menina enjoada da boneca. Por falar em pastor, mulher, a sexta-feira em curso tinha certeza absoluta de desembocar no culto, confesso que gastei a semana febril, turbinada para escrever a respeito da barbárie Malafraude, minha sorte foi a revolta imediata do povo de juízo, acompanhei, nos cascos, a inevitável, providencialíssima insurgência, o milagre da insurreição agigantando-se, fazendo frente à orgia do farsante, generosíssimas pessoas de inteligência, discernimento, conhecimento e coragem, de altíssimo gabarito humano e social, os que, de fato, amam o amor, a vida, a liberdade - palavra de muitos, que se aprende a sós, que custa tão caro, que eu nem comparo - baixando o cacete naquele desequilibrado feudal. Penso que fiz a minha parte, quando manifestei, de pronto, meu completo repúdio, na rede, para o esclarecimento de quem, por ventura, desejasse descobrir o que penso. Quem cala sobre o teu corpo, consente na tua morte, talhada a ferro e fogo nas profundezas do corte. Quem grita, vive contigo. Por falar em pastor e em negras ovelhas desgarradas, recomendo o templo, o livro e o rijo cajado, rarará, dos colegas Maycon Bezerra, Bruno Aragão e Wagner Terra, homens de ciência, senso, sensibilidade e bravura, agradecendo aos dois últimos, a enorme gentileza de batizar e crismar os bois das mal traçadas de hoje. Pudim de passas grudou feito um chiclete, impedindo outro título de aportar. Pudim de passas? Ninguém segura os bebês cientistas, obstinados jovens pesquisadores do meu lugar! Assim seja!


Para Professor Wagner, pela estupenda Feira de Ciências, mensageira de novos, belíssimos horizontes. Mas você crê, se quiser.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A silver lining

Hoje, vez primeira, baixou o caboclo da colunista de jornal, minha senhora. Tenho que tirar leite de pedra, minutos esgarçados já, ligeirinho, como se rouba, tantos compromissos bancários inadiáveis, fevereiro raiou sem posses, acanhado, comedido, pobre de Jó, antevejo novos empréstimos de aliviar a carga pesada da penúria, o rescalonamento anual da pindaíba, devo demais, não nego, ando quase desistindo de pagar, é muito isso, o sujeito viver na lona, sem um pau para dar num gato, vou te contar, é uma bosta. Eu queria ser rica de saúde, de inteligência, de graça e de formosura, só que montada na bufunfa, numa grana preta de esbanjar com algumas delicadezas para o espírito, para a minha doce humanidade. Olhei a hora, até meio-dia estourando, nem que seja na base da taquigrafia, da psicografia da Lispector ou de qualquer outra alminha depenada escrevinhadeira de mão cheia, rarará, a conversa da sexta-feira vigente estará encerrada, prego batido, ponta virada.
Every cloud has... a taste of honey. Limão com mel nas veias abertas da pernambucana, minha senhora. O carioca encostou com gosto, desinteressado de mudar de freguesia. Parecíamos conhecidos de longa data, o papo virtual rolando solto, todo dia um assunto diferente, dos e-mails partimos para o MSN, as coincidências, as afinidades tomando corpo, adensando, tal e coisa, um belo dia, na calada da noite, sem mais nem menos, enviei-lhe uma foto do rosto, uma dessas fotografias bestas, cotidianas, sem batom, sem glamour, sem um vintém de vaidade, a senhora entende. “Você é muito bonita, Adriana!”, ele mentiu, com toda a sinceridade. Mandou-me sua primeira foto, foto dele não senhora, a foto era de Nicolau, o Highlander da casa, nosso velhíssimo cachorro, por quem me apaixonei, no mesmo instante, irremediavelmente, Ronaldo é um homem que entende do riscado, o sujeito conhece bem o papel da verdade. Quando ele finalmente decidiu dar as caras num retrato, senti uma mistura de tristeza e de alegria, nem sei por qual motivo, vi tanta bondade estampada naquele olhar aceso de esperança sob a espessa barba grisalha sorridente, me senti tão feliz, tão sozinha, fiquei tentando respeitar as sem razões do acaso, tudo a seu tempo, Adriana, o grande dever de casa, tudo a seu tempo, para que tanta demora, tamanha agonia, isso era eu com meus botões tagarelando, pensando alto, sonhando, delirando, por que tanto descaminho, meu querido, por que nos desencontramos tanto pelas vidas?
“Vou entrar de férias em abril, quero ver você.”, e... meu mundo caiu! As águas de março fechando o verão, meu coração sol a pino, tudo certo, tudo nos conformes, o mundo azul no céu dos passarinhos, de repente, pimba!, “quero ver você”, o cyber-afeto, quem imaginaria, de altas intimidades com a dura realidade, a senhora veja se pode. “Recife de braços abertos, só faça a gentil gentileza de tirar o cavalinho da chuva, que não hospedo a sua pessoa na minha humilde residência, mas nem que a vaca tussa!”. Reservei um quarto numa pousada, no centro da cidade, gastei a manhã e um pedaço da tarde, decidindo o que vestir, rarará, isso para descobrir, recentemente, estupefata, que ele absolutamente não se lembra da cor, sequer, do molambo que eu trajava no grande dia, homem é esse bicho esquisito e adorável, foi tanta ansiedade, tanta insegurança, o 19 de abril de 2008 evoluiu tão desordenado, mas tão despirocado, que o avião aterrissou e eu tive que mentir com vigor, em cima do salto, jurei de pé junto que o atraso era culpa de um engarrafamento monstro, rarará, quando ainda me encharcava de cheiro de flor - Nuit de Mai Rosas, no portão de casa. É só olhar, depois sorrir, depois gostar, sem sombra de dúvida. No coffee shop do aeroporto, entre um e outro cafezinho, prontifiquei-me a levá-lo ao hotel para uma ducha, uma soneca, um pouco de descanso, expliquei que havia planejado uma passadinha rápida na casa da minha irmã, queria entregar-lhe o presentinho de aniversário.
- Não posso ir com você?
- Acho que você devia se trocar, pelo menos, não sei, não quer mudar de roupa?
- Não estou bem assim???
Tênis surrados de anteontem, a velha calça desbotada, a camiseta amarela feia como o diabo, reminiscência de uma das fervorosas brigas de foice do Sindicato do Judiciário por reajuste de salário, a luta continua, meu camarada!, então você é o presidente do Sindicato, não me diga?, rarará, o destino me pregara uma ópera bufa?, surpreendera-me com esse homem maluco, um desmantelado de carteirinha? Não. Ronaldo é um homem nu. De orgulho, de afetação descabida, nu de empáfia, nu de arrogância, um homem nu de preconceito, do jeito que eu queria, um modesto coração generoso ansioso por enredar-se naquele chão, no meio daquela gente, Ronaldo viajara para conhecer todas as minhas pessoas e para tornar-se, definitivamente, conhecido. Em quatro dias, visitou meus seis irmãos e metade dos sobrinhos. Voltou vinte dias depois para novos entrelaçamentos. Desembolsamos o dinheiro que não tínhamos, rarará, para o festival de passagens aéreas Rio-Recife, até o 19 de abril do ano seguinte, quando nos casamos de todas as maneiras que há. Devidamente amarrada no civil, com comunhão de escassez de bens, rarará, desembestei para a cerimônia religiosa, fantasiada de manjar de coco, atravessei a passarela do samba do crioulo doido (sugiro que leiam uma antiga crônica, chama-se Aliança), para receber a bênção e não ficar mais falada ainda no pedaço. Sob a batuta de Mestre Zé Roberto, o pároco mais boneca da Veneza brasileira, e olhe que, de sacerdote veado, o país sem porteira vive abarrotado, contraí as sagradas núpcias e um breve resfriado sem maiores consequências. Padre Zé Roberto, um santo, um sábio, uma figura inoxidável, uma bichinha descomplicada, graças ao Pai, de bem com Deus e com todos os meros mortais, fez um sermão de sacudir a torcida, comoveu os convidados, a mim emocionou profundamente, abalou para sempre a frágil estrutura do meu confuso templo interior: o compromisso firmado esta manhã, Ronaldo e Adriana, precisa durar a eternidade. Pertençam-se, escolham-se, em qualquer circunstância, pálidos de espanto, diante da mais bonita história de amor que eu já ouvi. Depois de toda tempestade, retorna a claridade, meus irmãos. Cuidem da sua história, preservem-na, zelem por cada precioso detalhe dentro dela. Lembrem-se de guardar alguns discretos segredos íntimos, particulares, um grande amor tem subterfúgios, nuances que os amantes não revelam, nem sob tortura. Afaguem-se cotidianamente, acarinhem-se, protejam-se, atentos aos pequenos, inesperados mimos e gestos que iluminam a relação, é de mínimas gratas surpresas que se constrói um sólido, nítido casamento.

ALGUÉM TOTAL

Vem me abraçar, vem
Vem reparar bem
Quem é que abraçou quem
Pois vou te abraçar também
Quem dá um abraço
Não sabe se deu
Ou se devolveu
Ou se perdeu
Quando o abraço sai de alguém
E não volta
Não envolveu, anunciou
Renunciou, dissolveu
Vem me abraçar, vem
Vem reparar bem
Quem é que abraçou quem
Pois vou te abraçar também
Quem quer um pedaço
Um pouco de alguém
Abraçando tem
E ainda mais
Se o abraço for além
De um minuto
Aí é fatal
Envolveu
Você tem um alguém total

(Dante Ozzetti/Luiz Tatit)