Hoje, vez primeira, baixou o caboclo da colunista de
jornal, minha senhora. Tenho que tirar leite de pedra, minutos
esgarçados já, ligeirinho, como se rouba, tantos compromissos bancários
inadiáveis, fevereiro raiou sem posses, acanhado, comedido, pobre de Jó, antevejo
novos empréstimos de aliviar a carga pesada da penúria, o rescalonamento anual
da pindaíba, devo demais, não nego, ando quase desistindo de pagar, é muito
isso, o sujeito viver na lona, sem um pau para dar num gato, vou te contar, é uma
bosta. Eu queria ser rica de saúde, de inteligência, de graça e de formosura, só
que montada na bufunfa, numa grana preta de esbanjar com algumas delicadezas
para o espírito, para a minha doce humanidade. Olhei a hora, até meio-dia
estourando, nem que seja na base da taquigrafia, da psicografia da Lispector ou
de qualquer outra alminha depenada escrevinhadeira de mão cheia, rarará, a
conversa da sexta-feira vigente estará encerrada, prego batido, ponta virada.
Every cloud has... a taste of honey. Limão com mel nas
veias abertas da pernambucana, minha senhora. O carioca encostou com gosto, desinteressado
de mudar de freguesia. Parecíamos conhecidos de longa data, o papo virtual
rolando solto, todo dia um assunto diferente, dos e-mails partimos para o MSN, as
coincidências, as afinidades tomando corpo, adensando, tal e coisa, um belo dia, na calada
da noite, sem mais nem menos, enviei-lhe uma foto do rosto, uma dessas
fotografias bestas, cotidianas, sem batom, sem glamour, sem um vintém de vaidade,
a senhora entende. “Você é muito bonita, Adriana!”, ele mentiu, com toda a
sinceridade. Mandou-me sua primeira foto, foto dele não senhora, a foto era de
Nicolau, o Highlander da casa, nosso velhíssimo cachorro, por quem me apaixonei,
no mesmo instante, irremediavelmente, Ronaldo é um homem que entende do
riscado, o sujeito conhece bem o papel da verdade. Quando ele finalmente
decidiu dar as caras num retrato, senti uma mistura de tristeza e de alegria,
nem sei por qual motivo, vi tanta bondade estampada naquele olhar aceso de
esperança sob a espessa barba grisalha sorridente, me senti tão feliz, tão
sozinha, fiquei tentando respeitar as sem razões do acaso, tudo a seu tempo,
Adriana, o grande dever de casa, tudo a seu tempo, para que tanta demora,
tamanha agonia, isso era eu com meus
botões tagarelando, pensando alto, sonhando, delirando, por que tanto descaminho, meu
querido, por que nos desencontramos tanto pelas vidas?
“Vou entrar de férias em abril, quero ver você.”, e... meu
mundo caiu! As águas de março fechando o verão, meu coração sol a pino, tudo
certo, tudo nos conformes, o mundo azul no céu dos passarinhos, de repente,
pimba!, “quero ver você”, o cyber-afeto, quem imaginaria, de altas intimidades
com a dura realidade, a senhora veja se pode. “Recife de braços abertos, só
faça a gentil gentileza de tirar o cavalinho da chuva, que não hospedo a sua
pessoa na minha humilde residência, mas nem que a vaca tussa!”. Reservei um quarto numa pousada, no centro da cidade, gastei a manhã e um pedaço da tarde, decidindo
o que vestir, rarará, isso para descobrir, recentemente, estupefata, que ele
absolutamente não se lembra da cor,
sequer, do molambo que eu trajava no grande dia, homem é esse bicho esquisito e
adorável, foi tanta ansiedade, tanta insegurança, o 19 de abril de 2008 evoluiu
tão desordenado, mas tão despirocado, que o avião aterrissou e eu tive que
mentir com vigor, em cima do salto, jurei de pé junto que o atraso era culpa de
um engarrafamento monstro, rarará, quando ainda me encharcava de cheiro de flor
- Nuit
de Mai Rosas, no portão de casa. É só
olhar, depois sorrir, depois gostar, sem sombra de dúvida. No coffee shop
do aeroporto, entre um e outro cafezinho, prontifiquei-me a levá-lo ao hotel
para uma ducha, uma soneca, um pouco de descanso, expliquei que havia planejado
uma passadinha rápida na casa da minha irmã, queria entregar-lhe o presentinho
de aniversário.
- Não posso ir com você?
- Acho que você devia se trocar, pelo menos, não sei, não
quer mudar de roupa?
- Não estou bem assim???
Tênis surrados de anteontem, a velha calça desbotada, a
camiseta amarela feia como o diabo, reminiscência de uma das fervorosas brigas
de foice do Sindicato do Judiciário por reajuste de salário, a luta continua, meu camarada!, então
você é o presidente do Sindicato, não me diga?, rarará, o destino me pregara
uma ópera bufa?, surpreendera-me com esse homem maluco, um desmantelado de carteirinha?
Não. Ronaldo é um homem nu. De orgulho, de afetação descabida, nu de empáfia,
nu de arrogância, um homem nu de preconceito, do jeito que eu queria, um
modesto coração generoso ansioso por enredar-se naquele chão, no meio daquela
gente, Ronaldo viajara para conhecer todas as minhas pessoas e para tornar-se,
definitivamente, conhecido. Em quatro dias, visitou meus seis irmãos e metade
dos sobrinhos. Voltou vinte dias depois para novos entrelaçamentos.
Desembolsamos o dinheiro que não tínhamos, rarará, para o festival de passagens
aéreas Rio-Recife, até o 19 de abril do ano seguinte, quando nos casamos de
todas as maneiras que há. Devidamente amarrada no civil, com comunhão de
escassez de bens, rarará, desembestei para a cerimônia religiosa, fantasiada de
manjar de coco, atravessei a passarela do samba do crioulo doido (sugiro que
leiam uma antiga crônica, chama-se Aliança), para receber a bênção e não ficar mais
falada ainda no pedaço. Sob a batuta de Mestre Zé Roberto, o pároco mais boneca
da Veneza brasileira, e olhe que, de sacerdote veado, o país sem porteira vive
abarrotado, contraí as sagradas núpcias e um breve resfriado sem maiores
consequências. Padre Zé Roberto, um santo, um sábio, uma figura inoxidável, uma
bichinha descomplicada, graças ao Pai, de bem com Deus e com todos os meros
mortais, fez um sermão de sacudir a torcida, comoveu os convidados, a mim emocionou
profundamente, abalou para sempre a frágil estrutura do meu confuso templo
interior: o compromisso firmado esta manhã, Ronaldo e Adriana, precisa durar a
eternidade. Pertençam-se, escolham-se, em qualquer circunstância, pálidos de
espanto, diante da mais bonita história de amor que eu já ouvi. Depois de toda
tempestade, retorna a claridade, meus irmãos. Cuidem da sua história,
preservem-na, zelem por cada precioso detalhe dentro dela. Lembrem-se de
guardar alguns discretos segredos íntimos, particulares, um grande amor tem subterfúgios, nuances que os amantes não revelam, nem sob tortura. Afaguem-se cotidianamente, acarinhem-se, protejam-se,
atentos aos pequenos, inesperados mimos e gestos que iluminam a relação, é de
mínimas gratas surpresas que se constrói um sólido, nítido casamento.
ALGUÉM TOTAL
Vem me abraçar, vem
Vem reparar bem
Quem é que abraçou quem
Pois vou te abraçar também
Quem dá um abraço
Não sabe se deu
Ou se devolveu
Ou se perdeu
Quando o abraço sai de alguém
E não volta
Não envolveu, anunciou
Renunciou, dissolveu
Vem me abraçar, vem
Vem reparar bem
Quem é que abraçou quem
Pois vou te abraçar também
Quem quer um pedaço
Um pouco de alguém
Abraçando tem
E ainda mais
Se o abraço for além
De um minuto
Aí é fatal
Envolveu
Você tem um alguém total
(Dante Ozzetti/Luiz Tatit)