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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A casa dois

Entre os dias vinte e nove de setembro e primeiro de outubro, o Sol continua em sua primeira casa astrológica, mas a Lua transita para a Casa Dois. A idéia para este período envolve uma consciência emocional maior de seu próprio valor, uma percepção mais concreta do que você deseja e dos recursos de que necessita para realizar seus intentos. Por isso, você se concentrará mais nos aspectos práticos de seus desejos, nestes próximos dias, na medida em que a Lua cresce. Num sentido negativo, cuidado para não comer em excesso, como forma de satisfazer ânsias e carências.
Eu me cadastrei em um site de horóscopo personalizado, que, vez por outra, me surpreende com cenourinhas, couvezinhos e abobrinhas dessa ordem. Pense numa previsão mais sem pé nem cabeça, é essa aqui. Pra começo de conversa, a recomendação disparou atrasada. Eu como em excesso desde o dia dez de agosto próximo passado, a greve me suscitou um apetite de leoa parida, coisa de não se controlar nem com tarja preta. Meu cloridrato de sibutramina é de farinha, aposto meus rins nisso. Cada vez que sou obrigada a abandonar o meu parceiro travesseiro, para resolver qualquer assunto na rua, o que, diga-se de passagem, nunca resolvo, sequer parcialmente, me assoma aquela preocupação velada, a de não caber mais no que tenho no guarda-roupa. Vivi dessa maneira desde que meu mundo é mundo. Sou gorda de março a agosto, e muito gorda, de setembro a fevereiro, justamente quando as celulites migram para o litoral, tomam muito sol e muitos cristalinos banhos de mar. Acrescente-se a isso o fato de que, nem mesmo em dia de festa da padroeira dos cognitivamente prejudicados, a minha pessoa pernambucana dos olhos de mel, jamais teve a mais remota ideia, a mais leve suspeita de quem ela vem a ser, do que verdadeiramente deseja da vida, que dirá dos recursos necessários para a concretização dos tais intentos. Desde que meu mundo é mundo, eu faço a linha desconhece-te a ti mesmo, que é o melhor que tens a fazer para o teu bem, meu bem. Segue cantando na batucada da vida. Eu entrei de gaiata num navio, e entrei pelo cano. Pré-adolescente ainda, já sofria daquele mal da incompreensão da razão de viver e de sofrer. Sofria mais do que duzentas e oitenta e três adolas juntas num quarto escuro. Eu me lembro da primeira vez que a vida me deu um safanão no pé da orelha, virou uma pereba que ficou supurando anos a fio, foi quando as minhas mães postiças, todas de uma vez, combinaram de sair de casa pra brincar de casinha longe da minha fuça. Doeu, viu. Afaguei meu peito, aliviou, passou. Fico mais dura. Cresci olhando a vida sem malícia, ninguém acredita quando eu digo isso, parece até que eu era a messalina mais turmalina do bacanal, eu até já desisti de insistir nessa besteira, o achômetro existe é pra cada um acionar como acha que deve, pois bem, cresci olhando a vida sem malícia, até que um cabo de polícia despertou meu coração. O coração e os lábios. Lábios até aquela ocasião, jamais tocados. Da chaga aberta nascerá uma flor. Não.  Como eu fui pra ele muito boa, me largou na vida à toa, desprezada como um cão. Tem homem que é cachorro que de hora em hora nos arranca um pedaço. Fico mais dura. Descobri na revista dos signos, que os capricornianos vivem com uma eterna dor de dente, são os mártires do zodíaco. Pensei assim, Maria das Dores és tu, agora sei quem sou. Deu-se que a idade foi me desconstruindo, fui virando outras, completamente diferentes daquela que mais ou menos deduzi que eu era, pelo menos nos dias pares, antes das onze horas da manhã, você tá me entendendo, que eu sei. Num é que me disseram que o meu ascendente fecundou em mim uma nova mulher? A essa altura do campeonato, mais velha que jovem, nada elucida coisa alguma, jazo cega em tiroteio, mais por fora do que umbigo de vedete, mas não me importo. Tudo é muito importante, nada é tão importante. A consciência emocional do meu próprio valor esfinge se expor, pra me estraçalhar, engolir a presa, membro atrás de membro, porque não me decifro. A consciência emocional do meu próprio valor devora as camadas de couro curtido e lambe os beiços. Fico mais pura. A crônica de hoje parece que adensou, ganhou peso, e é isso mesmo. Nem sempre o dia está para papoulas e para cortiças.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Harpa, blush e camisolão

Quando eu nasci, veio um anjo safado, o chato dum querubim que decretou que eu tava predestinada a ser errada assim... De saída, minha estrada entortou, mas o meu anjo da guarda é brasileiro profissão esperança, sei tanto que ele não desiste nunca, que eu já nem lembro pra onde mesmo que vou, mas vou até o fim. Ele não é lá muito prático, verdade seja dita, e gosta de me ver viver perigosamente, mas, no frigir dos ovos, na hora do dá ou desce, aos quarenta e seis do segundo tempo, bem ou mal escapo... Fedendo.
Ontem nos encontramos, eu e meu marido, com um casal zen budista, ou coisa que o valha, gente da melhor qualidade, e a conversa ficou mesmo no âmbito da paz e do amor, paz e amor, paz e amor. Tergiversou-se consideravelmente a respeito de conspirações cósmicas, ocultismo, astros, quadraturas, ascendentes solares e lunares, terapias holísticas, resgates, mandalas, religiões de todas as fragrâncias, canga, zanga, sanga, enfim, esses assuntos dos quais sei menos que lhufas, não sei neres de pitibiriba, não sei mas gosto que me enrosco. Várias experiências místicas foram compartilhadas, aquilo que a gente acha que é coincidência e é Deus na fita, a conclusão a que chegamos, em uníssono, é a de que simplificar a vida é o caminho. Ao caminho, à verdade e à vida! Eu cá com os meus botões, só pensava no meu anjo da guarda. Tudo em mim crê na existência dele. Aliás, pelas estratégias operacionais, pelo jeitão de supervisionar e de interferir nos meus feitos e desfeitos, pela natureza da abordagem, desconfio que o anjo é anja, e já vou me lembrando de uns versos do Cacaso, Lucinha Lins (alguém sabe dela?) gravou tão belamente “dentro de mim mora um anjo que tem a boca pintada, que tem os olhos pintados, que passa horas a fio no espelho do toucador, dentro de mim mora um anjo que me sufoca de amor...” Onde a minha anja se recupera da canseira que  lhe dou, eu não faço idéia, mas a minha anja mora fora de mim, e me espreita. Uma das suas mais recentes proezas foi nos encaminhar de mala e cuia para a beira do mar, quando tudo parecia perdido. Explico: a primavera é uma menina-moça na flor da idade, uma menina incandescente com passarinhos em torno dela,  ígnea menina debruçada no parapeito da minha janela, esperando o momento de menstruar. A menina vai sangrar sol e as minhas articulações vão sossegar.
Quando eu pirei na batatinha e decidi me enganchar com um sujeito radicado em Nova Friburgo, uma cidade que, pelos meus cálculos, fica no Pólo Sul, isso porque eu li uma vez que o Pólo Norte é mais quente que o Pólo Sul, então Friburgo só pode estar lá, no Pólo Sul, quando eu me casei com o tal sujeito, a minha vida resumiu-se a matar e morrer por uma transferência para a cidade em questão. Sofri, chorei, blasfemei, tudo porque a diretora da escola nem me deu as horas, não quis nem saber se eu era branca, preta ou amarela.  Tenho de contar a vocês que faz uns cinco anos que me disseram que eu tenho uma artrite reumatóide rara, reumatóide e psorisíaca, misturada com uma artrose de pescoço, joelho e cotovelos, minhas juntas tão naquela fase do junta e descarta, pois bem, eu não pensava em nada disso, eu só queria ser feliz com meu marido em Nova Friburgo. As tentativas todas bateram na trave, teve dia de eu achar que tava mesmo perdendo o parco juízo que me restava, eu até sinto que perdi todo o meu pouco juízo naquela época. Quantos meses ou dias, agora lhes pergunto, eu sobreviveria dentro de uma geladeira? Alguém arrisca um palpite? Às vezes eu me imagino assim, essa paçoca de carne e de ossos desarticulados, um bago de jaca engelhado, agonizando no frio. Acontece que a minha anja não muito prática, do contrário seria anjo, demorou o maior tempão escolhendo o verão mais quente, o lugar mais paradisíaco, a praia mais linda, de areia mais branca de água mais azul, para enfeitar a noite do meu bem. Bastou um e-mail e o então diretor da nossa escola respondeu que eu era muito bem-vinda aqui. Bem-vinda, profe. Um golpe de mestre. Bem-vinda, prima alaranjada. A minha anja é ou não é o cão? De harpa, de blush e de camisolão! Se essa idéia brilhante não lhe ocorreu naquele intervalo entre a manicure e a esteticista, minha filha, eu choche. Caia um raio bem no meio da minha cabeça.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Greve de pijama

Faz uma eternidade que aqueles que trabalham muito bem para o bem da boa educação pública federal, estão em greve por tempo indeterminado, travando conspícua  batalha com as autoridades responsáveis, tudo em prol de uma pá de coisas fundamentais, assim como fundamental é mesmo um amor, que é impossível ser feliz sozinho, pelejando contra o corte de verbas do governo para o setor, por justo reajuste de remuneração, pela reestruturação do plano de cargos e salários, sobretudo, pela reestruturação da auto-estima do funcionário público, etc e tal, e eu sinto muito orgulho de serem os meus dois bracinhos roliços, mais dois braços que mantêm-se cruzadérrimos nesse momento, porque se não é assim, ninguém se coça para resolver essa parada. Tem tempo já que eu sou da casa, participei de outros acirrados embates, sofri represálias, fiquei sem pagar minhas contas, melhor dizendo, paguei minhas contas com dinheiro de parente, pra num ir presa, e não quero essa agonia para a minha cabeça de novo, nem para as formidáveis cabeças (pense num povo inteligente!) dos meus diletos colegas de trabalho, Deus nos livre dessa provação. Portanto, torço para que Nossa Senhora Desatadora dos Nós intervenha, garantindo-nos um breve e excelente retorno às atividades profissionais, com o sentimento do dever cumprido, de pretensões satisfeitas, na certeza da preservação dos nossos direitos, determinados a respeitar porque fomos respeitados.
Confesso que adoro um bastidor. Não sei brigar, nem nunca na vida tive um centavo de senso de liderança, aliás, se a minha pessoa tiver de gerenciar alguma coisa, vai ser um Deus-nos-acuda sem precedentes, que eu também padeço de SDEC, a síndrome da desorganização espacial crônica, além de DP, demência progressiva. Sabe aquela piada das tartarugas, velha como o tempo? Pois, pronto. Ela me cai feito uma luva.  Se me derem duas tartarugas pra eu tomar conta, uma escapa, e sem quaisquer dificuldades. Eu já era muito apaixonada pelos meus alunos, eles devem saber disso, mas, por causa exatamente dessa paralisação de atividades, amo-os ainda mais. Acompanho o rebuliço, por trás das cortinas, não vi nada na TV, e é absolutamente enternecedora, emocionante mesmo, a garra desses meninos, o despojamento, a ousadia, a compreensão que eles têm da importância da participação de cada um no nosso movimento aqui, no coração da cidade. Quero parabenizá-los, grandes cidadãos dos Lagos e do mundo. Se pensarmos que os mestres somos nós, que isso é o que floresce, apesar de todas as adversidades, do que plantamos dentro da nossa escola, a luta continua. Café, a conta e a rua.
Tem gente que é de um vigor, de uma criatividade impressionante. Tem gente ágil das pernas e dos miolos, seres humanos, sem dúvida, privilegiados, favorecidos com um gás, uma energia vital, uma iniciativa para realizar tudo, muito e ligeiro, acho isso um troço fabuloso, mas eu não sou assim. Meu modus operandi é em slow motion, that’s it. De modos que, se me apressarem, eu me estaboco toda e quebro a cara no chão. Junte-se a isso a convivência cotidiana com o maior dos meus males, uma preguiça que é minha desde antes de eu sair da barriga da minha mãe para essa confusão, e você saberá por que não fui escalada para integrar a seleção power rangers do comando de greve. Muito ajuda, quem não atrapalha, diz o ditado. “Não sei se a vida é pouco ou demais pra mim”. Pelo sim, pelo não, permaneço de pijama. Café e a conta. A luta continua.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Um mais um é mais que dois!

A minha ansiedade me cegou. Os comentários feitos naquele primeiro momento, estiveram sempre aqui. "Será que é tempo que nos falta pra perceber, será que temos esse tempo pra perder? A vida é tão rara". Obrigada, então, por produzirem, juntos, a melhor das crônicas.



Você está indo muito bem. Parece que leva jeito. Esta é uma estória muito linda! Quem acompanha desde o início sabe que ela tem todos os ingredientes de uma grande estória de amor! Parabéns aos personagens! Parabéns à autora! Esta é uma história de conquista, onde na verdade, todos conquistam, seja lá a vontade da infância que se foi sem nem um animalzinho, do velho cão que conquistou a presença de um cão mais novo; de espaço maior para o cão velho, e mais atenção das pessoas. São Conquistas para todos, Nicolau, Valentim, Raul, Adriana, Ronaldo. Vixe que coisa mais linda. Como li há pouco, (créditos de minha mãe), disse um grande filósofo: escreve para que eu te veja. Muita gente acrescentará: Escreve para que eu te veja melhor. Tive um cão, não era meu, mas sempre quis que fosse. Peguei carona nos cães de minha irmã...  mas os amava do mesmo jeito. Eu os adotei, do fundo do meu coração. Ainda hoje sinto saudade deles também. De Pooky, meu eterno companheiro, uma alma amiga, se é que cão tem alma, mas aquele tinha. Foi meu superamigo durante anos. Melhor amigo, um grande período, que não me deixava dormir nem chorar sozinha. Lambia as lágrimas... rs e ficava ali.. esperando a tristeza passar. Obrigada por trazeres essas recordações! Hoje sou alérgica a cães. Mas os amo do mesmo jeito. Assim, só na espreita. Sem chegar muito perto. Só o amor continua... Liiiiindo! Eu sou suspeita, né? Depois que fiz 8 anos nunca mais vivi sem um cão. Não sei o que é não ter um cão e nem quero saber. Amo d+! Hoje dona Nilde soltou uma pérola na hora do almoço: “Eu estou tão feliz com a minha família assim tão grande!“ Não, eu não estou grávida. Ela se referia ao novo membro da família Lipe. Agora são 2 cães, 1 peixe, 2 periquitos fora os que vocês já sabem... Lindo. É sobre a impermanência. O budismo nos ensina a lembrarmos disso ao longo da vida. A gente costuma esquecer, não é. Mas precisamos de ensinamentos que possamos ver a realidade com clareza e nitidez. Se a gente puder viver sem se apegar de forma ferrenha às coisas, sofreremos menos. Seremos mais felizes. Porque tudo muda, sempre.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Perdas e ganhos

É com o coração partido que informo aos que, tão gentilmente, comentaram os meus modestos escritos, no alvorecer do blog, que perdi tudo. A ignorante virtual fez uma lambança monumental e as palavras escorreram pelo ralo. Ecoam todos os carinhos, entretanto, até hoje e para sempre,  no fundo deste velho peito.  Perdão. Sacudo a poeira.Vamos daqui para adiante.

Ilusão

Eu tenho muitas coletâneas de crônicas, muitos livros. Não sei direito se sou preguiçosa para os romances, eu sou preguiçosa para tanta coisa, mas, de fato, as histórias curtas me pegam de jeito. Toda vida fui assim. Acho de uma competência brutal o sujeito dar o seu recado, entrar para a rol dos bons de pena, na linha vim, vi e venci, informando, inventando, integrando, inflamando, e inspirando - tanto que estou aqui a postar estas mal traçadas - na imensidão de duas páginas impressas. É o que me faz também, em igual medida, leitora de poesia. Cabem dez livros num poema, eis o que penso. Por essas e outras, conheço crônica de tudo quanto é idade e procedência. Conheço As cartomantes, de Olavo Bilac, um diamante no gênero, uma preciosidade do primeiro ao último parágrafo. “O conto-do-vigário nasceu ontem, e a polícia ainda não conseguiu extingui-lo. O jogo do bicho é um vício infante, e a polícia ainda nada pôde contra ele. Por quê? Porque não é difícil prender e castigar o passador do conto-do-vigário e o banqueiro do jogo do bicho; mas é impossível exterminar a raça dos tolos; e, enquanto houver tolos que queiram ser enganados, eles próprios inventarão quem os engane”. “A superstição é velha e eterna como a inteligência”. Dá-lhe, Bilac.
Eu não creio em bruxas, mas... Já visitei uma penca de videntes lá em Recife, desvendadores dos mistérios escondidos nas cartas, nas linhas da mão, nos búzios, nas runas, na tolice de quem quer crer, “como mentiam as cartomantes, como eram falsas as bolas de cristal”. Em Petrolina e no Rio de janeiro também. As ciganas leram meu destino, alhures, e eu fiquei sempre só sabendo da parte boa, a ela me agarrando com unhas e dentes, que além de preguiçosa, sou medrosa de dar dó. Não posso falar pelos outros, conheço muita gente que esbanja coragem, e segurança, e auto-suficiência, e fé na vida, no homem e no que virá, e o raio que o parta, mas a criatura que vem lhes relatar agora um acontecido, é uma criatura mergulhada nas mais profundas águas das incertezas da existência, uma pobre alma atormentada, debatendo-se nas movediças areias do hoje e do amanhã, e temendo-as por demais.
Chegou um momento na minha vida em que eu decidi ser par, me apaixonar por um  heterossexual solteiro, uma empreitada praticamente impossível, fadada ao malogro, na curva perigosa dos quarenta anos, porque é justo aí quando os heterossexuais solteiros do pedaço querem permanecer solteiros até o seu desencarne, veja bem quão simples era a minha aspiração, eu planejava me apaixonar por um homem, fazer deste homem um homem também apaixonado por mim, apaixonado a ponto de querer casar-se comigo, de papel passado, no civil e no religioso, para viver com ele, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, além da morte física, a mais bela e doce história de amor de que se tem notícia. Tomada a decisão, fui a uma consulta com uma taróloga, uma velha linda, muito meiga, muito sábia, uma mulher que as estrelas me apresentaram, ou foi a lua, ou foi Deus, uma antiga moradora de uma ladeira de Olinda. Olinda, tens a paz dos mosteiros da India. Minha consultora para assuntos esotéricos também.
Nas cartas estava escrito assim, que era para eu me preparar para a minha primavera, pois um longo, rigoroso e necessário inverno de desventuras em série  findara, abrindo portas e janelas para os floridos, coloridos canteiros da vida. Me lembro como se fosse hoje, ela me perguntou: você está vendo este imperador carregando uma flor de lótus na mão? Pois ele vem carregá-la nos braços, com a mesma delicadeza e cuidado. Tolamente, acreditei?
O tempo passou, passou, passou, e eu achei que o imperador vinha de jegue, haja vista a demora. Um dia eu arranjei um namorado pela internet, mas eu achei que ele não podia ser o  tal imperador, porque ele morava muito, muito longe de mim... E era carioca. Cariocas são bacanas, cariocas são sacanas. O namorado desabalou-se do Rio de Janeiro pra Recife pra me dar um nome e um novo estado civil, e eu comecei a reconhecer naquela calvície sedutora, naquela charmosa protuberância abdominal, nos olhinhos infantis, o príncipe encantado do reino de São Sebastião do Rio de Janeiro, para mim designado pelas altas esferas do imponderável. Deu-se que o príncipe era funcionário da Justiça do Estado, impedido, portanto, de morar em outra cidade, a menos que se mudasse desempregado, mas aí não tem conto de fada que perdure mais de vinte dias, vamos combinar. Porque sou funcionária pública federal, ih, foi mal, resolvi tentar uma transferência de emprego, já estava casada, muito bem obrigada, só faltava mesmo o comer sal junto, como se diz na minha terra. Num é que a coisa deu pra trás? Ninguém me amava, ninguém me queria na Guanabara. O desespero foi tanto que eu telefonei para a taróloga, aos prantos, desatinada, implorando uma consulta de emergência, me lembro como se fosse hoje, ela, de dentro da paz, uma paz que eu desconheço, me dizendo “venha, conversaremos”.
Nas cartas estava escrito assim, que era para eu sossegar, a solução vai chegar sem você arredar um pé de onde está. Não há quem possa interferir na missão que lhe coube, Adriana. Nada impedirá. Eu não acredito em bruxas, mas... Dias depois, a colega do RH me ligou, eu estava na minha própria casa, contando a novidade,  a publicação no Diário Oficial.
A vida é uma biribinha. Tem dias que eu fico pensando na vida e, sinceramente, não vejo saída diferente de viver e arriscar todas as cartas, numa fé improvisada.  Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Entardeceu enquanto eu escrevia, o imperador chegou do trabalho, subiu pra tocar violão, não sem antes me beijar apaixonadamente, eu nem pedi, tão entretida fofocando, ele beijou porque quis mesmo, todo dia é isso. “É impossível exterminar a raça dos tolos”. A missão é secreta até para mim, não sei, não quero saber, tenho raiva de quem sabe. Eu não acredito um tico na ciência das cartomantes. É primavera. Te amo.

Quatro patas inquietas

Depois que a gente se mudou para cá, para os Lagos, Nico ficou mais suscetível a doenças de toda sorte, a veterinária explicou. Ele levava uma vida plácida, naquele gelo ártico de Friburgo, ocupado em comer e dormir, e cavucar as coisas da rua muito de vez em quando, protegido de todos os males da terra e do ar, debaixo daquela coberta encardida, isso quando ele só contava com o pai, porque eu, a essa altura da história, nem sonhava que a gente nunca pode dizer ‘dessa água não beberei’, então eu repetia essa babosice todo dia, porque ter idade não tem nada a ver com ter maturidade. Aliás, quando eu penso que estou madura, alguma intercorrência cotidiana que nem é coisa muita, já me derruba da sela, eu caio do cavalo e me sinto uma minhoca com tosse completamente incapaz de dar um passo, nem para trás, nem para adiante. Aí eu penso ‘como eu sou imatura!’, e choro até ficar entorpecida.  Eu não sabia que eu ia ganhar um cachorro de presente, para eu amar e respeitar todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe. Deus me despachou de uma vez só, um marido e um cachorro. O marido veio cardíaco, cheio das isquemia já, e eu, do dia para a noite, virei essa mulher grave e atenta, diligente e vigilante, usuária dependente de fluoxetina diária na máxima dose.  O cachorro, com dois dias de praia, adoeceu feio. Mais dois dias, e o bicho estava com os dias contados.  Tem uma médica veterinária aqui, que fez o curso por correspondência, aposto, e sentenciou, categórica: ‘eu acho melhor vocês adotarem outro cão, Nico tem um tumor de fígado com metástase no pulmão. Ah, e tem um sopro no coração’. Ao meu bem mostrarei o coração, um sopro e uma ilusão, eu sei. Na idade em que estou... A especialista em questão descobriu isso tudinho enquanto tratava a doença do carrapato que acometeu meu velhinho, enfermidade essa que eu desconhecia, bicho pra mim era de pelúcia, estão lembrados? Eu nem me lembrava de que os carrapatos e eu coabitamos o planeta. Pra resumir, a gente gastou o que tinha e o que não tinha para salvar Nicolau da terra das pata junta.  A gente chorou o que tinha e o que não tinha de lágrimas sentidas e a gente trouxe pra casa outro salsicha, esse sem grife, um vira-lata muito do cafajeste, que atende pela graça de Valentim.  Aliás, não atende, porque ele é muito sem vergonha e sem limite e não escuta ninguém. O nome fui eu quem escolheu, é o nome de um dos vinte e sete filhos de Dado Dolabella, eu li numa revista de fofoca, adorei, achei que era forte, garboso, não pensei sequer por um momento na personalidade e no caráter do ator, cantor, compositor, etc. Agora nem adianta mais conjeturar a respeito dessa escolha. Faz exatos dois anos que a gente confirma que Nick não era um paciente tão terminal assim, e ficou claro para mim, naquele olhar opaco que ele nos lança do sofá, olhar perdido conquistado com os anos, opaco porque ele tá cegando, o que não é de todo mau, certas coisas na vida é melhor um animal não ver, o quanto ele despreza o irmão. Valentim já é adulto e gasta todas as vinte e quatro horas do dia enchendo o saco dele. O caso é tão sério, tão desesperador, que a doutora, outra doutora, bem entendido, que daquela lá eu não quero ver nem a sombra, a fabulosa doutora que agora toma conta deles, a Drª Érica prescreveu para ele um remedinho de seis milhões de dólares, um antioxidante, condroprotetor, umas cápsula com ômega 3 e umas raspinha de ouro dentro, só pode ser, pra ver se ele sobrevive.  ‘Valentim é um cachorro sem mãe’, meu marido brada aos quatro cantos deste modesto lar todas as manhãs. Valentim dorme debaixo do sovaco do meu marido todas as noites, sobrou para mim o bagaço esporádico de um sábado ou outro, e é só porque tem noite que eu abro o fole, grito, esperneio, ameaço voltar para Recife no primeiro trem, deixar esta casa para as traças. Enquanto crescia, Valentim destruiu pelo menos oito das minhas sandálias arezzo, sete havaianas que não soltam as tiras, mais dois sofás, um celular, um pé de mesa, três cadeiras, dois pés de cama, dois pares de óculos, seis almofadas, três cobertores e duas fronhas. Valentim comeu meu coração de galinha num xinxim, ai de mim. Um dia desses, quando Raul chegar, porque é certo como a morte, que um dia eu vou ter um cachorro que vai se chamar Rauuuuul, Valentim vai saber o que é ser velhíssimo. E ter um irmão sem pai. Nem mãe. Ah, se vai.

Quatro patas

A Lygia Fagundes Telles me contou uma história uma vez, a mim e a cada criaturinha do planetinha azul que também leu a história no livro dela, óbvio e ululante que a Lygia Fagundes Telles nunca tomou conhecimento de conversa alguma que jamais houvesse tido com a minha humilde pessoa, é tudo viagem dessa minha cabeça ociosa, a quem a greve concede mais e mais ócio ainda, pela graça divina. Uma história sobre um padre velhinho que ela encontrou numa viagem (era uma vez uma viagem...). Ela ficou muito impressionada que o padre se despedisse dela dizendo ‘até logo’, porque o padre era muito, extraordinariamente velho, ela tinha tanta certeza de que não retornaria àquele lugar tão cedo, como é que um velho tão velho, desses que perdeu o bonde do tigrão da morte porque o motorneiro queimou a parada, despedia-se das pessoas assim desse jeito leve de quem vai viver mil anos.  Tinha de ser ‘adeus’, meu senhor, mas ‘até logo’? Peraí, né? Eu vou procurar direitinho pra postar o relato aqui fidedignamente, sem aumentar um ponto, Deus o livre. Trata-se de uma crônica memorável, muito reveladora, pelo menos, assim o foi para mim, na ocasião da leitura.
Nem pense que você sabe alguma coisa da sua vida porque você não sabe. Esse mote despertou comigo. O marido, os meus adoráveis cães e o mote. Todo mundo anda de saco cheio dessa minha conversa de cachorro. Menos eu, que estou no mundo, e não esgotei o assunto. Você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui. Eu nem cochilei. Nas noites escuras de frio, chorei, ei, ei, ei. Desde pequena, eu achava que essa coisa de bichinho era coisa pra retardado. Bicho perto de mim, de pelúcia e olhe lá. Quando eu vim para esse mundo, eu não atinava em nada. Meu pai e minha mãe, que Deus os tem, deram graças a Deus dos demais filhos serem adultos, a caçula contava treze anos, de maneiras que gente em casa não ia faltar pra tomar conta. Cresci assistida por quatro ou cinco mães postiças, a mãe de verdade guardou uma segura distância de mim, já naquela idade, pariu a raspa de tacho com quase quarenta e cinco anos, para ela pareceu-lhe o melhor a ser feito, e eu compreendo. Pois muito bem. Ninguém cogitou me arranjar um animalzinho. Podem não acreditar, mas guardo uma foto, essa vai para a posteridade, uma foto minha com uns cinco, seis anos de idade, eu muito bem penteada, muito da sisuda, vestida pra festa, muito bem sentada numa cadeira muito da chique, olhando um livro de João Cabral, salvo engano. Não era Rex que eu mantinha envolvido em meus braços, nunca houve Rex, nem Teco, nem Filó, nem Totó, nem Rim-tim-tim. Não é minha mentira não, no dia que eu mentir o mundo se acaba.
O tempo passou e eu completei quarenta e dois anos de idade. Arrumei um marido pela internet. Enquanto o marido era namorado virtual, eu vivia sobressaltada, pensando que tava namorando um ET, porque o marido, até aquele momento um reles namorado virtual, era um sujeito que preferia não ter face nem nome. No dia em que eu pedi a ele que por Jesus crucificado ele me enviasse uma foto, ele, o marido namorado virtual, me enviou o retrato do cachorro mais sensacional de todos os tempos, um sonho tão completamente meu, trancafiado a dezessete chaves dentro do meu peito de menina, meu amado, meu idolatrado, salve salve Nicolau, o meu cachorro. Me chamo Ronaldo e quero que você conheça  Nicolau, o meu melhor amigo. Goste dele. Nem pense que você sabe alguma coisa da sua vida porque você não sabe. Nicolau saltou daquele retrato para o meu colo. Nicolau transpôs todas as intransponíveis muralhas do tempo para lamber a minha cara de cinco ou seis anos naquele outro retrato. Nenhuma criança do mundo merece ser uma criança madura para a idade. Nenhuma criança do mundo merece tomar refrigerante só aos domingos.  Nenhuma criança do mundo merece que algum débil mental lhe diga que ela já é uma mocinha. Ou um rapazinho. Nenhuma criança do mundo merece ser uma criança que não pode amar um cão, trazê-lo, com todos os germes e bactérias que lhe são intrínsecos (e transferíveis, e daí?), para dentro de sua própria casa, para rolar com ele pelo chão até cansar e dormir ali mesmo abraçada a ele, seu amigão. Pobre de quem se rende aos encantos de um cão. Esse vai ser gente. Esse nunca mais vai ser sozinho. Um cachorro faz um homem. Um cachorro faz um homem virar outro homem. Meu cachorro é a cara de Deus.
Nicolau tem quatorze anos e um irmão, mas essa já é outra história.

Puro preconceito

Segunda-feira, clara manhã de 5 de setembro, clara e fria pra danar. Onde eu moro existe isso de o sol ficar a pino, ensolarando sem esquentar. A mesinha do computador dá para uma janela, a dos fundos, sempre aberta, pra sorte entrar também por ali. As rajadas de vento gelado embalam a roupa lavada, secando no varal, a minha frente. As rajadas de vento gelado açoitam meus ombros, o colo, as minhas narinas e as minhas bochechas. Anunciam outra  gripe, ou será a mesma, misturada com uma sinusite daquelas que a pessoa quer morrer porque parou de respirar. Só me lembro daquelas mulheres daqueles países pacíficos do Oriente Médio, as que escapam do apedrejamento e podem caminhar pela rua, uns piccolos passitos atrás, de fuça coberta. Bem que eu queria nas ventas um paninho daquele agora. Meu reino por uma burca.

Depois da conversa com Ferreira Gullar, porque ele sequer suspeita, mas eu conversei litros com ele no sarau de sábado passado, e troquei todas as minhas figurinhas duplicadas por raríssimas pérolas negras, o que era para ser uma ideia concebida na quinta e abortada na sexta, vingou, actually. Ele disse lá, diante de todo mundo, que é pra qualquer pessoa que escreve escrever mesmo, virado no trem, pois muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos. Certíssimo. Quantidade nunca vai ser qualidade, num adianta. Com o advento do blog então, pense aí, só aqui na rua deve ter pra mais de duzentos cronistas. Absolutamente qualquer bestagem pode ser postada. Prestar e virar literatura já são outros quinhentos e oitenta e sete. Muitos são os chamados, poucos os escolhidos. Lendo poesia no sofá, ao lado dele, estavam mais dois, o Antônio Cícero, um escritor que dispensa comentários, ainda mais um comentariozinho mequetrefe que eu possa me arriscar a tecer, e uma mulher de vestido justo, muito, muito da arrumada, toda trabalhada na elegância, chamada Viviane, uma poeta, psicanalista, filósofa, professora, mestra, doutora, curadora, ela é um bocado de coisa, fez quadro no Fantástico, tem um monte de livro publicado, tem programa de rádio, escreve pra revista, jornal e o escambau. Engraçado é que quando eu cheguei, falei pro meu marido, aquela senhora tá precisando que alguém puxe o vestido dela pra baixo, tá vendo que ele tá franzindo e subindo quando não devia? Essa dama da noite era uma das supernovas do Café aquela noite e eu não sabia. Recitou alguns belos versos de sua autoria, que deviam ser bonitos, a audiência aplaudiu, efusiva. Ela não leu não, sabia tudo de cor, de coração mesmo, uns poemas imensos, sucuris no pantanal. Empertigou-se na cadeira, empostou a voz, mandou ver. Ela deve fazer cinema também. A questão é que eu não sei abrir meus chacras para o espalhafato. Essa coisa de vaidade é uma faca de dois legumes. O sujeito chama a atenção de cara, feito um pavão, é certo, mas dá trabalho a gente depenar o pavão pra conferir se a espinha dorsal sustenta na vera a tal alegoria. Uma fadiga implacável me arrebata, fico logo mouca. Se o assunto é poesia, minha filha, menos é mais. No trajar e no pronunciar. Glória Kalil tentou, mas nunca me ensinou direito como é ser chique, mas se tem uma coisa que eu aprendi com ela é aquela história de que chique mesmo é quem fala baixo. Falem baixo, por favor, pra que ela acorde alegre como o dia, oferecendo beijos de amor. Todo mundo sabe que na Grécia, isso para além de antigamente, assim como na escola da minha juventude, o poema a gente declamava mesmo era forçando demais as cordas vocais. Ninguém é doido de achar que o poema não diz. O negócio é que quando a gente lê o poema em voz alta, ele já é outra coisa, que é outra e mais outra, se a voz é alta demais. O poema fala no mais profundo e secreto silêncio. O poema cala. A leitura do poema é silêncio, no máximo suspiro. O carnaval jaz por dentro. Muitos são os chamados, poucos os escolhidos. Preconceito puro. Ou adulterado.