A gente pobre
que gosta de colocar-se a par de uma fofoquinha café com leite, rarará, precisa
administrar melhor a pindaíba, arroche o nó, ajuste a fivela do cinto, amigo leitor por
ventura tão fodido quanto eu, seu pobretão desafortunado!, aperte o cinto: Dilmaquinista, o piloto, sumiu! A gente tem de ver sobrar a raspa, uma laminha que seja, no
fundo do tacho, a gente carece de adquirir aquela sonhada coletânea do Otto, do Rubem (meu pai e minha mãe - meu ídolo
absoluto...), do Caio, do Fabrício, do Antônio Maria, do Paulo Mendes Campos... Na
aurora da minha nada mole vida, à alvorada do 31 de março, março é um mês inquietante,
a gente fica contrariada de faltar salário para tantos intermináveis amanhãs, a
senhora sente isso, fala sério! Meu marido me sustenta desde o dia 16, 17 do
corrente, mais ou menos por aí, não sou de optar pela conveniência dos porões
da mentira deslavada, não faço de conta, cuspo, de chofre, a límpida verdade. É
um descalabro, no meu parco entendimento, uma vergonha para a desvalorizada
categoria docente; a minha humilde pessoa, de outra vez, confirmando-se, na
banca examinadora do andar de cima, a premente necessidade do recuo imediato,
de descer de novo, ligeirinho, para fins de purgar a outra banda podre dos
cabeludíssimos pecados, a minha pessoa não deixará nada por menos, pretendo usar
da máxima cara de peroba, perante os meus superiores, rarará, no gabinete
presidencial do céu, nos altíssimos escalões do paraíso, devo dispor de algum
prestígio, membros ilustríssimos do clã dos Oliveira abriram o caminho, quero porque
quero porque quero ser funcionária pública da Justiça, minha única
reivindicação: serventuária da Justiça, isso sim é pinico cheio, todo dia ele
faz tudo sempre igual: meu marido reclama que só da injustiça dos seus escassos
rendimentos, tal e coisa, agora a senhora veja bem, o meu digníssimo marido já
assumiu, além da dele todinha, praticamente a metade do rombo da minha despesa,
a senhora não acha interessante eu mexer meus pauzinhos para, quem sabe, futuramente,
reencarnar servidora da Justiça? Inveja dos diabos, esse povo da Justiça lê de cegar, rarará! O sujeito pobre demais devia nascer logo era anjo,
mortinho da silva, a minha pessoa pensa desse jeito, que me
perdoe o Ressuscitado. Ando atrás de um volume novo cabaço, para aliviar as agruras mais
corriqueiras, para enfeitar as manhãs raiadas e o criado-mudo, o meu lado da cabeceira,
isso não é de hoje – uma coletânea de causos inéditos para lá de interessantes
– aliás, sobre essa brilhante particularidade do cabra da peste escrever pouco,
aprumado e bonito, arrisco meu palpite: quando o escrevinhador entende da
intimidade dos pormenores do riscado, o ponto e vírgula equivale ao último parágrafo.
Quando o cronista é de grife, de grife mesmo, madame, não me refiro às réplicas, não mesmo, que fique a observação muito clara, muito bem compreendida!, venho manifestar de público, inclusive,
meu profundo escárnio diante daqueles que deformam, soltam as tiras e exalam
aquela inhaca de miolo de pote vencido e mofado (tipo eu assim, por exemplo,
rarará, cronista de porta de cadeia meia-tigela!!), quando o cronista é de grife, esbanja talento e puxa por ele, que
não é besta, rarará, o cronista original de fábrica vai e mata página e meia
com um certeiro golpe de cajado. As modestas prateleiras dos meus humílimos
aposentos, também as do quarto da bagunça, acomodam inúmeras preciosidades croniqueiras
do coração do Brasil, algumas caindo pelas tabelas, aos pedaços. Ah, se os meus
proventos dessem para o gasto... O mais extraordinário desse generozinho
chinfrim é a indiscutível possibilidade de refrigério no desconforto da espinhela
caída: uma crônica bacana, de repente, acende o farol, sacode a poeira, é o brevíssimo
intervalo de poesia, de encantamento, a providencial leitura nas coxas escancara
um riso há séculos contido, liberta um grito, uma lágrima, um barco à vela, uma tábua - um sentimento somente seu, do qual você estava tão desencontrado... É isso e o pirão no fogo, a
torneira aberta, a gente se enternecendo, com ou sem estrondo, entre o café e o
cigarro, a pessoa corre ali, pega o livro, vapt-vupt, abriu, gostou,
praticamente decorou... e acabou-se, forever and ever repetindo-se. Sigo relendo os meus fuxicos favoritos,
vou com a maré, mudo de autor com a mudança dos ventos. De sexta-feira para cá,
avalie, voltei ao Melhor das Comédias da Vida Privada, de cabo a rabo,
revisitei todas as pérolas, Luís Fernando é sobrenatural, minha senhora,
sinceramente, o que o cara economiza na forma, subitamente, espoca: leve,
intenso conteúdo. Resgatei Estuário do fundo do baú, precisava relembrar
doçuras de Samarone Lima, a inesquecível Metáforas, pelo menos, aquela história
do trem azul, uma cor meio que me atravessando, de um lado a outro, rasgando, picotando o meu rascunho, o meu retrato. Não me refiro à réplica. Réplica me lembra a 25 de março, em São Paulo,
eita lugarzinho para eu apreciar é aquela Rua 25 de março, adoro aquela muvuca,
a gente chega lá e enriquece, se ilude que levou um bocado de dinheiro, a senhora
também tem a sensação? Pois eu tenho. Estive na Rua 25 de março, não faz muito
tempo, num dia qualquer que não me lembro agora, aposto que era uma data longe
de 25, no dia 25, minha senhora, em geral, não disponho de meia pataca
descompromissada, para comprar um cacete de dar num gato, mais um trio de
paçoca. Foi muito engraçado esse dia da Rua 25 de março, me lembro tanto desse
episódio na 25, me lembro que topei com um quiosque repleto de bolsas
belíssimas, show de bola, bolsas de todas as fragrâncias, baratinhas, vendidas
a preço de banana, fiquei enlouquecida, escolhendo, escolhendo, separei umas
seis, teve uma hora que comentei com a vendedora: ‘Nossa, essas imitações são
perfeitas, não é?’, para que, madame, para quê. A mulher mudou de humor, franziu
o cenho, trancafiou a cara, foi retrucando, depressinha, ofendidíssima, indignada:
‘IMITAÇÕES NÃO, minha senhora! Meus
produtos são RÉPLICAS, RÉPLICAS perfeitas, de primeira!’ Os meus produtos não são não, violão,
minha escrevinhatura é fake, tudo imitação, rarará! - pedra falsificada.
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domingo, 31 de março de 2013
sexta-feira, 29 de março de 2013
Aldeia
Isso do sujeito morar longe é muito complicado, a senhora
não acha? Eu sou muito do quintal de casa, toda vida fui, perdi cedo a fome de estrada, o fogo no rabo, a impetuosidade propulsora. Toda vida a mula empacou no batente da frente, toda
vida prevaleceu, sobre o nobre desejo de ganhar o oco do mundo – ah, ganas
cosmopolitas de ganhar o mundo, madame!, de posse do mundo, ganas de espanar as alas bien abiertas, conquistar o cume da
pequeña florecita libertad mariposa, rarará, barganhar algum
tolo, pragmático respeito, uma forjada, estúpida credibilidade – no coração da
minha vida besta, à pedra e precipício, em cima da hora h, prevaleceu mesmo the back yard, o esparramo à sombra do oitão; nem
sei se meus leitores conhecem essa palavra oitão,
tem um bar no Recife, tem ou tinha, vai ver fechou e eu não tomei ciência,
rarará, Oitão é o nome do bar, ou era, verei depois se ainda existe, eu frequentei
aquele espaço, o Oitão, pense numa birosca boa do pacato cidadão apear o
jumento, para o refresco das amídalas, um sonho isso do cidadão puxar a cordinha
e apear, para fins de molhar o bico, tomar um caldo, um trago, uma loura, uma ‘gelomática’,
diria o amigo Crisógomo, o maior apreciador de cerveja, de Campina Grande, da
Paraíba e do Brasil, rarará, um cálice, na companhia daquele parceiraço de bar, me
lembrei de Marcelo agora, Marcelo era meu amor de bar, rarará, Marcelo e eu
estávamos sempre mamados, duas doses acima dos demais meros mortais, a gente
sentava e bebia com pendor para encher a lata, numa disposição para discutir e resolver todos os
assuntos devidamente umedecidos (umedecidos umas tamancas, encharcadinhos da silva!), obviululantemente, tanto as mínimas pendengas
cotidianas, como os grandes, complexos conflitos da humanidade, uma coisa de
causar inveja, rarará, a gente bebia, bebia para cacete, bebia para arrumar as
ideias, quiçá escangalhá-las de vez, rarará, perder, sem cerimônia, o tampo do
juízo, quanta cachaça na minha dor..., em
volta dessa mesa, velhos e moços, vivendo seu normal, em volta dessa mesa,
existem outras, falando tão igual, em volta dessas mesas, uma cidade.
Farinha pouca, meu pirão primeiro: o céu e o sol do meu lugar. A genética aldeã
é bússola e compasso - favinhas contadas – cadeira vazia, o ninho reclama, meu
passado me condena: prisioneira do lar, nem me arrisco a prescindir de
regressar.
O bom de ser uma criatura entre as criaturas da Terra é a
gente andar por aí, tropeçando no calcanhar dos outros, experimentando de tudo,
atando e desatando, gostando e desgostando das coisinhas que só acontecem com
gente, me lembrei de Bruno Giga agora, Bruno é quem esclarece, muito bonito e
bendito: “Isso só acontece com gente! Você já viu, por acaso, um poste de rua,
alguma vez na vida, passar por isso? Não. Uma britadeira? Não. Um meio-fio?
Nananinanão. Isso é coisa de gente, Adriana! É coisa de gente...” Bruno é um
irmão querido, um parente de alma. Nessa
condição, na condição de irmão querido, Bruno envolveu-se, pau para toda obra, no
meu desalento, sem, entretanto, abrir mão do humor, da graça que lhe constitui
cada risível membrana. Bruno procurou, de todas as maneiras que há de amar,
serenar a minha angústia esganada, no meio dessa confusão toda com Ivomar – o susto
imenso, a U.T.I., a espera infinita pelo melhor momento para realizar o tal
procedimento delicado: o implante de stent
na carótida, o day after, um pouco mais
de espera, eu acompanhando de longe, aflita, tino desparafusado, perdendo a linha,
Bruno Clown ali, bufão brincante, batendo um dedobolão, demonstrando seu carinho, abraçando, aliviando, na farra, o peso da agonia. Acabo
de receber um telefonema de minha irmã, Tia Nilde, contando as novidades da
taba, historinhas que posso dividir com meus leitores do peito, é certo, sem
medo e sem constrangimento de ser a mais feliz (nem a palavra mais louca consegue significar tamanha felicidade!), pedindo licença para dedicá-las todas ao meu amigo de
todas as horas. Rola uma briga de foice em Recife, o povo se rasgando para
chegar num acordo sobre quem vai nos hospedar em abril, no feriado de São
Jorge. Tia Dau já mandou o recado: “meu apartamento está um brinco, troquei o
piso e troquei o guarda-roupa; dou casa, comida, roupa lavada e o carro na mão
de Ronaldo, com o tanque cheio na boca”, rarará! Tia Isis avisou que vai chegar
mais tarde, trazendo, a tiracolo, o namorado psiquiatra aposentado, rarará,
teremos, finalmente, o enorme prazer de conhecer o santo homem, rarará, cá pra
nós e pra torcida do Santinha, pro sujeito topar uma love story com Tia Isis, aquela figuraça kardecista da ladeira da folia,
rarará, tô pagando pra ver, esse sujeito deve ser mesmo uma figura... de cromo. Um brinde aos pombinhos enamorados, à panela e ao respectivo tacho, rarará! A voz de
Tia Nilde embargou somente quando ela mencionou o nome do nosso velho moleque
palhaço... Por um instante, Tia Nilde deixou o sal da lágrima expressar-se lento, pudera: “Ivomar
está muito bem, Adriana, passei o domingo com ele, conversamos muito, rimos
muito, ele pediu que lhe dissesse que vai ao teatro no sábado, ele quer ver a
peça de Manu com a gente, depois a gente vai sair pra jantar, fazer uma
bagunça, fazer festa num bar qualquer dessa cidade Dona Doida de saudade. Pode
sossegar, já pedi a ele para não morrer nunca, expliquei bem direitinho que a
gente não tem como viver sem ele, já disse que a gente não aguenta, ele achou
muito engraçado, disse para eu ficar tranquila, você também, que isso ele
garante. Ainda bem que você vem, Adriana, ainda bem que você vem... Quando comentei com ele, 'Ivomar, tu sabe que Adriana tá pra chegar?', ele me olhou com aquele olhar
só dele, olhar de cachorro que caiu da mudança, né?, Ivomar desatou a chorar,
chorou feito um menino, Adriana, feito um menino triste sem alento, conto porque fui eu que vi,
ninguém mais estava lá, conto porque vi, meninos, eu vi!, sei que você tem alma de acreditar!” O bom de
ser uma criatura entre as criaturas da Terra, fiéis leitores das fibras de mim, do meu peito convulsionado, o bom do ser é ser amado e, em igual medida, poder amar.
domingo, 24 de março de 2013
Life of pie
Valentim despertou cochilando em sua (e)terna morada –
seu porto seguro, seu tépido paradeiro: o meu regaço, decerto. O dia varou as
tripas da noite sem uma nesga de sol, a senhora acredita, madame? Uma judiação
para quem, igualmente à escrevinhadeira que ora lhe dirige o bote salva-vidas
da palavra, apostou todas as fichas no calor e na claridade (três vivas à
providencial folga no laço!) para a feriada caminhada matutina: acontecência de
virar auê, a santa ceia, um quadro, a tradicional pintura sobre a mesa de jantar: o
inefável jardim do paraíso, a mulher madura, seu jovem e garboso cachorrinho – trinca
sagrada, de bicho-gente, de bicho-bicho e de mar azul infinito - a mãe, o filho, o espírito de tudo; resoluta marcha
domingo afora, nas vigas do vácuo, à pata e a pé: a trindade ungida na inabalável
confiança em indissolúvel parceria. Prevalece a existência algodão-doce na
sombra, life of pie, rarará, o haver
de tudo, comungando a cega fé no poder do afeto sem muros, ninguém se perca de si, muito menos dos
seus amores, no ranger da tempestade, na solidão do naufrágio, no desespero vigente; ninguém se desconstrua, por gentileza, por mais que doa a dor, não enlouqueça. Bem-querer, bem-querer. Por pamonha, Pedro, pedra, parque, paz, piscina
e pergaminho. O Richard Parker da minha humilde residência já compreendeu que
hoje não rola passeio; autônomo quando lhe convém, bem entendido, a independência
de Valentim depende, rarará, Valentim é o senhor dos anéis de petisco sabor
churrasco, Valentim manda na própria vontade e na minha, manda no solar dos Guimarães
de Oliveira Barroso, manda no chefe da família, manda em Nicolau, manda em Andreia,
nossa querida faxineira, Valentim manda e desmanda nesse prestigiado circo
mambembe à beira-mar, no magote de mamulengos todos doidos varridos por ele,
Valentim é o cara, a cara da sem-vergonhice, a maior cara de puta que vai com
quem dá mais, Valentim acaba de dar de ombros, numa boa, desprezou, sem culpa, a
mordomia do meu colo quente, decidiu espalhar-se mesmo foi no coração solitário
do sofá da sala, a senhora jamais confie no lânguido olhar do seu adorável espécime
canino, Valentim nem se despediu de mim,
nem se despediu de mim, já chegou contando as horas, bebeu água e foi-se embora,
rarará, seguiu floresta adentro, sequer voltou-se um instante, olhou para trás.
Minha nobre intenção, nessa azeda manhã mofada e cinzenta, era distrair o
leitor entediado até a raiz dos cabelos, enchendo miolo de pote, conversando
miolo de pote, As Aventuras de Pi na algibeira, about As tais Aventuras de Pi, filme a que assistimos, em dimensões
bastante limitadas, rarará, ontem à noite, no cinema em casa, foi no quarto do
casal, pronto falei, não posso lhe faltar com a verdade dos fatos, madame,
ainda mais agora, a essa altura da nossa intimidade. O fuxico da badaladíssima
película do diretor Ang Lee, um sujeito que só comecei a respeitar depois
daquele estouro de boiada, o memorável O Segredo de Brokeback Mountain (um filme
maiúsculo, bom para cacete, que inscreveu, a propósito, na história da
humanidade, em letras fulgurantes, o nome do saudoso, vário, inesquecível Heath
Ledger, cabra macho, a lenda – um minuto de respeitoso silêncio em sua
homenagem...), o fuxico da recém-lançada película Life of Pi correu terras, céus e oceanos
do mundo inteiro, rendeu-me uma pulga das mais avantajadas, por trás da orelha,
quem me conhece mais ou menos, minha amiga, sabe do meu cacoete ácido, o intransigente
e incorrigível defeito de fabricação, sofro dessa mania de preferir a poeira
devidamente assentada, para fins de frio julgamento, apreciação que ninguém
nunca solicita, rarará, melhor passar sem ela, garanto, nem sei por que insisto
nessa genuína, progressiva perda de vista e de hora, um desperdício, uma
completa inutilidade. Existe um filme anterior, de Ang Lee, um filme velho, também ganhador
dos bonecos de Tio Oscar, inclusive, que mexeu com tigre, certeza absoluta, um tigre, dois
tigres, três trigues, essa história de tigre é recorrente, rarará, com tigre e
com dragão, não sei se a senhora teve oportunidade de pelejar para chegar ao
final feliz dessa fita, por Deus do céu, me lembro de que fiquei ali na sala de
projeção, elencando, na lousa do juízo, um rol de alternativas de
entretenimento de que dispunha, rarará, àquele suplício, na ocasião, vejamos:
um consagrado livro de crônicas, ao pôr-do-sol; uma sobremesa hipercalórica extraordinária,
vagarosamente degustada sem piti, sem sobressaltos de avaliação nutricional na
academia, ao pôr-do-sol; uma cerveja, sorvida lenta, ao pôr-do-sol; um sono reparador,
repleto de sonho bom, ao pôr-do-sol; um rolé pelas ruas do Recife, espiando as
belezas que apenas o pôr-do-sol acende, ao pôr-do-sol; uma pesquisa enjoada de
geografia, ao pôr-do-sol; até uma desagradável coceirinha de micose, na unha do
dedão do pé, ao pôr-do-sol, qualquer coisa surpreendentemente máxima ou mínima,
minha senhora, teria me proporcionado maior prazer, mais deslumbramento. Não
guardo, portanto não demonstro, qualquer simpatia, nem adianta insistir, por exímias
lutadoras voadoras de olhinhos puxados, em câmera lenta, ainda por cima, só
Jesus, misericórdia. Não abandonei o recinto porque, diante da inacessível obra-prima
(não deu pra minha emoção, não formou!), escolhi manter a linha, a atitude de profundo
respeito à sétima arte, no frigir dos ovos, o respeito vigora, não tem jeito, devemos
isso à magnificência daquela telona, sempre ela, a senhora do destino. Com As
Aventuras de Pi, minha amiga, não foi muito diferente, confesso. Mantive-me
atenta, ligada nas paradas, querendo presenciar um grande espetáculo, naquela
expectativa de dar de comer à alma atormentada, adiando o cheiro no cangote, o
beijo na boca, o inevitável chamego de sábado de madrugada, olha o filme, olha o filme!, ligada nas
paradas, esperando aquela fisgada, o soco no estômago, o nó na goela, que é
quando o enredo come suas vísceras num golpe, numa dentada. Penso que faltou
3D, só pode, consequentemente, o reconhecimento da perfeição dos efeitos
especiais, ah, os efeitos especiais!, a
mais avançada das mais avançadas das tecnologias! Quem sabe. Faltou segurar as pontas, 'prumode' entender o fio da meada, talvez, se eu fizesse uma lista do que desentendo, Iaiá, era de pasmar, acredite. Faltou inteligência, meu horizonte intelectual é uma ninharia, não dobra a esquina; faltou sensibilidade,
faltou sensibilidade, o pulo da zebra, da hiena, faltou o pulo do gato. Faltou religiosidade nas entranhas. Ou sobrou, não sei, deuses demais para a minha vã
filosofia de pára-choque de jamanta dourada, venerando Ganesha. A impressão que deixou foi a de que passou do ponto,
é isso. O mais engraçado é que, na pomposa festa da entrega do Oscar, esculhambei o José Wilker, baixei o sarrafo, achei que o esnobe vestira o fraque da arrogância, um chato de galocha, um pedante de carteirinha, rarará, por
causa daquele sorriso amarelo e daquela pose de bunda mole, por sua visível, indisfarçável reticência, pela antipatia, ao
comentar o famoso filme. No wonder he did not support it... Nem aqueceu os panos, escancarou aos quatro cantos que não gostara da brincadeira oito mil léguas submarinas, corretíssimo. Também não curti não. Não mesmo. Mera questão de opinião, coisinha à toa, direito que, cedo ou tarde, aos trancos e barrancos, se conquista.
domingo, 17 de março de 2013
Voragem
Tenho certeza absoluta de que preciso parar de trabalhar,
parar para sempre mesmo, o quanto antes. Não pense que é porque não gosto do
que faço, minha senhora, eu gosto que me enrosco - pinto no lixo, dou um quarto
ao capeta para andar camuflada no meio da molecada, disfarçando, naquele
alvoroço, o pesado fardo da idade avançando intrépida, degradando a fisionomia
e a musculatura, uma lástima. A molecada é a euforia, o elixir da longevidade,
o frenético combustível da máquina mortífera, rarará; entretanto, não vou mentir,
padeço, ciclotímica, por dentro dos ossos até, muito além do tecido mole, daquela
transparente, límpida, imperiosa necessidade de ancorar o bote, um
contrassenso, logo agora que atingi aquela fase de seguir na valsa, conferindo ao sábio sabor do acaso o
inalienável direito de conduzir o leme da minha pífia sala de aula, rarará, tão
pobrezinha de atrativos, tadinha. Whenever I’m in action, pode apostar, mudo o
rumo da prosa numa piscadela, sem susto, sem aborrecimento, meu aluno
reconhece, sou devota de Nossa Senhora das Contingências. Minha realidade
escolar pública (e a da torcida do Botafogo) não favorece a aprendizagem do
idioma estrangeiro, carecemos de uma reforma estrutural urgente, passando pelo
passado, por gente e por parafuso, aqui e em todas as esquinas do país, coisa
que mexe com burocracias graúdas, talvez miúdas, não sei, coisas do institucionalmente
estabelecido, que resvala nos entraves de praxe, prefiro não me aprofundar demais
nessas questões, custa-me o impossível descartar o lixo emocional acumulado ao
longo dessa trajetória docente de que me orgulho from top to toe, queixam-se as articulações degeneradas, decidi não
me impingir excesso de inútil bagagem. Há
de haver um futuro de amor e de esperança para o pleno exercício do nosso digno
ofício, acredito, um fluido, fértil, feliz futuro para o regozijo de quem
assumir a batuta, asseguro-vos que a minha humilde pessoa está de partida. Não disponho de joelhos para perseverar na luta. Isso
é o absurdo da existência, sabe não? Tarde aprendi que, apesar de todos os
erros cometidos, apesar da nossa equivocada interferência até, os alunos,
amanhã ou depois, vão aprender o relevante, tudo a seu tempo. Consumi primaveras exigindo o balaio cheio, na entressafra, quanta pernosticidade. Eles também podem
escolher não aprender neste momento, ora bolas, nada é para já, a língua do patrão não tem
de ter tamanha pressa, desconfie das miraculosas imersões, fluência em dois
anos ou seu dinheiro de volta, rarará, ouça um bom conselho, meu camarada, desconfie...
Lamento por cada tola criatura que compra essa balela midiática, uma besteira
com pedigree, do ponto de vista do mar,
quem balança é a praia, a língua pode
esperar em silêncio, no fundo do armário, milênios no ar. A dileta leitora
me permita um breve comentário acerca dessa celeuma, aqui no meu próprio
bloguinho, rarará, suponho que seja de seu interesse ficar a par da opinião da
professora escrevinhadeira, do contrário, diga a verdade, a senhora estaria, a
essa hora, realizando uma das suas duas ou três adoráveis, desimportantes atividades de domingo, convém
não exagerar, três vivas para as perspectivas de ócio e de fantasia de todo
sagrado domingo, amém. Isso de idioma é um
love affair, minha senhora, it burns
an eternal flame. Ainda que garantam-se, ao estudante de idiomas, as
condições ideais de temperatura e pressão, rarará, uma turma com poucos alunos,
uma metodologia fascinante, o mínimo ou o máximo ou o supérfluo de aparato audiovisual,
acesso ilimitado à rede, quadros interativos, material didático de primeira
grandeza, um professor de outro mundo, contínuo reforço paralelo, teto, carro, comida
e roupa lavada, rarará, ainda que se fale a língua dos anjos, madame, rarará, mister
compreender que nenhum encarnado jamais falará ou escreverá Inglês por
obrigação. Lá em casa, Inglês é
obrigatório! Outros idiomas os meninos podem estudar, se quiserem, ok, Inglês é
obrigatório, tem de estudar e pronto! Por
que você não estuda Francês, Espanhol, Alemão, minha filha? Só depois que eu
terminar essa porcaria desse curso de Inglês, minha mãe disse! Tsk tsk tsk.
Vou lhe contar um segredo, não fale nada, apenas me escute: quando a gente se
mete a cutucar a língua dos outros, a gente não pode parar nunca mais, é um
pacto de sangue e de morte, para a vida inteira! Talento, habilidade para a aquisição de um
idioma, minha senhora, seu filho pode ou não apresentar, deixe que ele
manifeste a vontade, espontaneamente, aí sim, o progresso acontecerá, por maiores que sejam as
dificuldades, tudo a seu tempo. Se absolutamente não houver motivação interna, o desejo íntimo de tocar o alheio, não
torture seu rebento, muito menos se mate, oh não se mate!, não há razão para esse furdunço. Tempo
haverá. Também não sei em qual livro santo inscreveu-se que o domínio de uma
língua estrangeira concede ao pacato cidadão o passaporte para o paraíso, a
senha para o seu irrevogável sucesso acadêmico e profissional, que opressão é
essa, por Deus do céu? Depende? Depende! A nossa venerável Língua Portuguesa - latim em pó! - essa sim, tem pedigree, tem
o cacife, não duvide - taramela e gelosia – a nossa Língua pode escancarar o fole. Pode também, ofendida, contrariada, cerrar, lacrar, definitivamente,
a tímida portinhola que o seu how do you
do meia boca, numa eventualidade, que sorte!, bem ou mal, entreabriu-lhe.
Toda vida me considerei um imensurável naco de jaca, banana
nanica gigante, minhoca tísica cheia de tosse gorda, toda vida me pelei de medo
de tudo que se move no escuro e no claro do dia, sou frouxa que só, que é como
se diz no meu pedaço de continente, cabra
frouxo, fêmea frouxa, é desse
jeito. Parece que existe esse fenômeno humano da humanidade, o correr do tempo
vai, naturalmente, adensando as fibras do sujeito, as experiências fatalmente
multiplicam-se, alfinetam a tenra e atalcada superfície da bundinha que mamãe
beijou, tome-lhe enrolação, tome-lhe calhordice, tome-lhe mentira, tome-lhe porrada,
tome-lhe baque, tome-lhe coice, o contribuinte que não tinha planos de virar
Hulk, não sei, é impelido a reagir, a soltar a voz e o braço, a morder os bagos
da vida, arrancar, à unha e dente, o nervo que lhe pertence. Cheguei à
despretensiosa conclusão de que a maturidade viceja, de fato, é quando a gente,
finalmente, compreende que deve compartilhar o que viu da vida, esclarecer às
pessoas o que aceita e o que repudia, o que aplaude e o que execra, sem quaisquer
hesitações ou subterfúgios. Tarde conquistei a liberdade de pensar sobre as
coisas, a partir da minha história, com o meu coração e com a minha cabeça de
vento, ninguém nunca foi livre sem protagonizar um pequeno ato de coragem. Better late than never. Coragem é desprezo por todos os escalões da covardia. Coragem é manter
acesa a chama do fuchique, avessando,
em público, os meus farrapos, revelando, sem sombra de receio, a cada
encontro, da mulher que sou, a mais obscura face. Tenho certeza absoluta de que
preciso parar de trabalhar, parar para sempre mesmo, o quanto antes. O povo sequer suspeita, faço cara de contente, mas a artrite
artrósica de estimação, meu castelo dos horrores, irrompe austera, audaciosa, acaba com a minha raça
podre. Quem me vê assim cantando, subindo a escada devagar e sorridente, zen-pacificada,
jura que bebi água que passarinho não bebe, vinho de ver a fuça da jia, essa aí tomou um cálice, rarará, alcançou
e atravessou o portal dourado do Nirvana, reside no colo da paz, vê-se pelo tai
chi cotidiano – suave gesto, lentíssimo movimento. É por aí não, madame. Já
tive motorzinho nas patas, nas panturrilhas; disparava feito um raio, envenenada.
Hoje, o corpo alarmado me dói, alerta, vaticinando. Como o céu é do condor, no chão
da praça, a dor é sua, cara mestra, use e abuse. Intruso, constrangedor desassossego esse - perpétuo e intransferível - pulsando ali, nos vórtices da carne.
sexta-feira, 8 de março de 2013
Falta de ar
Os ignorantes usufruem dessa extraordinária vantagem,
absurdamente vantajosa, sobre todos os seres humanos e desumanos megainteligentes
da Terra, é um privilégio rutilante o sujeito não entender bulhufas a respeito
dos assuntos comprovadamente importantes e relevantes da vida e da morte, um sonho isso do sujeito não codificar as querelas fundamentais do ser ou não ser, ainda sob cuidadosa análise propedêutica, epistemológica e hermenêutica – processo para lá de inconclusivo,
perda de tempo e de alegria - morro de pena dos racionais Mc's, dos obstinados
pesquisadores de carteirinha, dos intelectuais de grife, nem chego muito perto
por causa da urticária, adivinho de longe mesmo, entretanto, aquele olhar
distante, de urso panda insone, o cenho plissado, a cara encerada; prosseguem
verticais os meus diletos amigos, melancólicos e verticais, ad infinitum (confere, Poeta?), tão sobrecarregados, coitadinhos,
das profundas reflexões sociológicas, culturais, psicológicas, matemáticas,
metalinguísticas e metafísicas e o raio que o parta, três vivas para a profusa
cascata de compêndios devorados com o paladar apurado, saliva doce, doce mel de livros, livros,
livros à mancheia, as caraminholas todas a lhes empenar o eixo do juízo, a desconfortável
armação dos óculos fundo de garrafa, pedindo outra faz é tempo (ou diáfanas
lentes de contato gravidade zero, para anteontem, por favor), o par de óculos ferindo a pele, pesando
chumbo por cima do pau da venta (venta é nariz, a senhora aprendeu!), uma calamidade. Deus me conceda a graça de
passar ao largo. Somente os insipientes com firma reconhecida são felizes, eu
penso desse jeito. O sujeito sofre na moita, entocado e humilde, sofre resignadamente,
sem saber a fórmula, sofre as suas dores mais secretas, sofre as fugazes felicidades, chora os cravos e as pitangas, exulta, inocente de pai e mãe, cada
desconhecimento é um flash, desenha
na areia seus pobres passinhos empíricos, o rastro da inconsistência, vai experimentando, a brisa do mar soprando o leve suspiro da saudade, o sujeito toca o barco, ruminando as dúvidas e distendendo lento o velho espírito aprendiz, sem a
complexa interferência dos achaques da ciência.
Rapaz, eu vi um filme que acabou com a minha natureza.
Cibelle trouxe de Sampa e me deu, ou me emprestou, e eu achei que era presente,
ando muito à flor do pano, dependente e carente, naquela base do só vou se você
for, na maré de retribuir sorrisos alheios, devidamente endereçados ao próximo
da lista, a senhora sabe como é, a pessoa abre o sorriso para o seu vizinho, a
senhora vai logo escancarando o seu, acenando muitos tchaus e mandando um caminhão de beijos pelo ar, mico bom é mico
gigante, fale a verdade, aqui a senhora precisa concordar. Não gosto de estragar
prazeres, sou competentíssima escrevinhadeira de causos para boi dormir, fuxico
é comigo, esse causo dessa fita não conto, entretanto, a vaca pode tossir de vomitar, tem coisa
que só vendo, minha senhora, Amour é amor
para mais de metro, uma película que só vendo, nem adianta o sujeito
arriscar-se a comentar, fracassará no melhor estilo, quando o sentimento
extrapola o enredo, fica maior que a história, maior que a sala, maior que a
gente, que a rua, maior que as barbas brancas de Deus até, convém ao verbo, calar.
Um dos protagonistas de Amour, a
propósito, ensina essa lição bem direitinho, no momento em que procura relatar
para a esposa um acontecimento, ele esqueceu os detalhes da história, mas sente
tudo, pode chorar por ela, a história, com o mesmo desatino, com o mesmo
sentimento, uma coisa linda. A questão é que existem os críticos de cinema, uma
raça superior, uma categoria exibida como o diabo (vade retro, satanás!), uma pedra no meio do caminho e dentro do
sapato do respeitável público, público vão e vasto como as galáxias, haja
tutano, haja personalidade para o reles mortal peitar o festival de idiotice
certificada que assola os cadernos de cultura e entretenimento dos conceituados
jornais do país. Li, casualmente, nem foi no jornal, li por aqui na internet,
um artigo a respeito do filme, uma besteira com pedigree. O cara já começa empostado,
dando aula, um entojo, tenho ojeriza a quem fala e escreve como quem discursa
ou palestra, eis um negócio que me obstrui os canais da compreensão, minha
estupidez agiganta-se de uma tal maneira, não enxergo um palmo adiante. Pois
então, o sujeito amanheceu disposto a dirigir-se apenas ao escol da classe, aos
diplomados no riscado cinematográfico, na minha opinião, uma burrice sem
precedentes, não tinha nada que inacessibilizar uma resenha virtual, um texto
supostamente destinado a qualquer criatura bê-a-bá-zada da rede, bastava que o
sujeito publicasse, para a posteridade, uma imponente obra sobre o berço
esplêndido da sétima arte, os interessados que pelejassem para juntar os
trocados de comprar o valoroso exemplar. O sujeito encontrou mais de sete erros
no desenho animado do austríaco Haneke, o discípulo de Bergman. Nunca quis
aprofundar os cornos na tela de Ingmar Bergman, nunca vi esse sueco, não vi nem
comi, só ouço falar, minha irmã erudita arrasta um trem por um tal Morangos Silvestres, não sei que gosto
amaro ou agridoce os morangos têm, desisti
de provar os frutos dessa safra, meu irremediável afã de simplificar atravanca demais o meu progresso, é de matar. Aprendi muito cedo a olhar e interpretar, conforme
o viés dos meus sentidos e do meu destino, pela graça divina: Amour é um derrame de afeto, um espetáculo
delicado e avassalador, um átimo da soturna beleza de que ninguém deve
prescindir; a vida, minha senhora, é triste e extraordinariamente bela. Meu
único, tão querido irmão - o avô, o pai, o varão, afinal, ansiosamente aguardado por Dona Rita (que jamais te abandonou, irmão, não há de ser agora...), o espírito santo - o homem de Dona Júlia, o homem da
casa, o homem dessa sui generis família (clã de doces bárbaros desajustados), o homem da alma dessas seis mulheres de aço e de
bola de sabão, apresentou um quadro isquêmico grave, complicado, que inspira
enormes cuidados, e está no hospital, a senhora já foi informada, aposto, as
notícias boas e más circulam rapidamente, a solidariedade entre iguais também, pelo
que agradeço tanto, com a frágil força do meu coração machucado. Estranham-me os acidentes automobilísticos, aéreos e vasculares, mano. De onde estou,
Ivomar – meu débil palhaço, meu tonto bailarino - aspiro num soluço a tua falta de ar, apenas aperto tua mão; compartilhemos, néscios, triviais, meramente fraternos, a fatal vulnerabilidade, sou capaz de amá-lo tanto,
meu amor, hoje e sempre. Muito, muito mais que antes.
domingo, 3 de março de 2013
Placebo
Passadas as duas semanas de dar em doido, duas semanas cinquenta
vezes mais alvoroçadas do que a minha pobre indolentíssima alma teria
escolhido, concedessem-lhe a terna possibilidade de preferir não realizar coisa
alguma nessa vida besta, abrissem-lhe o justo precedente, nobre e doce
senhorinha, e não dava outra, a minha pobre alma abocanhava para valer o osso, largava
era nunca mais a moleza, lavava e enxaguava a mula manca; paz, quero paz e
sombra, ninguém me amole com esse papo de emprego, não está vendo?, não estou
nessa!, a minha alma, clara e obviululantemente, aponta os cornos para a cara
do sossego. Na linha de frente, meu bem, labutando adoidado, rarará, a minha pobre
alma já comeu o pão dormido que o diabo amassou, verdade seja bendita. Deus me
livre da maldição de ser para sempre mais uma brasileira ocupada até a raiz dos
cabelos progressivamente domados, vade
retro para o quinto dos infernos, o cidadão morto de ocupado é um sujeito
chato para cacete, vigiando os minutos e cevando as burocracias, ocupando muito espaço
do singelo planetinha, octopus ocupadorum pesadão,
desengonçado, vergado das mais inúteis responsabilidades, os venenosos,
espessos tentáculos à solta, tocando horror, fúria indômita devastando tudo,
restringindo ainda mais o tímido, o sacrossanto mínimo território de brincar do
quintal da humanidade. Passadas as duas semanas de cão, experimentando um
prazer quase sexual, rarará, retorno ao bloguinho dos meus amores, prezado
leitor, que saudade que eu sinto da sua agradável companhia – indelével carícia,
como sofro da falta de um bate-papinho frugal e inofensivo, essa conversa mole
sem eira nem beira, bobagem por cima de bobagem, xerém que peneirando, vamos
combinar, não inteira, da xícara de chá, sequer a metade.
Meu defeito é falar pelos cotovelos, assumo. Falar e escutar. Falo mais que o homem da cobra, emprenho pelos ouvidos, é de nascença. Esses dias, sinceramente, não escrevi um verbo intransitivo, logo eu, essa importante pessoa prestes a lançar um livro de historinhas para o merecido cochilo do ruminante, rarará, a propósito, recomendo cautela com despesas supérfluas, certamente desnecessárias, a senhora, fazendo a gentileza, gaste com moderação, minha senhora, pelo menos até o dia do lançamento (data, hora e lugar oportuna e devidamente divulgados no fuchique e nos quatro cantos do mundo, ninguém vai ficar de fora, tranquilize-se, madame!!), a senhora sabe que é de muito bom tom, uma elegância, prestigiar uma autora novata, criativa, sensível, estilosa, talentosíssima, rarará, adquirindo vários exemplares da sua primeira cria, há de haver aniversariantes ilustres na família da senhora, aniversariando, imagine só, por extraordinária coincidência, naquele mesmíssimo dia, rarará, sua honradíssima família conta com grandes apreciadores de uma interessante crônica digestiva após o jantar, existem também, como esquecê-los!, os tantos amigos queridos que a senhora pretende mimar, diga a verdade, além do mais, a senhora já leu, assaz, alhures e antanho, rarará, que presentear alguém com um livro é, indubitavelmente, o maior de todos os elogios. Enquanto Seu Lobo não vem, insisto na questão da tagarelice com pedigree, a minha e a do meu distinto interlocutor, pano de sobra para a vestimenta de hoje. Não é para me gabar, Deus me livre e guarde desse cancro do espírito, antipatizo de cara com quem se acha mais que a medida, a Coca-Cola do deserto, os pentelhos de Jane Fonda, tal e coisa, isso de se exibir é uma coisa muito feia, Dona Rita, minha saudosa mamãe, achava, aprendi com ela. Não é para me gabar, Deus me livre, mas a minha memória é fogo. Ainda ontem, no face dos desocupados, rarará, li, por acaso, uma frase, que não é minha, rarará, atribuída, por Luana, minha caríssima leitora, à minha humilde pessoa. Tudo tem de passar pelo músculo involuntário: o coração. Cinquenta por cento dela me pertencem, fato. O pedaço mais bonito, entretanto, surrupiei mesmo foi daquela canção não sei de quem, que conheço por causa da fantástica Marisa Monte: o meu coração é um músculo involuntário e ele pulsa por você, um dia eu vou estar contigo e você vai estar na minha... Tenho certeza de que o músculo involuntário é velho como o mar, tadinho, sorte tem o contribuinte que resgata a palavra certa, transbordante de significado de vera, no instante exato, de dentro do mistério azul do seu estojo. A bem-vinda palavra de outrora, alheia e requentada, sem contraindicação aparente, opera um milagre, desencadeia uma reação psicológica inusitada. Minha teoria sobre a intimidade com a palavra é simples de doer: dispa-se de qualquer preconceito, não se pode requisitar intimidade sem oferecer intimidade, a pessoa precisa desnudar-se, romper o invólucro do confortável, abrir os chacras para o outro, os discursos vão se abraçando, misturam-se, faz-se literatura. A pessoa precisa interagir profundamente com a vida, a vida vive de solicitar essa atitude audaciosa de olhar e de deixar-se olhar, de escutar e de fazer-se escutar, todos estão convidados, poucos atrevem-se ao pulo do gato, a exposição custa uma baba, é isso. As fofocas pululam, coçando-se para estrear no picadeiro. Conte um conto, aumente um ponto. O léxico circula por aí, na tela da TV no meio desse povo, nos quadros de aviso, nas paredes, nos semblantes, nas bocas, nas páginas, nos impropérios, nos silêncios, a partir da gente e por causa da gente. Às vezes, acredite, rio litros da sandice de suspeitar que o pobre homem que deseje produzir um texto completamente inédito, ai ai, vá sucumbir na praia, rarará, a senhora não tenha pressa, observe o derredor, esteja bastante atenta aos ruídos do verbo, minha senhora, aposto que a senhora perceberá, estupefata, que tudo foi pensado, articulado sem som, o seu enredo pode repousar recluso na cabeça, na palma da mão da sua vizinha, por exemplo, rarará, ela não pariu, sei lá, por absoluta falta de tempo. Ou de coragem. Quem se lembra dos detalhes do que vive estrada afora, sem paúra de um sangramento ocasional, o cara com memória de elefante, meu caso, modéstia à parte, com memória de elefante e meia dúzia de horas brancas, o cara torna-se respeitado autor de grife, rarará, no gênero ou subgênero que lhe apeteça. Recentemente, desarmada das unhas aos dentes, chamei um aluno para conversar comigo, andava doida para ouvi-lo, queria saber por qual razão desaparecera da minha sala de aula, mudo feito um poste, sem raiva, sem adeus, sem esclarecimento, estranho tanto essa conduta, não sei me relacionar assim com os outros, preciso dos dois com a mão na colher; apurei meus tímpanos, as pupilas, os sentidos todos, tivemos um encontro bacana, sincero, trocamos figurinhas raríssimas – os dois com a mão na colher, que não dá pé de outra maneira – sorri quando me agradeceu, disse-me que havia lhe dado um bom conselho, não compartilho, pois não me recordo do ensinamento, um fuxico sensacional, desses de render um romance, mas a minha memória é fogo, rarará. Agora danou-se a nêga do doce, onde já se viu? Se conselho fosse bom, meu camarada, se vendia; não se dava assim não, de cortesia.
Meu defeito é falar pelos cotovelos, assumo. Falar e escutar. Falo mais que o homem da cobra, emprenho pelos ouvidos, é de nascença. Esses dias, sinceramente, não escrevi um verbo intransitivo, logo eu, essa importante pessoa prestes a lançar um livro de historinhas para o merecido cochilo do ruminante, rarará, a propósito, recomendo cautela com despesas supérfluas, certamente desnecessárias, a senhora, fazendo a gentileza, gaste com moderação, minha senhora, pelo menos até o dia do lançamento (data, hora e lugar oportuna e devidamente divulgados no fuchique e nos quatro cantos do mundo, ninguém vai ficar de fora, tranquilize-se, madame!!), a senhora sabe que é de muito bom tom, uma elegância, prestigiar uma autora novata, criativa, sensível, estilosa, talentosíssima, rarará, adquirindo vários exemplares da sua primeira cria, há de haver aniversariantes ilustres na família da senhora, aniversariando, imagine só, por extraordinária coincidência, naquele mesmíssimo dia, rarará, sua honradíssima família conta com grandes apreciadores de uma interessante crônica digestiva após o jantar, existem também, como esquecê-los!, os tantos amigos queridos que a senhora pretende mimar, diga a verdade, além do mais, a senhora já leu, assaz, alhures e antanho, rarará, que presentear alguém com um livro é, indubitavelmente, o maior de todos os elogios. Enquanto Seu Lobo não vem, insisto na questão da tagarelice com pedigree, a minha e a do meu distinto interlocutor, pano de sobra para a vestimenta de hoje. Não é para me gabar, Deus me livre e guarde desse cancro do espírito, antipatizo de cara com quem se acha mais que a medida, a Coca-Cola do deserto, os pentelhos de Jane Fonda, tal e coisa, isso de se exibir é uma coisa muito feia, Dona Rita, minha saudosa mamãe, achava, aprendi com ela. Não é para me gabar, Deus me livre, mas a minha memória é fogo. Ainda ontem, no face dos desocupados, rarará, li, por acaso, uma frase, que não é minha, rarará, atribuída, por Luana, minha caríssima leitora, à minha humilde pessoa. Tudo tem de passar pelo músculo involuntário: o coração. Cinquenta por cento dela me pertencem, fato. O pedaço mais bonito, entretanto, surrupiei mesmo foi daquela canção não sei de quem, que conheço por causa da fantástica Marisa Monte: o meu coração é um músculo involuntário e ele pulsa por você, um dia eu vou estar contigo e você vai estar na minha... Tenho certeza de que o músculo involuntário é velho como o mar, tadinho, sorte tem o contribuinte que resgata a palavra certa, transbordante de significado de vera, no instante exato, de dentro do mistério azul do seu estojo. A bem-vinda palavra de outrora, alheia e requentada, sem contraindicação aparente, opera um milagre, desencadeia uma reação psicológica inusitada. Minha teoria sobre a intimidade com a palavra é simples de doer: dispa-se de qualquer preconceito, não se pode requisitar intimidade sem oferecer intimidade, a pessoa precisa desnudar-se, romper o invólucro do confortável, abrir os chacras para o outro, os discursos vão se abraçando, misturam-se, faz-se literatura. A pessoa precisa interagir profundamente com a vida, a vida vive de solicitar essa atitude audaciosa de olhar e de deixar-se olhar, de escutar e de fazer-se escutar, todos estão convidados, poucos atrevem-se ao pulo do gato, a exposição custa uma baba, é isso. As fofocas pululam, coçando-se para estrear no picadeiro. Conte um conto, aumente um ponto. O léxico circula por aí, na tela da TV no meio desse povo, nos quadros de aviso, nas paredes, nos semblantes, nas bocas, nas páginas, nos impropérios, nos silêncios, a partir da gente e por causa da gente. Às vezes, acredite, rio litros da sandice de suspeitar que o pobre homem que deseje produzir um texto completamente inédito, ai ai, vá sucumbir na praia, rarará, a senhora não tenha pressa, observe o derredor, esteja bastante atenta aos ruídos do verbo, minha senhora, aposto que a senhora perceberá, estupefata, que tudo foi pensado, articulado sem som, o seu enredo pode repousar recluso na cabeça, na palma da mão da sua vizinha, por exemplo, rarará, ela não pariu, sei lá, por absoluta falta de tempo. Ou de coragem. Quem se lembra dos detalhes do que vive estrada afora, sem paúra de um sangramento ocasional, o cara com memória de elefante, meu caso, modéstia à parte, com memória de elefante e meia dúzia de horas brancas, o cara torna-se respeitado autor de grife, rarará, no gênero ou subgênero que lhe apeteça. Recentemente, desarmada das unhas aos dentes, chamei um aluno para conversar comigo, andava doida para ouvi-lo, queria saber por qual razão desaparecera da minha sala de aula, mudo feito um poste, sem raiva, sem adeus, sem esclarecimento, estranho tanto essa conduta, não sei me relacionar assim com os outros, preciso dos dois com a mão na colher; apurei meus tímpanos, as pupilas, os sentidos todos, tivemos um encontro bacana, sincero, trocamos figurinhas raríssimas – os dois com a mão na colher, que não dá pé de outra maneira – sorri quando me agradeceu, disse-me que havia lhe dado um bom conselho, não compartilho, pois não me recordo do ensinamento, um fuxico sensacional, desses de render um romance, mas a minha memória é fogo, rarará. Agora danou-se a nêga do doce, onde já se viu? Se conselho fosse bom, meu camarada, se vendia; não se dava assim não, de cortesia.
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