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domingo, 31 de março de 2013

Mon bijou

A gente pobre que gosta de colocar-se a par de uma fofoquinha café com leite, rarará, precisa administrar melhor a pindaíba, arroche o nó, ajuste a fivela do cinto, amigo leitor por ventura tão fodido quanto eu, seu pobretão desafortunado!, aperte o cinto: Dilmaquinista, o piloto, sumiu! A gente tem de ver sobrar a raspa, uma laminha que seja, no fundo do tacho, a gente carece de adquirir aquela sonhada coletânea do Otto, do Rubem (meu pai e minha mãe - meu ídolo absoluto...), do Caio, do Fabrício, do Antônio Maria, do Paulo Mendes Campos... Na aurora da minha nada mole vida, à alvorada do 31 de março, março é um mês inquietante, a gente fica contrariada de faltar salário para tantos intermináveis amanhãs, a senhora sente isso, fala sério! Meu marido me sustenta desde o dia 16, 17 do corrente, mais ou menos por aí, não sou de optar pela conveniência dos porões da mentira deslavada, não faço de conta, cuspo, de chofre, a límpida verdade. É um descalabro, no meu parco entendimento, uma vergonha para a desvalorizada categoria docente; a minha humilde pessoa, de outra vez, confirmando-se, na banca examinadora do andar de cima, a premente necessidade do recuo imediato, de descer de novo, ligeirinho, para fins de purgar a outra banda podre dos cabeludíssimos pecados, a minha pessoa não deixará nada por menos, pretendo usar da máxima cara de peroba, perante os meus superiores, rarará, no gabinete presidencial do céu, nos altíssimos escalões do paraíso, devo dispor de algum prestígio, membros ilustríssimos do clã dos Oliveira abriram o caminho, quero porque quero porque quero ser funcionária pública da Justiça, minha única reivindicação: serventuária da Justiça, isso sim é pinico cheio, todo dia ele faz tudo sempre igual: meu marido reclama que só da injustiça dos seus escassos rendimentos, tal e coisa, agora a senhora veja bem, o meu digníssimo marido já assumiu, além da dele todinha, praticamente a metade do rombo da minha despesa, a senhora não acha interessante eu mexer meus pauzinhos para, quem sabe, futuramente, reencarnar servidora da Justiça? Inveja dos diabos, esse povo da Justiça lê de cegar, rarará! O sujeito pobre demais devia nascer logo era anjo, mortinho da silva, a minha pessoa pensa desse jeito, que me perdoe o Ressuscitado. Ando atrás de um volume novo cabaço, para aliviar as agruras mais corriqueiras, para enfeitar as manhãs raiadas e o criado-mudo, o meu lado da cabeceira, isso não é de hoje – uma coletânea de causos inéditos para lá de interessantes – aliás, sobre essa brilhante particularidade do cabra da peste escrever pouco, aprumado e bonito, arrisco meu palpite: quando o escrevinhador entende da intimidade dos pormenores do riscado, o ponto e vírgula equivale ao último parágrafo. Quando o cronista é de grife, de grife mesmo, madame, não me refiro às réplicas, não mesmo, que fique a observação muito clara, muito bem compreendida!, venho manifestar de público, inclusive, meu profundo escárnio diante daqueles que deformam, soltam as tiras e exalam aquela inhaca de miolo de pote vencido e mofado (tipo eu assim, por exemplo, rarará, cronista de porta de cadeia meia-tigela!!), quando o cronista é de grife, esbanja talento e puxa por ele, que não é besta, rarará, o cronista original de fábrica vai e mata página e meia com um certeiro golpe de cajado. As modestas prateleiras dos meus humílimos aposentos, também as do quarto da bagunça, acomodam inúmeras preciosidades croniqueiras do coração do Brasil, algumas caindo pelas tabelas, aos pedaços. Ah, se os meus proventos dessem para o gasto... O mais extraordinário desse generozinho chinfrim é a indiscutível possibilidade de refrigério no desconforto da espinhela caída: uma crônica bacana, de repente, acende o farol, sacode a poeira, é o brevíssimo intervalo de poesia, de encantamento, a providencial leitura nas coxas escancara um riso há séculos contido, liberta um grito, uma lágrima, um barco à vela, uma tábua - um sentimento somente seu, do qual você estava tão desencontrado... É isso e o pirão no fogo, a torneira aberta, a gente se enternecendo, com ou sem estrondo, entre o café e o cigarro, a pessoa corre ali, pega o livro, vapt-vupt, abriu, gostou, praticamente decorou... e acabou-se, forever and ever repetindo-se. Sigo relendo os meus fuxicos favoritos, vou com a maré, mudo de autor com a mudança dos ventos. De sexta-feira para cá, avalie, voltei ao Melhor das Comédias da Vida Privada, de cabo a rabo, revisitei todas as pérolas, Luís Fernando é sobrenatural, minha senhora, sinceramente, o que o cara economiza na forma, subitamente, espoca: leve, intenso conteúdo. Resgatei Estuário do fundo do baú, precisava relembrar doçuras de Samarone Lima, a inesquecível Metáforas, pelo menos, aquela história do trem azul, uma cor meio que me atravessando, de um lado a outro, rasgando, picotando o meu rascunho, o meu retrato. Não me refiro à réplica. Réplica me lembra a 25 de março, em São Paulo, eita lugarzinho para eu apreciar é aquela Rua 25 de março, adoro aquela muvuca, a gente chega lá e enriquece, se ilude que levou um bocado de dinheiro, a senhora também tem a sensação? Pois eu tenho. Estive na Rua 25 de março, não faz muito tempo, num dia qualquer que não me lembro agora, aposto que era uma data longe de 25, no dia 25, minha senhora, em geral, não disponho de meia pataca descompromissada, para comprar um cacete de dar num gato, mais um trio de paçoca. Foi muito engraçado esse dia da Rua 25 de março, me lembro tanto desse episódio na 25, me lembro que topei com um quiosque repleto de bolsas belíssimas, show de bola, bolsas de todas as fragrâncias, baratinhas, vendidas a preço de banana, fiquei enlouquecida, escolhendo, escolhendo, separei umas seis, teve uma hora que comentei com a vendedora: ‘Nossa, essas imitações são perfeitas, não é?’, para que, madame, para quê. A mulher mudou de humor, franziu o cenho, trancafiou a cara, foi retrucando, depressinha, ofendidíssima, indignada: ‘IMITAÇÕES NÃO, minha senhora!  Meus produtos são RÉPLICAS, RÉPLICAS perfeitas, de primeira!’ Os meus produtos não são não, violão, minha escrevinhatura é fake, tudo imitação, rarará! - pedra falsificada.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Aldeia

Isso do sujeito morar longe é muito complicado, a senhora não acha? Eu sou muito do quintal de casa, toda vida fui, perdi cedo a fome de estrada, o fogo no rabo, a impetuosidade propulsora. Toda vida a mula empacou no batente da frente, toda vida prevaleceu, sobre o nobre desejo de ganhar o oco do mundo – ah, ganas cosmopolitas de ganhar o mundo, madame!, de posse do mundo, ganas de espanar as alas bien abiertas, conquistar o cume da pequeña florecita libertad mariposa, rarará, barganhar algum tolo, pragmático respeito, uma forjada, estúpida credibilidade – no coração da minha vida besta, à pedra e precipício, em cima da hora h, prevaleceu mesmo the back yard, o esparramo à sombra do oitão; nem sei se meus leitores conhecem essa palavra oitão, tem um bar no Recife, tem ou tinha, vai ver fechou e eu não tomei ciência, rarará, Oitão é o nome do bar, ou era, verei depois se ainda existe, eu frequentei aquele espaço, o Oitão, pense numa birosca boa do pacato cidadão apear o jumento, para o refresco das amídalas, um sonho isso do cidadão puxar a cordinha e apear, para fins de molhar o bico, tomar um caldo, um trago, uma loura, uma ‘gelomática’, diria o amigo Crisógomo, o maior apreciador de cerveja, de Campina Grande, da Paraíba e do Brasil, rarará, um cálice, na companhia daquele parceiraço de bar, me lembrei de Marcelo agora, Marcelo era meu amor de bar, rarará, Marcelo e eu estávamos sempre mamados, duas doses acima dos demais meros mortais, a gente sentava e bebia com pendor para encher a lata, numa disposição para discutir e resolver todos os assuntos devidamente umedecidos (umedecidos umas tamancas, encharcadinhos da silva!), obviululantemente, tanto as mínimas pendengas cotidianas, como os grandes, complexos conflitos da humanidade, uma coisa de causar inveja, rarará, a gente bebia, bebia para cacete, bebia para arrumar as ideias, quiçá escangalhá-las de vez, rarará, perder, sem cerimônia, o tampo do juízo, quanta cachaça na minha dor..., em volta dessa mesa, velhos e moços, vivendo seu normal, em volta dessa mesa, existem outras, falando tão igual, em volta dessas mesas, uma cidade. Farinha pouca, meu pirão primeiro: o céu e o sol do meu lugar. A genética aldeã é bússola e compasso - favinhas contadas – cadeira vazia, o ninho reclama, meu passado me condena: prisioneira do lar, nem me arrisco a prescindir de regressar.
O bom de ser uma criatura entre as criaturas da Terra é a gente andar por aí, tropeçando no calcanhar dos outros, experimentando de tudo, atando e desatando, gostando e desgostando das coisinhas que só acontecem com gente, me lembrei de Bruno Giga agora, Bruno é quem esclarece, muito bonito e bendito: “Isso só acontece com gente! Você já viu, por acaso, um poste de rua, alguma vez na vida, passar por isso? Não. Uma britadeira? Não. Um meio-fio? Nananinanão. Isso é coisa de gente, Adriana! É coisa de gente...” Bruno é um irmão querido, um parente de alma. Nessa condição, na condição de irmão querido, Bruno envolveu-se, pau para toda obra, no meu desalento, sem, entretanto, abrir mão do humor, da graça que lhe constitui cada risível membrana. Bruno procurou, de todas as maneiras que há de amar, serenar a minha angústia esganada, no meio dessa confusão toda com Ivomar – o susto imenso, a U.T.I., a espera infinita pelo melhor momento para realizar o tal procedimento delicado: o implante de stent na carótida, o day after, um pouco mais de espera, eu acompanhando de longe, aflita, tino desparafusado, perdendo a linha, Bruno Clown ali, bufão brincante, batendo um dedobolão, demonstrando seu carinho, abraçando, aliviando, na farra, o peso da agonia. Acabo de receber um telefonema de minha irmã, Tia Nilde, contando as novidades da taba, historinhas que posso dividir com meus leitores do peito, é certo, sem medo e sem constrangimento de ser a mais feliz (nem a palavra mais louca consegue significar tamanha felicidade!), pedindo licença para dedicá-las todas ao meu amigo de todas as horas. Rola uma briga de foice em Recife, o povo se rasgando para chegar num acordo sobre quem vai nos hospedar em abril, no feriado de São Jorge. Tia Dau já mandou o recado: “meu apartamento está um brinco, troquei o piso e troquei o guarda-roupa; dou casa, comida, roupa lavada e o carro na mão de Ronaldo, com o tanque cheio na boca”, rarará! Tia Isis avisou que vai chegar mais tarde, trazendo, a tiracolo, o namorado psiquiatra aposentado, rarará, teremos, finalmente, o enorme prazer de conhecer o santo homem, rarará, cá pra nós e pra torcida do Santinha, pro sujeito topar uma love story com Tia Isis, aquela figuraça kardecista da ladeira da folia, rarará, tô pagando pra ver, esse sujeito deve ser mesmo uma figura... de cromo. Um brinde aos pombinhos enamorados, à panela e ao respectivo tacho, rarará! A voz de Tia Nilde embargou somente quando ela mencionou o nome do nosso velho moleque palhaço... Por um instante, Tia Nilde deixou o sal da lágrima expressar-se lento, pudera: “Ivomar está muito bem, Adriana, passei o domingo com ele, conversamos muito, rimos muito, ele pediu que lhe dissesse que vai ao teatro no sábado, ele quer ver a peça de Manu com a gente, depois a gente vai sair pra jantar, fazer uma bagunça, fazer festa num bar qualquer dessa cidade Dona Doida de saudade. Pode sossegar, já pedi a ele para não morrer nunca, expliquei bem direitinho que a gente não tem como viver sem ele, já disse que a gente não aguenta, ele achou muito engraçado, disse para eu ficar tranquila, você também, que isso ele garante. Ainda bem que você vem, Adriana, ainda bem que você vem... Quando comentei com ele, 'Ivomar, tu sabe que Adriana tá pra chegar?', ele me olhou com aquele olhar só dele, olhar de cachorro que caiu da mudança, né?, Ivomar desatou a chorar, chorou feito um menino, Adriana, feito um menino triste sem alento, conto porque fui eu que vi, ninguém mais estava lá, conto porque vi, meninos, eu vi!, sei que você tem alma de acreditar!” O bom de ser uma criatura entre as criaturas da Terra, fiéis leitores das fibras de mim, do meu peito convulsionado, o bom do ser é ser amado e, em igual medida, poder amar.

domingo, 24 de março de 2013

Life of pie

Valentim despertou cochilando em sua (e)terna morada – seu porto seguro, seu tépido paradeiro: o meu regaço, decerto. O dia varou as tripas da noite sem uma nesga de sol, a senhora acredita, madame? Uma judiação para quem, igualmente à escrevinhadeira que ora lhe dirige o bote salva-vidas da palavra, apostou todas as fichas no calor e na claridade (três vivas à providencial folga no laço!) para a feriada caminhada matutina: acontecência de virar auê, a santa ceia, um quadro, a tradicional pintura sobre a mesa de jantar: o inefável jardim do paraíso, a mulher madura, seu jovem e garboso cachorrinho – trinca sagrada, de bicho-gente, de bicho-bicho e de mar azul infinito - a mãe, o filho, o espírito de tudo; resoluta marcha domingo afora, nas vigas do vácuo, à pata e a pé: a trindade ungida na inabalável confiança em indissolúvel parceria. Prevalece a existência algodão-doce na sombra, life of pie, rarará, o haver de tudo, comungando a cega fé no poder do afeto sem muros, ninguém se perca de si, muito menos dos seus amores, no ranger da tempestade, na solidão do naufrágio, no desespero vigente; ninguém se desconstrua, por gentileza, por mais que doa a dor, não enlouqueça. Bem-querer, bem-querer. Por pamonha, Pedro, pedra, parque, paz, piscina e pergaminho. O Richard Parker da minha humilde residência já compreendeu que hoje não rola passeio; autônomo quando lhe convém, bem entendido, a independência de Valentim depende, rarará, Valentim é o senhor dos anéis de petisco sabor churrasco, Valentim manda na própria vontade e na minha, manda no solar dos Guimarães de Oliveira Barroso, manda no chefe da família, manda em Nicolau, manda em Andreia, nossa querida faxineira, Valentim manda e desmanda nesse prestigiado circo mambembe à beira-mar, no magote de mamulengos todos doidos varridos por ele, Valentim é o cara, a cara da sem-vergonhice, a maior cara de puta que vai com quem dá mais, Valentim acaba de dar de ombros, numa boa, desprezou, sem culpa, a mordomia do meu colo quente, decidiu espalhar-se mesmo foi no coração solitário do sofá da sala, a senhora jamais confie no lânguido olhar do seu adorável espécime canino, Valentim nem se despediu de mim, nem se despediu de mim, já chegou contando as horas, bebeu água e foi-se embora, rarará, seguiu floresta adentro, sequer voltou-se um instante, olhou para trás. Minha nobre intenção, nessa azeda manhã mofada e cinzenta, era distrair o leitor entediado até a raiz dos cabelos, enchendo miolo de pote, conversando miolo de pote, As Aventuras de Pi na algibeira, about As tais Aventuras de Pi, filme a que assistimos, em dimensões bastante limitadas, rarará, ontem à noite, no cinema em casa, foi no quarto do casal, pronto falei, não posso lhe faltar com a verdade dos fatos, madame, ainda mais agora, a essa altura da nossa intimidade. O fuxico da badaladíssima película do diretor Ang Lee, um sujeito que só comecei a respeitar depois daquele estouro de boiada, o memorável O Segredo de Brokeback Mountain (um filme maiúsculo, bom para cacete, que inscreveu, a propósito, na história da humanidade, em letras fulgurantes, o nome do saudoso, vário, inesquecível Heath Ledger, cabra macho, a lenda – um minuto de respeitoso silêncio em sua homenagem...), o fuxico da recém-lançada película Life of Pi correu terras, céus e oceanos do mundo inteiro, rendeu-me uma pulga das mais avantajadas, por trás da orelha, quem me conhece mais ou menos, minha amiga, sabe do meu cacoete ácido, o intransigente e incorrigível defeito de fabricação, sofro dessa mania de preferir a poeira devidamente assentada, para fins de frio julgamento, apreciação que ninguém nunca solicita, rarará, melhor passar sem ela, garanto, nem sei por que insisto nessa genuína, progressiva perda de vista e de hora, um desperdício, uma completa inutilidade. Existe um filme anterior, de Ang Lee, um filme velho, também ganhador dos bonecos de Tio Oscar, inclusive, que mexeu com tigre, certeza absoluta, um tigre, dois tigres, três trigues, essa história de tigre é recorrente, rarará, com tigre e com dragão, não sei se a senhora teve oportunidade de pelejar para chegar ao final feliz dessa fita, por Deus do céu, me lembro de que fiquei ali na sala de projeção, elencando, na lousa do juízo, um rol de alternativas de entretenimento de que dispunha, rarará, àquele suplício, na ocasião, vejamos: um consagrado livro de crônicas, ao pôr-do-sol; uma sobremesa hipercalórica extraordinária, vagarosamente degustada sem piti, sem sobressaltos de avaliação nutricional na academia, ao pôr-do-sol; uma cerveja, sorvida lenta, ao pôr-do-sol; um sono reparador, repleto de sonho bom, ao pôr-do-sol; um rolé pelas ruas do Recife, espiando as belezas que apenas o pôr-do-sol acende, ao pôr-do-sol; uma pesquisa enjoada de geografia, ao pôr-do-sol; até uma desagradável coceirinha de micose, na unha do dedão do pé, ao pôr-do-sol, qualquer coisa surpreendentemente máxima ou mínima, minha senhora, teria me proporcionado maior prazer, mais deslumbramento. Não guardo, portanto não demonstro, qualquer simpatia, nem adianta insistir, por exímias lutadoras voadoras de olhinhos puxados, em câmera lenta, ainda por cima, só Jesus, misericórdia. Não abandonei o recinto porque, diante da inacessível obra-prima (não deu pra minha emoção, não formou!), escolhi manter a linha, a atitude de profundo respeito à sétima arte, no frigir dos ovos, o respeito vigora, não tem jeito, devemos isso à magnificência daquela telona, sempre ela, a senhora do destino. Com As Aventuras de Pi, minha amiga, não foi muito diferente, confesso. Mantive-me atenta, ligada nas paradas, querendo presenciar um grande espetáculo, naquela expectativa de dar de comer à alma atormentada, adiando o cheiro no cangote, o beijo na boca, o inevitável chamego de sábado de madrugada, olha o filme, olha o filme!, ligada nas paradas, esperando aquela fisgada, o soco no estômago, o nó na goela, que é quando o enredo come suas vísceras num golpe, numa dentada. Penso que faltou 3D, só pode, consequentemente, o reconhecimento da perfeição dos efeitos especiais, ah, os efeitos especiais!, a mais avançada das mais avançadas das tecnologias! Quem sabe. Faltou segurar as pontas, 'prumode' entender o fio da meada, talvez, se eu fizesse uma lista do que desentendo, Iaiá, era de pasmar, acredite. Faltou inteligência, meu horizonte intelectual é uma ninharia, não dobra a esquina; faltou sensibilidade, faltou sensibilidade, o pulo da zebra, da hiena, faltou o pulo do gato. Faltou religiosidade nas entranhas. Ou sobrou, não sei, deuses demais para a minha vã filosofia de pára-choque de jamanta dourada, venerando Ganesha. A impressão que deixou foi a de que passou do ponto, é isso. O mais engraçado é que, na pomposa festa da entrega do Oscar, esculhambei o José Wilker, baixei o sarrafo, achei que o esnobe vestira o fraque da arrogância, um chato de galocha, um pedante de carteirinha, rarará, por causa daquele sorriso amarelo e daquela pose de bunda mole, por sua visível, indisfarçável reticência, pela antipatia, ao comentar o famoso filme. No wonder he did not support it... Nem aqueceu os panos, escancarou aos quatro cantos que não gostara da brincadeira oito mil léguas submarinas, corretíssimo. Também não curti não. Não mesmo. Mera questão de opinião, coisinha à toa, direito que, cedo ou tarde, aos trancos e barrancos, se conquista. 

domingo, 17 de março de 2013

Voragem

Tenho certeza absoluta de que preciso parar de trabalhar, parar para sempre mesmo, o quanto antes. Não pense que é porque não gosto do que faço, minha senhora, eu gosto que me enrosco - pinto no lixo, dou um quarto ao capeta para andar camuflada no meio da molecada, disfarçando, naquele alvoroço, o pesado fardo da idade avançando intrépida, degradando a fisionomia e a musculatura, uma lástima. A molecada é a euforia, o elixir da longevidade, o frenético combustível da máquina mortífera, rarará; entretanto, não vou mentir, padeço, ciclotímica, por dentro dos ossos até, muito além do tecido mole, daquela transparente, límpida, imperiosa necessidade de ancorar o bote, um contrassenso, logo agora que atingi aquela fase de seguir na valsa, conferindo ao sábio sabor do acaso o inalienável direito de conduzir o leme da minha pífia sala de aula, rarará, tão pobrezinha de atrativos, tadinha. Whenever I’m in action, pode apostar, mudo o rumo da prosa numa piscadela, sem susto, sem aborrecimento, meu aluno reconhece, sou devota de Nossa Senhora das Contingências. Minha realidade escolar pública (e a da torcida do Botafogo) não favorece a aprendizagem do idioma estrangeiro, carecemos de uma reforma estrutural urgente, passando pelo passado, por gente e por parafuso, aqui e em todas as esquinas do país, coisa que mexe com burocracias graúdas, talvez miúdas, não sei, coisas do institucionalmente estabelecido, que resvala nos entraves de praxe, prefiro não me aprofundar demais nessas questões, custa-me o impossível descartar o lixo emocional acumulado ao longo dessa trajetória docente de que me orgulho from top to toe, queixam-se as articulações degeneradas, decidi não me impingir excesso de inútil bagagem. Há de haver um futuro de amor e de esperança para o pleno exercício do nosso digno ofício, acredito, um fluido, fértil, feliz futuro para o regozijo de quem assumir a batuta, asseguro-vos que a minha humilde pessoa está de partida. Não disponho de joelhos para perseverar na luta. Isso é o absurdo da existência, sabe não? Tarde aprendi que, apesar de todos os erros cometidos, apesar da nossa equivocada interferência até, os alunos, amanhã ou depois, vão aprender o relevante, tudo a seu tempo. Consumi primaveras exigindo o balaio cheio, na entressafra, quanta pernosticidade. Eles também podem escolher não aprender neste momento, ora bolas, nada é para já, a língua do patrão não tem de ter tamanha pressa, desconfie das miraculosas imersões, fluência em dois anos ou seu dinheiro de volta, rarará, ouça um bom conselho, meu camarada, desconfie... Lamento por cada tola criatura que compra essa balela midiática, uma besteira com pedigree, do ponto de vista do mar, quem balança é a praia, a língua pode esperar em silêncio, no fundo do armário, milênios no ar. A dileta leitora me permita um breve comentário acerca dessa celeuma, aqui no meu próprio bloguinho, rarará, suponho que seja de seu interesse ficar a par da opinião da professora escrevinhadeira, do contrário, diga a verdade, a senhora estaria, a essa hora, realizando uma das suas duas ou três adoráveis, desimportantes atividades de domingo, convém não exagerar, três vivas para as perspectivas de ócio e de fantasia de todo sagrado domingo, amém. Isso de idioma é um love affair, minha senhora, it burns an eternal flame. Ainda que garantam-se, ao estudante de idiomas, as condições ideais de temperatura e pressão, rarará, uma turma com poucos alunos, uma metodologia fascinante, o mínimo ou o máximo ou o supérfluo de aparato audiovisual, acesso ilimitado à rede, quadros interativos, material didático de primeira grandeza, um professor de outro mundo, contínuo reforço paralelo, teto, carro, comida e roupa lavada, rarará, ainda que se fale a língua dos anjos, madame, rarará, mister compreender que nenhum encarnado jamais falará ou escreverá Inglês por obrigação. Lá em casa, Inglês é obrigatório! Outros idiomas os meninos podem estudar, se quiserem, ok, Inglês é obrigatório, tem de estudar e pronto! Por que você não estuda Francês, Espanhol, Alemão, minha filha? Só depois que eu terminar essa porcaria desse curso de Inglês, minha mãe disse! Tsk tsk tsk. Vou lhe contar um segredo, não fale nada, apenas me escute: quando a gente se mete a cutucar a língua dos outros, a gente não pode parar nunca mais, é um pacto de sangue e de morte, para a vida inteira! Talento, habilidade para a aquisição de um idioma, minha senhora, seu filho pode ou não apresentar, deixe que ele manifeste a vontade, espontaneamente, aí sim, o progresso acontecerá, por maiores que sejam as dificuldades, tudo a seu tempo. Se absolutamente não houver motivação interna, o desejo íntimo de tocar o alheio, não torture seu rebento, muito menos se mate, oh não se mate!, não há razão para esse furdunço. Tempo haverá. Também não sei em qual livro santo inscreveu-se que o domínio de uma língua estrangeira concede ao pacato cidadão o passaporte para o paraíso, a senha para o seu irrevogável sucesso acadêmico e profissional, que opressão é essa, por Deus do céu? Depende? Depende! A nossa venerável Língua Portuguesa - latim em pó! - essa sim, tem pedigree, tem o cacife, não duvide - taramela e gelosia – a nossa Língua pode escancarar o fole. Pode também, ofendida, contrariada, cerrar, lacrar, definitivamente, a tímida portinhola que o seu how do you do meia boca, numa eventualidade, que sorte!, bem ou mal, entreabriu-lhe.
Toda vida me considerei um imensurável naco de jaca, banana nanica gigante, minhoca tísica cheia de tosse gorda, toda vida me pelei de medo de tudo que se move no escuro e no claro do dia, sou frouxa que só, que é como se diz no meu pedaço de continente, cabra frouxo, fêmea frouxa, é desse jeito. Parece que existe esse fenômeno humano da humanidade, o correr do tempo vai, naturalmente, adensando as fibras do sujeito, as experiências fatalmente multiplicam-se, alfinetam a tenra e atalcada superfície da bundinha que mamãe beijou, tome-lhe enrolação, tome-lhe calhordice, tome-lhe mentira, tome-lhe porrada, tome-lhe baque, tome-lhe coice, o contribuinte que não tinha planos de virar Hulk, não sei, é impelido a reagir, a soltar a voz e o braço, a morder os bagos da vida, arrancar, à unha e dente, o nervo que lhe pertence. Cheguei à despretensiosa conclusão de que a maturidade viceja, de fato, é quando a gente, finalmente, compreende que deve compartilhar o que viu da vida, esclarecer às pessoas o que aceita e o que repudia, o que aplaude e o que execra, sem quaisquer hesitações ou subterfúgios. Tarde conquistei a liberdade de pensar sobre as coisas, a partir da minha história, com o meu coração e com a minha cabeça de vento, ninguém nunca foi livre sem protagonizar um pequeno ato de coragem. Better late than never. Coragem é desprezo por todos os escalões da covardia. Coragem é manter acesa a chama do fuchique, avessando, em público, os meus farrapos, revelando, sem sombra de receio, a cada encontro, da mulher que sou, a mais obscura face. Tenho certeza absoluta de que preciso parar de trabalhar, parar para sempre mesmo, o quanto antes. O povo sequer suspeita, faço cara de contente, mas a artrite artrósica de estimação, meu castelo dos horrores, irrompe austera, audaciosa, acaba com a minha raça podre. Quem me vê assim cantando, subindo a escada devagar e sorridente, zen-pacificada, jura que bebi água que passarinho não bebe, vinho de ver a fuça da jia, essa aí tomou um cálice, rarará, alcançou e atravessou o portal dourado do Nirvana, reside no colo da paz, vê-se pelo tai chi cotidiano – suave gesto, lentíssimo movimento. É por aí não, madame. Já tive motorzinho nas patas, nas panturrilhas; disparava feito um raio, envenenada. Hoje, o corpo alarmado me dói, alerta, vaticinando. Como o céu é do condor, no chão da praça, a dor é sua, cara mestra, use e abuse. Intruso, constrangedor desassossego esse - perpétuo e intransferível - pulsando ali, nos vórtices da carne.  

sexta-feira, 8 de março de 2013

Falta de ar

Os ignorantes usufruem dessa extraordinária vantagem, absurdamente vantajosa, sobre todos os seres humanos e desumanos megainteligentes da Terra, é um privilégio rutilante o sujeito não entender bulhufas a respeito dos assuntos comprovadamente importantes e relevantes da vida e da morte, um sonho isso do sujeito não codificar as querelas fundamentais do ser ou não ser, ainda sob cuidadosa análise propedêutica, epistemológica e hermenêutica – processo para lá de inconclusivo, perda de tempo e de alegria - morro de pena dos racionais Mc's, dos obstinados pesquisadores de carteirinha, dos intelectuais de grife, nem chego muito perto por causa da urticária, adivinho de longe mesmo, entretanto, aquele olhar distante, de urso panda insone, o cenho plissado, a cara encerada; prosseguem verticais os meus diletos amigos, melancólicos e verticais, ad infinitum (confere, Poeta?), tão sobrecarregados, coitadinhos, das profundas reflexões sociológicas, culturais, psicológicas, matemáticas, metalinguísticas e metafísicas e o raio que o parta, três vivas para a profusa cascata de compêndios devorados com o paladar apurado, saliva doce, doce mel de livros, livros, livros à mancheia, as caraminholas todas a lhes empenar o eixo do juízo, a desconfortável armação dos óculos fundo de garrafa, pedindo outra faz é tempo (ou diáfanas lentes de contato gravidade zero, para anteontem, por favor), o par de óculos ferindo a pele, pesando chumbo por cima do pau da venta (venta é nariz, a senhora aprendeu!), uma calamidade. Deus me conceda a graça de passar ao largo. Somente os insipientes com firma reconhecida são felizes, eu penso desse jeito. O sujeito sofre na moita, entocado e humilde, sofre resignadamente, sem saber a fórmula, sofre as suas dores mais secretas, sofre as fugazes felicidades, chora os cravos e as pitangas, exulta, inocente de pai e mãe, cada desconhecimento é um flash, desenha na areia seus pobres passinhos empíricos, o rastro da inconsistência, vai experimentando, a brisa do mar soprando o leve suspiro da saudade, o sujeito toca o barco, ruminando as dúvidas e distendendo lento o velho espírito aprendiz, sem a complexa interferência dos achaques da ciência.
Rapaz, eu vi um filme que acabou com a minha natureza. Cibelle trouxe de Sampa e me deu, ou me emprestou, e eu achei que era presente, ando muito à flor do pano, dependente e carente, naquela base do só vou se você for, na maré de retribuir sorrisos alheios, devidamente endereçados ao próximo da lista, a senhora sabe como é, a pessoa abre o sorriso para o seu vizinho, a senhora vai logo escancarando o seu, acenando muitos tchaus e mandando um caminhão de beijos pelo ar, mico bom é mico gigante, fale a verdade, aqui a senhora precisa concordar. Não gosto de estragar prazeres, sou competentíssima escrevinhadeira de causos para boi dormir, fuxico é comigo, esse causo dessa fita não conto, entretanto, a vaca pode tossir de vomitar, tem coisa que só vendo, minha senhora, Amour é amor para mais de metro, uma película que só vendo, nem adianta o sujeito arriscar-se a comentar, fracassará no melhor estilo, quando o sentimento extrapola o enredo, fica maior que a história, maior que a sala, maior que a gente, que a rua, maior que as barbas brancas de Deus até, convém ao verbo, calar. Um dos protagonistas de Amour, a propósito, ensina essa lição bem direitinho, no momento em que procura relatar para a esposa um acontecimento, ele esqueceu os detalhes da história, mas sente tudo, pode chorar por ela, a história, com o mesmo desatino, com o mesmo sentimento, uma coisa linda. A questão é que existem os críticos de cinema, uma raça superior, uma categoria exibida como o diabo (vade retro, satanás!), uma pedra no meio do caminho e dentro do sapato do respeitável público, público vão e vasto como as galáxias, haja tutano, haja personalidade para o reles mortal peitar o festival de idiotice certificada que assola os cadernos de cultura e entretenimento dos conceituados jornais do país. Li, casualmente, nem foi no jornal, li por aqui na internet, um artigo a respeito do filme, uma besteira com pedigree. O cara já começa empostado, dando aula, um entojo, tenho ojeriza a quem fala e escreve como quem discursa ou palestra, eis um negócio que me obstrui os canais da compreensão, minha estupidez agiganta-se de uma tal maneira, não enxergo um palmo adiante. Pois então, o sujeito amanheceu disposto a dirigir-se apenas ao escol da classe, aos diplomados no riscado cinematográfico, na minha opinião, uma burrice sem precedentes, não tinha nada que inacessibilizar uma resenha virtual, um texto supostamente destinado a qualquer criatura bê-a-bá-zada da rede, bastava que o sujeito publicasse, para a posteridade, uma imponente obra sobre o berço esplêndido da sétima arte, os interessados que pelejassem para juntar os trocados de comprar o valoroso exemplar. O sujeito encontrou mais de sete erros no desenho animado do austríaco Haneke, o discípulo de Bergman. Nunca quis aprofundar os cornos na tela de Ingmar Bergman, nunca vi esse sueco, não vi nem comi, só ouço falar, minha irmã erudita arrasta um trem por um tal Morangos Silvestres, não sei que gosto amaro ou agridoce os morangos têm, desisti de provar os frutos dessa safra, meu irremediável afã de simplificar atravanca demais o meu progresso, é de matar. Aprendi muito cedo a olhar e interpretar, conforme o viés dos meus sentidos e do meu destino, pela graça divina: Amour é um derrame de afeto, um espetáculo delicado e avassalador, um átimo da soturna beleza de que ninguém deve prescindir; a vida, minha senhora, é triste e extraordinariamente bela. Meu único, tão querido irmão - o avô, o pai, o varão, afinal, ansiosamente aguardado por Dona Rita (que jamais te abandonou, irmão, não há de ser agora...), o espírito santo - o homem de Dona Júlia, o homem da casa, o homem dessa sui generis família (clã de doces bárbaros desajustados), o homem da alma dessas seis mulheres de aço e de bola de sabão, apresentou um quadro isquêmico grave, complicado, que inspira enormes cuidados, e está no hospital, a senhora já foi informada, aposto, as notícias boas e más circulam rapidamente, a solidariedade entre iguais também, pelo que agradeço tanto, com a frágil força do meu coração machucado. Estranham-me os acidentes automobilísticos, aéreos e vasculares, mano. De onde estou, Ivomar – meu débil palhaço, meu tonto bailarino - aspiro num soluço a tua falta de ar, apenas aperto tua mão; compartilhemos, néscios, triviais, meramente fraternos, a fatal vulnerabilidade, sou capaz de amá-lo tanto, meu amor, hoje e sempre. Muito, muito mais que antes. 

domingo, 3 de março de 2013

Placebo

Passadas as duas semanas de dar em doido, duas semanas cinquenta vezes mais alvoroçadas do que a minha pobre indolentíssima alma teria escolhido, concedessem-lhe a terna possibilidade de preferir não realizar coisa alguma nessa vida besta, abrissem-lhe o justo precedente, nobre e doce senhorinha, e não dava outra, a minha pobre alma abocanhava para valer o osso, largava era nunca mais a moleza, lavava e enxaguava a mula manca; paz, quero paz e sombra, ninguém me amole com esse papo de emprego, não está vendo?, não estou nessa!, a minha alma, clara e obviululantemente, aponta os cornos para a cara do sossego. Na linha de frente, meu bem, labutando adoidado, rarará, a minha pobre alma já comeu o pão dormido que o diabo amassou, verdade seja bendita. Deus me livre da maldição de ser para sempre mais uma brasileira ocupada até a raiz dos cabelos progressivamente domados, vade retro para o quinto dos infernos, o cidadão morto de ocupado é um sujeito chato para cacete, vigiando os minutos e cevando as burocracias, ocupando muito espaço do singelo planetinha, octopus ocupadorum pesadão, desengonçado, vergado das mais inúteis responsabilidades, os venenosos, espessos tentáculos à solta, tocando horror, fúria indômita devastando tudo, restringindo ainda mais o tímido, o sacrossanto mínimo território de brincar do quintal da humanidade. Passadas as duas semanas de cão, experimentando um prazer quase sexual, rarará, retorno ao bloguinho dos meus amores, prezado leitor, que saudade que eu sinto da sua agradável companhia – indelével carícia, como sofro da falta de um bate-papinho frugal e inofensivo, essa conversa mole sem eira nem beira, bobagem por cima de bobagem, xerém que peneirando, vamos combinar, não inteira, da xícara de chá, sequer a metade.
Meu defeito é falar pelos cotovelos, assumo. Falar e escutar. Falo mais que o homem da cobra, emprenho pelos ouvidos, é de nascença. Esses dias, sinceramente, não escrevi um verbo intransitivo, logo eu, essa importante pessoa prestes a lançar um livro de historinhas para o merecido cochilo do ruminante, rarará, a propósito, recomendo cautela com despesas supérfluas, certamente desnecessárias, a senhora, fazendo a gentileza, gaste com moderação, minha senhora, pelo menos até o dia do lançamento (data, hora e lugar oportuna e devidamente divulgados no fuchique e nos quatro cantos do mundo, ninguém vai ficar de fora, tranquilize-se, madame!!), a senhora sabe que é de muito bom tom, uma elegância, prestigiar uma autora novata, criativa, sensível, estilosa, talentosíssima, rarará, adquirindo vários exemplares da sua primeira cria, há de haver aniversariantes ilustres na família da senhora, aniversariando, imagine só, por extraordinária coincidência, naquele mesmíssimo dia, rarará, sua honradíssima família conta com grandes apreciadores de uma interessante crônica digestiva após o jantar, existem também, como esquecê-los!, os tantos amigos queridos que a senhora pretende mimar, diga a verdade, além do mais, a senhora já leu, assaz, alhures e antanho, rarará, que presentear alguém com um livro é, indubitavelmente, o maior de todos os elogios. Enquanto Seu Lobo não vem, insisto na questão da tagarelice com pedigree, a minha e a do meu distinto interlocutor, pano de sobra para a vestimenta de hoje. Não é para me gabar, Deus me livre e guarde desse cancro do espírito, antipatizo de cara com quem se acha mais que a medida, a Coca-Cola do deserto, os pentelhos de Jane Fonda, tal e coisa, isso de se exibir é uma coisa muito feia, Dona Rita, minha saudosa mamãe, achava, aprendi com ela. Não é para me gabar, Deus me livre, mas a minha memória é fogo. Ainda ontem, no face dos desocupados, rarará, li, por acaso, uma frase, que não é minha, rarará, atribuída, por Luana, minha caríssima leitora, à minha humilde pessoa. Tudo tem de passar pelo músculo involuntário: o coração. Cinquenta por cento dela me pertencem, fato. O pedaço mais bonito, entretanto, surrupiei mesmo foi daquela canção não sei de quem, que conheço por causa da fantástica Marisa Monte: o meu coração é um músculo involuntário e ele pulsa por você, um dia eu vou estar contigo e você vai estar na minha... Tenho certeza de que o músculo involuntário é velho como o mar, tadinho, sorte tem o contribuinte que resgata a palavra certa, transbordante de significado de vera, no instante exato, de dentro do mistério azul do seu estojo. A bem-vinda palavra de outrora, alheia e requentada, sem contraindicação aparente, opera um milagre, desencadeia uma reação psicológica inusitada. Minha teoria sobre a intimidade com a palavra é simples de doer: dispa-se de qualquer preconceito, não se pode requisitar intimidade sem oferecer intimidade, a pessoa precisa desnudar-se, romper o invólucro do confortável, abrir os chacras para o outro, os discursos vão se abraçando, misturam-se, faz-se literatura. A pessoa precisa interagir profundamente com a vida, a vida vive de solicitar essa atitude audaciosa de olhar e de deixar-se olhar, de escutar e de fazer-se escutar, todos estão convidados, poucos atrevem-se ao pulo do gato, a exposição custa uma baba, é isso. As fofocas pululam, coçando-se para estrear no picadeiro. Conte um conto, aumente um ponto. O léxico circula por aí, na tela da TV no meio desse povo, nos quadros de aviso, nas paredes, nos semblantes, nas bocas, nas páginas, nos impropérios, nos silêncios, a partir da gente e por causa da gente. Às vezes, acredite, rio litros da sandice de suspeitar que o pobre homem que deseje produzir um texto completamente inédito, ai ai, vá sucumbir na praia, rarará, a senhora não tenha pressa, observe o derredor, esteja bastante atenta aos ruídos do verbo, minha senhora, aposto que a senhora perceberá, estupefata, que tudo foi pensado, articulado sem som, o seu enredo pode repousar recluso na cabeça, na palma da mão da sua vizinha, por exemplo, rarará, ela não pariu, sei lá, por absoluta falta de tempo. Ou de coragem. Quem se lembra dos detalhes do que vive estrada afora, sem paúra de um sangramento ocasional, o cara com memória de elefante, meu caso, modéstia à parte, com memória de elefante e meia dúzia de horas brancas, o cara torna-se respeitado autor de grife, rarará, no gênero ou subgênero que lhe apeteça. Recentemente, desarmada das unhas aos dentes, chamei um aluno para conversar comigo, andava doida para ouvi-lo, queria saber por qual razão desaparecera da minha sala de aula, mudo feito um poste, sem raiva, sem adeus, sem esclarecimento, estranho tanto essa conduta, não sei me relacionar assim com os outros, preciso dos dois com a mão na colher; apurei meus tímpanos, as pupilas, os sentidos todos, tivemos um encontro bacana, sincero, trocamos figurinhas raríssimas – os dois com a mão na colher, que não dá pé de outra maneira – sorri quando me agradeceu, disse-me que havia lhe dado um bom conselho, não compartilho, pois não me recordo do ensinamento, um fuxico sensacional, desses de render um romance, mas a minha memória é fogo, rarará. Agora danou-se a nêga do doce, onde já se viu? Se conselho fosse bom, meu camarada, se vendia; não se dava assim não, de cortesia.