Minha mãe tomava um remédio, o último do dia, à noite, existia
essa doce rotina ursinhos carinhosos, lá em casa, o carinho de adentrar os aposentos do
casal, tantas explícitas demonstrações de amor imenso flagrei, sem querer, ali,
meu pai e minha mãe nem se importavam de esconder dos filhos as carícias – uns
devassos! – ficavam de namoro horas esquecidas, colados, aninhados, engatados,
a porta escancarada para quem quisesse ver, nunca me esqueço, meu pai e minha
mãe viviam num chamego de dar inveja, pegação, cheiro e amasso, cafuné do bom
que só, graças a Deus, meu Deus, lição de fazer amor no aconchego do lar, lição
de que eu nunca me esqueço. O carinho de adentrar os aposentos do casal, com
pés de lã, acordar Dona Rita com desvelo infinito, devagar, tão suavemente,
isso bem depois das onze horas, Mainha assistia à novela das nove, depois se
recolhia... Daí, mais tarde, era despertada por Iêda, minha irmã mais velha,
mamãe Iêda, a grande mãe de todos nós, Iêda nunca se casou, nunca constituiu
família, nunca pariu, engravidou uma vez, enfrentou um aborto espontâneo,
passada dos quarenta anos já, parece que foi desse jeito, foi-se o mel e o miúdo: seu
único filho, um homem, um moleque que se chamaria Maurício, o menino Maurício, sabe-se lá por quais cargas d’água,
não vingou, Maurício caiu do galho, deu dois suspiros, depois rumou confuso
para os lados da eternidade. Como de costume, Iêda preparou o chá, pegou o
comprimido, atravessou, pé ante pé, a penumbra, a espessa, turva cortina do
silencioso quarto, alcançou a mão delicada, tocou Mainha de leve, cheia de
cuidados: “Mãe, o chá. Olha o remédio.” Mainha não se moveu, não abriu os
olhos, só o que me cega, o que me faz
infeliz, é o brilho do olhar que eu não sofri. Mainha partira minutos
antes, o corpo inerte, ainda fluido e quente, esclarecia. Mainha andava tão
cansada do pesadíssimo desfalque, de insistir na vida dura sem Seu Biu, Mainha
resistira pouco mais de um ano, tempo muito além do suficiente, no seu
entendimento, amargando saudade feito uma condenada, súbito subtraída do vigor
daquele braço, Mainha partira, serena, para encontrar seu marido, decerto,
Mainha nunca mais nos veria. Achamos que houvesse ocorrido um desmaio, uma
perda momentânea dos sentidos, quando se trata de tatear no breu aquele vão
onde outrora o colo da mãe florescia, os filhinhos são assim mesmo, envelhecem
crianças, tadinhos, estúpidos, birrentos, malcriados de carteirinha, tolinhos
demais, pateticamente despreparados para o inevitável rompimento... Minha
senhora, escreva o que lhe digo: é choque, espasmo, abismo, magma de agonia que
jamais escorre para desaparecer no ventre da terra, a lava empedra, sei lá, esfria,
vira um cálculo machucando as vísceras permanentemente, impiedosamente, nenhuma
força do universo suplanta o abandono semeado pela ausência.
Dona Rita me deixou no vácuo, justamente quando reinventávamos,
a nosso modo, a velha brincadeira de brincar de mãe e filha, a senhora que me
prestigia desde o início, pelo que, humildemente agradeço, comovida, a senhora
está careca de ler, em doses homeopáticas, retalhos desse assunto, aposto que
já leu a respeito das irmãs adultas
tomando conta da minha infância, no revezamento quatro por quatro do papel principal. Dona Rita assistiu ao meu desenvolvimento,
à minha formação, na geral do mambembe teatro, acomodou-se como conseguiu, no
fundão da arquibancada, à distância bastante segura do gargarejo; Dona Rita
quis que eu usufruísse do melhor que há: muita instrução, a devida orientação intelectual,
moral e psicossocial das doutoras do pedaço. Minhas irmãs pintaram miséria,
fizeram muita algazarra com a menina maluquinha – do show a protagonista, o
macaquinho de circo, a boneca gorduchinha sabidinha da silva, precocemente
amadurecida, de carbureto, abrilhantando o espetáculo da mansão dos horrores.
Certa feita, deslizando aqueles dedinhos de anjo, alvíssimos, enrugadinhos,
entre os meus cabelos, Dona Rita me confidenciou um segredo, a revelação
redentora, a frase que realinhou as órbitas do planeta, o solto som que definiu
o tom do mosaico, fundindo em mim as dezoito faces de uma pobre alma
estilhaçada: “eu devia ter criado você, minha filha.”
A recente temporada de A filha do teatro, em Recife, foi um sucesso. Se não foi, deveria
ter sido. Sob a direção sensível, minuciosa, profundamente eficaz, de Toni
Rodrigues (um astuto profissional de teatro!), Bruna Castiel, Sônia Carvalho e
Manu Costa, as belas mulheres atrizes da peça, transformaram o ríspido texto de
Luís Reis – uma parada tensa, obtusa, uma grossa camada de tecido adiposo, um texto desses
do sujeito perfurar à peixeira mesmo - numa máquina de promover pouco riso e
muito pranto, a partir das importantes reflexões propostas acerca da arte de
representar, do claro do palco à sombra da coxia, com os refletores iluminando
cada pormenor da dor e da delícia de se ter, de se perder, de se requerer o
sacrossanto direito de ser mãe, assim como o intransferível direito de ser
filha da mãe. Eu conto com a sorte de não fazer da crítica o meu ofício, a minha
pessoa seria de uma incompetência de viver desempregada, aposto; não entendo
neres de pitibiriba dessas coisas de encenação, muito menos disponho de
isenção, da devida imparcialidade para tanto. Envolvi-me com o bagulho até o pescoço, o bagulho é de primeira, asseguro: uma lição de amor, pena que sou suspeita. A senhora acompanhe o meu
raciocínio: Manu Costa é Manuela, minha sobrinha amada, minha afilhada, eu
batizei essa guria, conheço os becos, os desvãos, madame, a raiz da sua
tristeza e da sua alegria. Toni namorou meu sobrinho, convivia conosco em casa,
é uma criatura tão querida, além do mais, eles são melhores amigos até hoje.
Luís Reis é Liguto, dramaturgo, jornalista, um professor de Inglês com
pedigree, Liguto assumiu as minhas turmas na Cultura Inglesa, em Casa Forte,
quando me mudei para Petrolina. Depois trabalhamos juntos, Liguto foi meu
coordenador na Cultura Inglesa do Espinheiro, éramos unha e carne, até eu
decidir vir para o Rio de Janeiro. Um belo dia, a gente teve um arranca rabo de
rachar o quengo, ele estava irreconhecível naquele belo dia, alterado, transtornado,
cuspiu-me impropérios duríssimos, feito paralelepípedos, no meio da cara, pareceu-me
ciúmes, não sei, nunca vou compreender, bati a porta, na ocasião, sumi no
mundo, nunca mais olhei para trás. Só uma coisa me entristece, a briga de amor que eu não causei. Desejo que a gente sequer se esbarre por aí, do contrário, vou ter de feri-lo fundo, mais ou menos na mesma medida. Encerrada a apresentação, fui
cumprimentá-los – Toni, as meninas – ao abraçar Manuela, desabei: uma cascata. Chorei sentida, chorei sentido, meu
choro convulso, desatinado, chorei de arrebentar, as lágrimas encharcando a sua
negra fantasia. Tanto quis falar, mas não falei, desconstruída de soluços. Só uma palavra me devora, aquela que meu
coração não diz.