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quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Fototropismo

Entabular dois dedos de prosa com o gigante Bruno é sair da sessão, frouxa de rir, Bruno é um chafariz de pilhéria. Arrasto um transatlântico por quem se diverte me carregando junto, Bruno é assim: leva para a gafieira, paga o gim, convida para uma contradança, nem titubeio, entrego-me corpo e alma ao rodopio, adoro. Bruno, dia desses, com aquela raiva do cão, o tinhoso escanchado no pescoço: - Que foi, cara? - O satanás nos costados! - Quem é esse na tua nuca, Bruno? - Pergunta a ele, ora! - Quem é tu, malvadeza? - Legião, porque somos muitos!! Sensacional, diga a verdade, rarará. Tenho para mim que essa legião aboletou-se foi no meu cangote logo cedo, amanheci transtornada de dor, do porão à cumeeira, Dona Rita minha mãe diria ‘intiriçada’, Mainha comeu o pão que o diabo amassou, problema na coluna, coitada... Sofreu feito sovaco de aleijado, nem gosto de me lembrar. Like father, like son, igualzinha a ela, completamente ‘intiriçada’, hoje, por causa do que sinto na pele, compreendo. Estou dura, inteiriçada, de fato, a espinha dorsal virou peça inteiriça: tesa, grave, entrevada. Inventei de sair de casa de qualquer maneira, olhar o mundo, mostrar a cara na confraternização do trabalho do meu marido, deu-se a merda, olha aí o resultado: uma espada fincada no lombo ofegante, desse jeito.
Soletro a pergunta estampada nos cornos da leitora: foi arrumar o que na rua, perua? Claridade. Da lua, dos barcos, dos postes, dos semáforos, dos prédios, dos faróis de milha, das retinas embriagadas de cerveja e amizade, das auras iluminadas. A sensação é a de plantinha abafada num cubículo escuro, os raminhos contorcionistas farejando um orifício, luz, quero luz, vislumbro palcos azuis além da fresta. Essa indefinição sobre o mal de que padeço, o cenho franzido do reumatologista, tanta anamnese, cada exame parindo um novo exame, recomendações infinitas: não corra, não salte, não ande, não nade, não pense demais – dias de noite interminável.
Varri o asfalto quente do Rio de Janeiro, São Sebastião à proa, abrindo picadas, eu capengando atrás, catando um Centro de diagnóstico que realizasse o tal teste de que jamais ouvira falar, ao longo desses meus quase cinquenta anos de nada mole vida. No fim do túnel dos desesperados, Dr. Sérgio Franco acendeu, salvou a pátria encurralada, coice indefensável por cima da queda, sobrou pra mim o bagaço de pagar do bolso, agora é aguardar a notícia, o furo de reportagem do dia 17. A ressonância ficou para segunda, a tomografia, em seguida. Fui também alertada quanto à biopsia, o próximo passo. Dias cheios, colega. Noite alta e turva, interminável. Os reveses orientam a dança dos galhos longe do breu, mais perto do sorriso. Sem querer, sem perceber, importa mais o amor em paz, o sol, a água da bica. A gente vai descascando, despe-se das convenções, dos rótulos, das crostas, a gente deixa de lado o que não é – a morte, o caos, o batom, o bracelete, piercings e ressentimentos, as superficialidades, as necessidades quiméricas, voltando os olhos e a carne para o que faz íntimo, profundo sentido pessoal. Porque não existe mesmo possibilidade de retorno, contra a corrente, inapelavelmente, engolindo sal, flor e cascalho, prosseguimos. Tudo passa, ninguém duvide. Há um cais de porto pra quem precisa chegar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Flor de humanidade

Perder-se também é caminho. Dois meses ensaiando sobre a cegueira, o beiço da bengala abalroando jalecos diversos, de todas as fragrâncias. Para quem escolhe ficar doente, adoecer é um bocado complexo, pau de dar em doido, madame, um legítimo atrevimento. Em Cabo Frio então, meu camarada, puta que o pariu, nem tente. Longe do meu interesse, Deus me guarde, cansar o leitor amigo com essa lengalenga não vale a pena, coisa mais enjoada esse papo furado de enfermidade. A questão é que tem dia somente salvo pela palavra, quando o silêncio é suicídio, hoje necessito falar. Faz uma eternidade que me queixo, para os ouvidos moucos dos médicos desse paraíso tropical, a respeito dessa fadiga generalizada, uma vontade de deitar e morrer, impotente para vencer um lance de escada, sinto uma exaustão esquisita por dentro do organismo, um esgotamento completamente injustificado, vamos combinar, a senhora e eu sabemos que o antônimo perfeito de atleta sou eu mesma, pois muito bem, a minha pessoa anda afônica de tanto reclamar, a recomendação unânime repetindo-se, repetindo-se, como num disco riscado, os doutores locais me mandando combater o sedentarismo, tem que malhar, tem que correr, tem que suar, vamos lá! A desgraça da academia, aquela invenção de belzebu, se serviu foi para machucar, com requintes de crueldade, o frágil corpo e a alma atormentada. Antes de fechar os primeiros noventa dias, conquistei o extraordinário bônus master plus turbinado de braço, perna, pescoço e sossego irremediavelmente bichados.
Vagando devagar por vagar, encontrei Dr. Luís Octávio, que, obviamente, não quer tomar conhecimento do meu pequeno plano de saúde: a consulta mais bem paga da minha vida. Não me pareceu mercenário, pelo contrário. Reivindica o preço justo, concedeu-me um desconto significativo, uma meia para professorinhas desatinadas. Que venda competência e talento, e saiba cobrar. Que atenda de graça quem não pode lhe dar um tostão. Que mande a Unimed às favas, é isso. Luís Octávio, uma flor de humanidade. Um profissional experiente, criterioso, atento, responsável e amoroso, cheio de tempo livre para o paciente. Desde que nos conhecemos, esse homem simples de doer vem debruçando-se sobre o meu problema com um desvelo impressionante, observando, escutando, anotando, investigando possibilidades, requisitando testes que jamais supus que houvesse, numa prova inequívoca de que a morada de Deus é o nobre coração desses anjos da cidade. Já descobrimos que há um processo inflamatório muscular severo, além de uma neuropatia ainda em fase de análise, parece que estamos bem perto do diagnóstico, assim seja.
Amanheci grudada no telefone, confabulando com as atendentes dos laboratórios do Rio de Janeiro em peso, tentando conseguir informações acerca de uns exames bem específicos que devo realizar o quanto antes, uma frieza absoluta no tom da voz, uma rudeza, uma falta de tato, a leitora já reparou que sandice, como as pessoas do mundo ignoram a própria natureza enquanto se comunicam? Gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente. Nos dois primeiros lugares, bem famosos, por sinal, a interlocução deu-se com androides, acho, não é possível que aquelas moças reconheceram-se gente, gente conversando com gente, enquanto a gente procurava se entender, misericórdia. A gente quase se desculpa pelo transtorno de ligar solicitando que a sujeita faça o serviço devido, o que ela tem obrigação de fazer, sinceramente. Oh, meu grande bem, pudesse eu ver a estrada, pudesse eu ter a rota certa que levasse até dentro de ti... No laboratório Dr. Sérgio Franco, entretanto, trabalha um ilustre querubim desconhecido, chama-se Giovana, Gyovana ou Giovanna, quem sabe, rarará, uma doce menina solidária cheia de bondade na veia e de tempo livre para o paciente que nunca viu mais gordo. Você não aprendeu essa disponibilidade e essa gentileza com seu chefe, querida. Costume de casa vai à praça. Trata-se de berço. Boa educação. Jovem flor de humanidade, força nenhuma no mundo interfere sobre o poder da criação.

Para Giovana, que jamais lerá o que escrevi.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Patchwork

Deveras importante, here there and everywhere, a pessoa enfiar o pé na jaca das inverossimilhanças, rarará, três vezes por ano é a medida certinha da capricorniana formiguinha diligente com a maior dificuldade no quesito perder tempo, respaldo e linha. A senhora veja agora, por exemplo, agora a contribuinte inaugura um jeito novo de bolinar as dadivosas teclazinhas, rarará, decidi digitar uma historinha desse jeito mesmo, nessa posição inusitada, em decúbito dorsal, rarará, contando, ninguém acredita, o notebook assentado em cima do buchinho amplo, inação in action, lombeira elevada à décima potência, só Jesus aniversariante para avaliar direitinho aonde vai dar essa marmota. As férias natalinas me sorriem, sorrio de volta, presinhas serelepes, claro, exercito todos aqueles não sei quantos músculos smiles e só, minha simpática leitora mais livre e solta a cada passo, a senhora aguardando imprevistas lições de vida, buquês de graça e de originalidade, a senhora dando um quarto ao capeta para surpreender-se e agitar-se, vire a página, madame, blog bacana não falta. Não trair, não coçar, não mover a palha: tudo que o indolente fuchique da minha predileção tem para o momento.
Quem quiser arrastar um trem por essa balbúrdia shopping center, existencial e metafísica de fim de ano, fique à vontade. De minha parte, escolho fevereiro. Fevereiro é trapo e farrapo na pipoca, o sujeito vai como pode, já caiu na real, percebeu que vestir azul não mudou a sorte, rarará. Fevereiro é fantasia com dinheiro ou sem dinheiro. O carnaval é a maior caricatura. Na folia, o povo esquece a amargura. Dezembro é foda, cara. A gente se descuida e entra nessa paranóia consumista, é a praga do amigo-secreto, é confraternização até com a megera domada, uma lembrancinha para o vizinho, um mimo para o porteiro, champanhe até para o bispo, o décimo terceiro gasto em julho abre um rombo formidável no orçamento da brasileira, o réveillon é passando o ferro na velha, fala a verdade, que a gente rompe é devendo o mundo e o fundo das calças. Ademais, todas as extraordinárias New Year’s Resolutions do passado transferem-se once again para adiante, uma patifaria, uma coisa patética.
Um filme na cabeça, nem finja larita banana frita que não é consigo. Aposto os olhinhos míopes que a gatinha definha, esquarteja-se de curiosidade, roendoasunhasmente, rarará, vigiando os melhores lances do fuxico-retrospectiva 2013 da escrevinhadeira. Meu grande amigo Bruno entende bastante de astrologia e cantou a pedra: os capricornianos ressurgirão das cinzas em 2014. Retalhos para uma colcha, não estivesse de recesso. In a few words, nenhuma cabrita do planeta conta mais do que eu com a promessa desse tal renascimento, a senhora pode confiar. Morri inúmeras vezes esse ano. Mortes morridas e mortes bem matadas. Para aprender a lidar com a menopausa, expirei, extingui-me. Morri de dor, de frio, de fome, de medo e do mais agudo desespero. Morri da incerteza do que me debilita a força nas pernas. Morri de susto. Morri de raiva. Morri de saudade. Morri de tristeza. Morri de desapontamento. Morri de ingratidão. Morri da injustiça do mais cruel, covarde e absoluto silêncio, quando a palavra parceira, clara e bruta, haveria de salvar a minha pobre humanidade. Morri de paixão manifesta, desmedida e tão mal cuidada, interpretada e correspondida. Morri de impetuosidade. Morri de arrependimento. Morri de tédio. Morri de sono. Morri de vergonha. Morri de calor. Morri de asco. Morri de abatimento. Morri de gás. Morri de carinho. Morri de atenção. Morri de solidariedade. Morri de companheirismo. Morri de prazer. Morri de beijo. Morri de esperança. Morri do sublime amor por que ainda insisto em seguir vivendo.