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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Tropeços

O gigante Bruno, meu amigo, o maior e melhor ficcionista da América Latina, que está organizando uma oficina de conto lá na escola, me contou uma coisa que eu não sabia. Existe uma formulazinha infalível para a pessoa escrever um conto. Se eu, com essa minha memória precária, conseguir decorar a tal formulazinha, vou me aventurar nesse terreno, porque Bruno tem essa qualidade imprescindível a qualquer professor que pretenda honrar o ofício, ele desmistifica o labirinto, é um facilitador por natureza. Se eu tivesse para onde esticar em termos de estatura, eu queria ficar do tamanho do Bruno. Enquanto o dia de crescer não chega, me esbaldo atirando para todos os lados, impassivelmente desconexa, que ele também me garantiu que a crônica não precisa fazer sentido, ela padece dessa falta de pé e de cabeça, uma hora toda tronco, outra hora toda troncha, inconclusiva, insensata, na medida certa do bel-prazer de quem se arrisca a escrever.
Por causa da queda de ontem, na saída do mercado, hoje decidi confabular sobre os tropeços da vida. Eis uma metáfora redonda. A minha ideia quando cheguei na feira, ontem pela manhã, era comer duas tapiocas de côco e queijo, comprar uma penca de banana prata, mais uma dúzia de tomates para enfeitar a salada, apanhar O GLOBO na saída, voltar para casa ligeiro, passar um café na cafeteira nova e preparar o almoço, ficando essa parte sob a preciosa orientação e astuta e minuciosa vigilância de Ronaldão, o maior e melhor chef de cuisine da América Latina, meu orientador gastronômico-culinário e marido. Saí com a fórmula na ponta da língua, retornei de cara inchada e doente do pé. Levei um tropeção, um tropicão literal, uma topada tão aprumada não sei onde, que o tampo do dedão voou longe, desabei por cima das notícias de última hora, feito uma jaca madura, Martha Medeiros espragatada debaixo do meu abdômen esfolado, romperam-se as sacolas plásticas para a fuga dos tomates, cada qual rolando desembestado para uma esquina da rua, caí e lá fiquei, estatelada, só esperando o anúncio da trombeta, meu anjo descendo por uma vereda de luz, pavimentada, diga-se de passagem, para me alçar, feito um pássaro ferido, para o andar de cima, 'up up and away in my beautiful balloon', isso porque eu acredito piamente que 'love lifts us up where we belong'. A minha vida tem trilha sonora, nessa hora mesmo eu só me lembrava do Rei, “mas se não for por amor, me deixe aqui no chão, me deixe aqui no chão”. Juntou uma plateia de uns vinte machos bons de coração, um mais solícito que o outro, o povo querendo adivinhar meu peso, calcular com justeza a força da roldana para o içamento, eu cega de dor, me acabando de chorar, passaram a mão por baixo do meu sovaco, eu sou uma criatura que não pode ser tocada no sovaco, que eu dou logo um choque, minha gente, uma cena dantesca, uma tela surrealista, que parece que é mentira minha, mas não é, presenciou quem estava lá, e vai viver muitos anos para contar. Pelo amor de Deus, isso era eu ,no calor do desespero, vão em paz, sigam seus caminhos e me deixem aqui no chão. Eu não sei o que acontece com o meu marido quando eu me acidento, parece que ele congela, sobrevém-lhe uma paralisia motora, eu acho que ele fica esperando que alguém resolva, deve ser medo de um desencarne prematuro, meu ou dele, eu não vejo nem a sombra de Ronaldo. Se não é um vizinho, o marido de uma amiga, um transeunte passando por ali para a minha sorte, eu me lasco todinha, só escutando a voz, ele fica mandando eu parar de chorar, é só o que ele sabe fazer nessas horas. Quanto mais ele pede para eu parar, mais eu choro, choro copiosa e escandalosamente, na linha ela desatinou, aliás, se a pessoa quer que eu pare de chorar, fique calada sem dar um pio de pinto, que pode ser que haja a remotíssima possibilidade do silêncio absoluto surtir algum efeito, mas antecipo desde já, que é muito pouco provável.
Do instante da palmadinha na bunda pra gente chorar, gesto amoroso que eu nunca consegui entender, basta deixar o bebê viver, que a vida é que se encarrega de lhe maturar os pulmões, que esse vale é de lágrimas; até a hora da agonia da morte, que eu não sei como é morrer, mas eu tenho certeza de que morrer não é nada fácil; da hora do primeiro buá até a hora de abotoar o paletó, a vida é coice por cima de queda. Eu estou acompanhando a batalha daquela galera raçuda do Fantástico, três fumantes continuamente monitorados pelas lentes do programa, fazendo de tudo para abandonar o vício. Existe esse homem que aparece em família, com esposa e filhos, já o vi no trabalho e já o vi conversando com amigos. Existe uma mulher que apareceu no salão de beleza, arrumando o cabelo, noutro momento ela estava com umas amigas, tomando cerveja e batendo papo. Entretanto, eu estou completamente envolvida com a luta de uma moça em particular, uma gordinha simpática, olha a redundância. Quando a vi, senti que para ela seria muito mais difícil. Acertei em cheio. Das duas uma, ou eu cochilei e perdi um bom pedaço do programa, ou ela é aquela mulher de uma solidão imensa, do letreiro 'eu sou só eu só' piscando na testa, não a vejo acompanhada de outra pessoa diferente do Dr. Dráuzio. A moça tropeçou no sentido figurado do tombo, essa semana, caiu feito uma pata, e bravamente o admitiu, na televisão, em cadeia nacional, numa atitude comovente. Diante de um médico ex-fumante cujo simples olhar é um abraço, ela confessou a recaída. Ela acendeu  um cigarro, deu umas boas tragadas, sentiu-se esquisita, a cabeça rodou, ela estancou, de repente, ou foi o mundo então que... venceu. Ela fumou. Ela deseja do mais profundo da alma que o BRASIL SEM CIGARRO seja para sempre a sua “mãe que dorme olhando os filhos com os olhos na estrada”, a sua pátria-mãe acolhedora e gentil, disposta a lhe dar mais uma chance, se ela vier a sucumbir de novo. Ontem ela conseguiu reerguer-se, sacudir a poeira e dar a volta por cima.O fundo do poço tem mola. Hoje é mais um dia de cada vez. Essa moça jura que não tem ninguém com quem contar, mas ela conta comigo.


Para o meu amigo João, claro.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Vermelho cereja

Hoje, sexta-feira, excepcionalmente, não irei até o salão de beleza. Confesso a vocês que estou sentindo uma falta danada. Parece que o dia passou batido, pior ainda, parece que a sexta-feira gorou, não sei se o povo fala isso aqui, em Recife sei que sim, sei desde pequena. Sinto-me aprisionada na quinta-feira dos meus horrores. Quinta-feira é um dia bom e é um dia ruim para mim. É bom porque eu tenho aula de cantar, sendo cantar a segunda coisa que eu mais adoro fazer na vida, empatada com escrever besteira. A primeira coisa que eu mais adoro fazer na vida é nada, fazer absolutamente nada, de papo pro ar. A quinta-feira desanda quando entardece. É a hora de seguir para o trabalho. Meu humor muda com a cor do dia. Minha língua já arrastou no chão de tanto que eu já pedi aos meus superiores imediatos, para juntar minhas três aulas da noite, sem um pit stop pelo meio. O momento profissional vigente da que vos acode nesse momento da sua pessoa não ter porra nenhuma pra fazer, daí a leitura dessa crônica ruim das pernas, o meu momento profissional é aquele de ligar as turbinas, arrancar com mais de mil, na linha quem conseguir, que me acompanhe, e frear de vez, no solavanco, doida pra voltar pra casa. O que eu mais abomino numa sala de aula é esse negócio de recreio obstruindo o meu raciocínio, que, de uns tempos pra cá, só pega mesmo é no tranco, os meus superiores deviam suspeitar disso, provas cabais lhes dou, e muitas, o tempo todo. Desnecessário porque previsível como o calor de dezembro, é relatar que, depois do intervalo, o que fica é linguiça para a pessoa encher, eu não quero mais suar, nem eles, aprofundamos as questões epistemológicas subjacentes ao fato do gato beber leite, despedimo-nos lépidos e fagueiros, vamos brincar de brasinha, cada um na sua casinha, nossa brincadeira preferida. O mais é a sexta-feira, acenando, esplendorosa. A sexta-feira, o dia da felicidade. Eu sou uma criatura que não cria problema com horário, minhas solicitações são mínimas, facílimas de um coordenador bondoso atender. Eu só não quero trabalhar na segunda-feira, nem na terça pela manhã. Nem na sexta. Não quero trabalhar três turnos num dia só, a lei me garante que isso nem é legal. Não quero começar às sete horas da manhã, assim como não quero ficar na escola até às 22:50. Não tenho a menor condição de realizar meu ofício a contento, se o recreio se interpuser no meu caminho. Tirando isso, sou toda flores e amores. A direção de ensino é que me discrimina e persegue, sem dó nem piedade, deve ser por causa do meu sotaque, ainda abro um processo contra essa gente parcial e protecionista de sulista, eles vão ver só.
A minha manicure vai me atender amanhã, em edição extraordinária, ela me disse o motivo, mas eu me esqueci, pra variar. Não sei se é por isso, desde que eu me levantei da cama, com um dor de cabeça de rachar o quengo, diga-se de passagem, neosaldina virou suco de laranja aqui em casa, vai ver foi essa mudança brusca na rotina, tem uma música que, desde cedo, não me sai da cabeça doída, nem do céu da boca. É do Arnaldo Antunes, Gal Costa que me apresentou, chama-se Cabelo. “Cabelo quando cresce, é tempo, cabelo embaraçado, é vento, cabelo vem lá de dentro, cabelo é como pensamento”. Salão, manicure, cabeleireiro, cabelo. Meu cabelo já foi castanho escuro, isso antes de ele inventar de branquear. A gente da minha família tem essa desvantagem de ficar grisalha antes da hora. Longe dos trinta, eu já me aborrecia com a herança maldita. Me disseram que era bacana disfarçar com luzes, achei tão poético que experimentei. Usei reflexos enquanto pude, mas chega sempre aquele dia do cabeleireiro constatar que o fio precisa respirar. Eu, de morena, fui ficando gradativamente loura, condizente com 93,6% das balzaquianas da minha cidade. Há uma novidade fresquinha, fresquinha, feito aquele menino Michel, da primeira turma de Turismo da escola: a tal escova progressiva inteligente. Desde que eu me mudei pro Rio, faço escova de tudo quanto é fragrância, é london, é glamour, é raiz latina, semana passada foi uma que eu nem sei o nome, isso tudo por cima da tinta, que eu não dei na minha mãe na Sexta-feira Santa, pra conquistar prioridade na fila dos da boa idade antes da hora, só por causa dos cabelos brancos, ainda é muito cedo pra isso, Deus me livre. Quando surgiu aquela moda de cabelos ruivos na novela, vocês devem estar lembrados, a mulherada aderiu, eu também. Me lembro como se fosse hoje, tingi as madeixas de cereja, cheguei na escola crente que tava abafando, encontrei um amigo meu cearense, logo na entrada, perguntei o que ele tinha achado do visual, para mim tão surpreendentemente arrojado, moderno, atraente, eu tinha pra mim que eu era a fêmea mais fatal entre todas as fêmeas da orla do São Francisco, isso porque eu morava em Petrolina, pra variar. Meu amigo que eu não revelo o nome nem sob tortura, que eu estou  gata muito bem escaldada a esse respeito, me olhou de alto a baixo, fez aquela pausa de efeito e disparou: “Meu bichinho tá com uma cara de puta que só vendo, ...mas tá é bonita, visse?” Nunca me esqueci das bochechas rosadas desse meu querido amigo, muito mais rosadas depois do comentário, naquela manhã ribeirinha, as bochechas espremendo os olhinhos miúdos, da gargalhada uníssona, nós dois perdendo o fôlego, de um afeto tão profundo, dele me dando aquele abraço cratense antes de tudo forte, um abraço tão dele, profícuo e gratuito, carinho dele por mim e por gato e cachorro que lhe cruzasse o caminho, que aquele é um homem de amar qualquer um.  Onde estiveres, terás em mim uma amiga, meu amigo. Se não é tão somente para a gente encontrar os verdadeiros amigos da gente, para dividir com eles dois dedinhos de eternidade, apenas para retê-los pra sempre no coração e na mente, para que serve então a vida da gente?


Crônica dedicada aos que sabem que são meus amigos do peito. Daqui, dali, de acolá. Pra todas as horas, pro que der e vier.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A italiana de Madureira

Informação fresquinha, fresquinha, feito professor Sérgio”. Era Hamilton, meu professor de matemática, isso em mil novecentos e oitenta, zoando o outro professor de matemática, Sérgio Costa, na aula de matemática. Sempre que Hamilton queria contar uma novidade, sobre qualquer coisa, ele começava assim: “informação fresquinha, fresquinha, feito professor Sérgio”. Eu nunca me esqueci disso. Onde andam, por falar em saudade, não sei. Parece que os dois enriqueceram, lá por Recife, Hamilton virou dono de escolas, as escolas viraram faculdades, hoje em dia tem muito isso de faculdade pipocando pelas esquinas, fecha uma, inauguram logo dezoito, para compensar. Hamilton era um rapazote imberbe, na época, as meninas todas apaixonadas por ele, eu, inclusive. Sérgio também era um menino, e não era gay coisíssima nenhuma, era só esculhambação de Hamilton, um palhaço de carteirinha. Sérgio virou um político importante lá pelo nordeste, o filho dele, também Sérgio, virou um político até muito mais importante do que ele, nunca soube direito por que a frase grudou na minha cabeça, até hoje me pego repetindo essa besteira, só faço mesmo trocar o nome do professor Sérgio pelo nome do veado da vez, tarefa das mais descomplicadas, vivo cercada de veado, quem não sabe. A gente nunca entende direito que alquimia incrusta um professor na memória da gente, no meu caso, os desmantelados e irreverentes de plantão são sempre o espelho, coisa que, aliás, eu nem precisava escrever, quem não sabe. Acabei de me lembrar agorinha de um pedaço de vida em Petrolina, quando trabalhei aos sábados, à tarde, isso porque não me sobrava tempo de segunda à sexta, eu tinha de dar conta de duas escolas, quem me vê assim na gandaia, só 'azeitando o eixo do sol', expressão que é sinônima de 'à toa', isso lá pras bandas do meu Leão do Norte, quem me vê na gandaia, pensa que eu toda vida fui vadia, nem chegou mesmo de leve a perceber de que tecido me fiz, mas a banda não tocou sempre assim não, meu senhor e minha senhora, já teve hora de eu pensar que ia desparafusar de vez, de tanto trabalhar nessa minha vida bandida, e era trabalhar para ajudar, essa palavra de luxo. Meu pai, no dia em que eu ganhei meu primeiro salário e decidi que finalmente teria um relógio de pulso, que eu achava um negócio esplêêêêndido, meu pai me disse logo, sem pensar nisso de trauma psicológico, naquele tempo não existia isso, pela graça divina, ou, por outro lado, se existia, meu pai não queria nem tomar conhecimento, meu pai me disse logo que era para eu começar a ajudar a minha irmã, que ela tinha feito de um tudo por mim, que a hora de começar a ajudar era aquela, a hora de eu me mostrar agradecida e reconhecida e ajudar. Nunca entendi direito que alquimia incrustou o verbo ajudar na minha memória, desconfio que foi porque naquele tempo o pai mandava e a gente obedecia, era simples assim. Hoje existem as psicologias, as psicopedagogias, existe a psicanálise, a parapsicologia para a normalidade e a paranormalidade em si, a coisa ficou um bocadinho mais complexa, mas foi tudo inventado com a boa intenção de salvar a sua vida, acredite. Só sei que foi assim, ajudo quando o sujeito pede e quando o sujeito nem pede, por precaução e para ganhar uns pontinhos no andar de cima, quem sabe. Em Petrolina, no sábado à tarde, isso em mil novecentos e noventa e sete, num calor de rachar a beira do pote, a minha importante aula de Inglês evoluía fisicamente, justamente entre uma aula de química e uma aula de física, concomitantemente, as três salinhas uma juntinho da outra, um bibelô. O professor de física, Ricardo, lá pelas tantas, organizava um coral com os alunos, uma raça safada que não valia um tostão furado. De repente, não mais que de repente, começava aquela cantoria, a plenos pulmões: “Alci, Alci, Alcinézio, Alci, Alci, Alcinézio, Alci, Alci, Alcinézio... Que nome feio da porra!” Alcinézio era o professor de química, o cara ficava puto, na outra sala, eu no meio dessa maluquice, rindo de perder o tom, eu e meus meninos, uma farra de seis meses que me ajudou a aliviar a imensa dor da ausência do meu pai, recém-falecido na época, meu querido pai, justamente o homem que me ensinou a ler, escrever e sentir o verbo ajudar. Rio incontrolavelmente agora, dessa história antiga, para vocês fresquinha, fresquinha, feito meu amado, idolatrado cabeleireiro Cavanellas, mãos de tesoura.
Fresquinha, fresquinha, feito meu outrora amigo Marcelo, é também a informação que ora compartilho: minha cafeteira italiana derreteu. Hoje eu desci estalando por um café, passei um fresquinho, adocei o meu, trouxe a xicrinha pra mesinha do computador, que eu precisava conferir meu cartão da lotérica, ando obcecada com essa ideia incrustada no meu juízo, eu preciso ficar rica, eu preciso ficar rica, a minha tolerância com os desmandos dos comandos em ação da administração pública chegando muito perto de zero, inconformada com a inutilidade do ponto eletrônico, com a institucionalização de uma coordenação de turmas equivocada até a raiz dos cabelos, discordo uterinamente desse monitoramento, por uma questão de princípio e de filosofia de vida e de morte, enfim, corri pro computador, inventei de contar um causo, me entreti, roxa de rir, quando vi foi a fumaça subindo pela janela. Pensei que era gente na rua queimando lixo, prática comum na vizinhança, gargalhar tava tão melhor que investigar, nem liguei. Do nada, me assaltou a remota lembrança, Jesus misericordioso, a cafeteira! Deixei o fogo aceso, quando a gente ama é claro que a gente cuida, só pensando em manter o café quentinho, fazer uma graça para o marido. O ferro de engomar derreteu não tem nem quinze dias, agora ela, a bichinha, comprada faz um mês. O passado presente e o presente ignorado, até onde eu sei, eis a melhor definição do alemãozinho que existe, mas deixa quieto. Do alto da escada, Ronaldo já declarou que já registrou a promessa em cartório, com firma reconhecida e o diabo a quatro: 'Ronaldo, eu vou achar outra igual, meu amor, nem que eu vá pra Sardenha e volte hoje ainda, pra aula da noite, pode confiar'. Isso porque a infeliz da cafeteira foi despesa dele, tenho a leve impressão de que custou uma dinheirama, mas estou é me pelando de medo de perguntar quanto. Meu todo poderoso São Genaro da Toscana e da Calábria, padroeiro dos desvalidos desmemoriados, há de me ajudar a encontrar uma irmã gêmea siamesa dela, sou tão generosa, minha Santa Gema de Veneza háverá de me valer, que eu haverei de merecer. Encontrar não é nada. O milagre vai ser conseguir pagar a bandida no dia 24 de novembro. Meu salário acabou faz é tempo.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Dona Doida

Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

(Adélia Prado)

De uns tempos para cá, dia sim dia não, vislumbro, quase sem querer, uma leve sombra de apreensão, naqueles outrora descontraídos semblantes dos meus colegas de trabalho. Flagro um discreto soerguer de sobrancelhas aqui, um fortuito ranger de dentes ali, um cerrar de lábios acolá, um sorrateiro apertar de olhos, “um pouco de ruga na vossa testa”, aquele desconforto pretensamente velado, uma urticariazinha, um eczema, penso se somos eu e a minha pontiaguda pena, pobres de nós, os inadvertidos responsáveis pelo que prevalece no recinto. Nem me lembro mais do que foi que me impeliu a criar esse blog, honestamente. No dia que eu mentir, o mundo se acaba. A ideia não pode ter sido minha, que eu sou muito desfavorecida de boas ideias, sempre gastei a fatia mais doce da vida, imitando os outros, mal e porcamente. A sugestão deve ter partido de algum amigo, sei lá, alguém da escola, que me ouviu contar, com todos os mínimos detalhes, a história do meu encontro com meu marido, aquelas minúcias acerca da aproximação virtual, de início, evoluindo para o desejo 'de sermos um corpo querendo outro corpo e uma alma querendo outra alma e seu corpo', como diria a senhora Adélia, a grande dama da literatura brasileira mineira, minha ídala, a mulher mais bela do sistema solar, a mais profusa parideira de versos asfixiantes do mundo. Danei-me a fazer escarcéu, feito uma gralha, tagarelar sobre os preparativos para o casamento, as incertezas quanto a um futuro juntos, na mesma cidade, enfim, eu com a minha boca três vezes maior do que eu, incompetente de pai e mãe para manter dentro da minha imensa boca a minha imensa língua maior do que passadeira de igreja, eu inventei de badalar a história pelos quatro cantos do sistema solar, alguém arriscou: 'por que você não escreve?', eu, envaidecida até a raiz dos ossos, embarquei nessa canoa furada, deu no que deu. Agora, toda hora é isso. Todos temem que um tropeço, um deslize, uma desatenção, uma gafe, um sorriso, uma lágrima, um furúnculo, um chulé, uma patada, uma cantada, o que quer que seja, seja registrado pelos meus tímpanos e retinas, virando pauta de blog. Onde já se viu uma doidice dessa? Tem um cara que eu curto pacas, um cara cujo nome prefiro declinar, que, no meio de uma conversa bacana, engraçada, uma dessas conversas que a gente só tem na casa dos amigos, com velhos amigos que vêm de outra encarnação, de tão queridos, meu querido amigo, do nada, me alvejou com um peremptório 'não ponha isso no blog não, viu?'. Valei-me, Nossa Senhora do Balé Moderno! Chega levei um susto! 'Nem por sonho, fique tranquilo!', emendei, abismada.
Desde ontem, rumino uns sentimentos dentro do meu frágil coração atormentado. Dona Adélia que me ensinou: a coisa mais fina do mundo é o sentimento. Alguém tem que cuidar dos meus, é o que sinto, e se eu não cuidar, ninguém cuida. Mas, eu quero cuidar do sentimento do meu semelhante, também. Perdão foi feito pra gente pedir, eis um primeiro enorme passo. As pessoas de natureza mais irreverente, os gaiatos, gordos, em geral, tendem a ferir o sentimento dos outros, sem perceber, pois abusam do ácido sarcasmo, do deboche e da ironia, meio se defendendo até, das intermitentes pauladas da vida, que vida de gordo não é mole não. Eu sou um arremedo de comediante de quinta. Rir é muito bom, mas 'rir de tudo é desespero', admito. Gostaria de pedir perdão, amigos meus, se em determinadas situações, aluada que sou, eu erro a mão e ofendo, quando a intenção é entreter e distrair. Nesse picadeiro, de cara pintada ou lavada, a protagonista sou e serei sempre eu - bufão, palhaço, chacota, piada – porque cada um sobrevive com as cambalhotas, malabarismos e piruetas que consegue encenar. A um só tempo, protagonista e coadjuvante, desponto para o anonimato, por livre e espontânea vontade. Cada um sabe a dor e a delícia de escrever o que bem entende. Eu escrevo por exigência do verbo. Não é para mim, nem para ninguém. Não é para nada. A contrapartida é o perdão que ora lhes ofereço. A gente querida que me fere, tantas vezes e tão fundo, sem se dar conta, já está toda devidamente perdoada, na boa, com contrato de amizade sincera automaticamente revalidado.
Amor é palavra de luxo, Dona Adélia. “Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear, eu iria... As casas baixas, as pessoas pobres, e o sol da tarde, imaginai o que era o sol da tarde sobre a nossa fragilidade”. Entre as quatro paredes do meu querido diário, aquilo que não for objeto de alegria e risada escrachada, será uma veia aberta e uma declaração de amor. Eu tenho amor para dar e dou amor à gente, bicho, lugar e luar, queiram meus leitores ou não, porque é assim que eu quero. Meu amor saiu de férias, viajou para o nordeste, para o seio da minha família, foi-se embora sem mim, me deixou sozinha, consolando o meu amor desconsolado, e eu chorei choro convulso, sete dias e sete noites, até o dia do meu amor voltar. Mil vezes amo o meu amor e mil vezes o declaro. Amo as nossas afinidades, como amo, em nós, o desigual, vergando-me em côncavo aparato humano, tépida cavidade para o aconchego da  alma diversa, da carne fatigada. Amo a sua calvície e a sua barba e bigode. Amo o seu odor de mogno e de suor. Amo cada refeição compartilhada. O passeio pelo meio da feira, as sacolas plásticas, o café e as tapiocas. Amo você, meu amor, porque é você quem me adormece e me desperta sob a colcha de cama da vida. Amo você porque amar você é meu princípio, meu meio e meu fim. Amo você, meu amor, de pulsante amor real, enquanto eterno amor houver, fora e dentro de mim. 'E este excesso de realidade me confunde'.

Casamento


Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

(Adélia Prado)

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A estrada real

Freud ou Fred do Fluminense, não estou bem certa, o fundador da psicanálise, que eu já morri de fazer, mas continuo sem saber direito pra que serve, Freud ou Fred foi quem inventou essa besteirada toda de interpretação dos sonhos, ou coisa que o valha, isso em mil oitocentos e guaraná de rolha, salvo engano. O cara devia ser meio ocioso, certamente, porque levou o maior tempão, só nessas reflexões do onírico, pra descobrir, maravilhado, que parece que o que a gente sonha, e aí eu não sei se é no nível básico, intermediário, avançado, ou proficiency do sono, eu não sei se é na fase perereca, jia, rã, REM ou não-REM, o que eu sei, porque vi num honestíssimo programa de TV, é que a pessoa faz um esforço filho de uma égua pra reprimir e recalcar os desejos e anseios secretos e afins, abarrota o porão da mente dessas travessuras de ninguém ver, esconde tudo debaixo do tapete e das sete capas, aí a menina do sonho lhe rouba a chave-mestra, na calada da noite, destrava os intransponíveis portões de ferro, e, minha cara amiga Mônica, que, eu adivinho, lê este meu texto mequetrefe neste exato instante, a menina do sonho, Mônica, ela escancara o conteúdo censurado para menores. Escancara no privado, para você, que está sonhando, tremer e ruborescer ao despertar, lembrada dos mínimos detalhes, se você for de lembrar-se, e escancara para o respeitável público, se você for um pobre desafortunado que fala pelos cotovelos enquanto dorme. Aí, meu bem, você dá parte dos seus terrores noturnos aos vizinhos e a mim, corre o risco do assunto proibido ter registro no blog, se cuide.
Eu sou uma criatura que nunca na vida, nem em dia de festa, por mais desesperador que se anunciasse o desespero, na rua , na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapé, eu nunca perdi uma noite de sono. Minto. Perdi algumas, mas toda vida encarei tais perdas como ganhos, foram noites consumidas nas páginas de um livro bacana, na fumaça e no álcool, salvando a humanidade na companhia dos amigos de mesa de bar, os mais leais, na pista de dança, nas ladeiras de Olinda, achando pouco e querendo mais, na cama, partilhando o tesão e o carinho da ocasião, sofrendo todas as dores de amanhecer. Até velando os meus mortos na madrugada, eu ganhei. Ganhei guerra e ganhei paz. Insônia é uma palavrinha que só me serve para contar historinha alheia. Eu, quando me deito, se não é pra namorar, durmo feito uma pedra, dentro de sete minutos e meio, no máximo. Todo dia eu faço tudo sempre igual. Durmo e sonho. Pense numa criatura que sonha, essa criatura sou eu. Sonho colorido, sonho em preto e branco, sonho em Inglês, sonho que sou a Carolina Ferraz... É adormecer e sonhar. Batata. Acordo e posso fazer um desenho, de tanto que me recordo dos detalhes. Diz a lenda, lá em casa, que os meus sonhos são premonitórios. Em família, vira e mexe, aparece um me perguntando se eu ando sonhando com ele, é até engraçado. Isso por causa do sonho que tive com a mãe de Cris, minha querida irmã Tia Dau, dias antes da nossa menina virar meu sol da manhã, toda manhã, ainda que não haja um raio de sol. Aos que desconhecem o conteúdo desse sonho, segue o convite para a leitura de uma crônica anterior, a Lua Cris. Por causa também de algumas gestações que eu previ, muito antes das gestantes confirmarem o estado interessante via velho amigo Beta-HCG. O meu sonho mais impressionante de todos os tempos foi o meu sonho que me levou para a minha casa em Recife, no dia da morte da minha mãe.
Quando perdi meu pai para Deus, ele estava muito distante de mim. Eu morava em Petrolina, isso em 1996, quando os voos de Petrolina para Recife eram raríssimos, aconteciam apenas uma vez por semana. Meu pai tinha câncer, eu sabia, mas ele era um homem muito forte. Meu pai sempre me deu a impressão de que viveria eternamente, muito além  do horizonte, de tudo, de mim, incontinenti. A mais pura verdade. Um belo dia minha irmã Iêda me disse, ao telefone, que meu pai estava no hospital, muito bem assistido, apresentando um quadro estável. No outro belo dia, minha irmã Iêda, ao telefone, pediu que eu fosse pra casa, pra uma visita, pra ficar um pouquinho no hospital, perto dele, eu me acabava de aflição, recebendo as notícias, sem vê-lo, sem tocá-lo. Viajei doze horas de ônibus, pensando nesse encontro, para constatar, na chegada, que já fui tarde e atrasada. Contaram-me que ele recebeu sua morte, discreta e respeitosamente, como se recebe uma autoridade importante. Avisou aos filhos e à neta Manu, os que estavam em torno dele: 'eu vou morrer'. E morreu. Ele estava sempre certo. Vi o cadáver, toquei a face gelada, sem rastro de calor humano. Me consolei mais ou menos, tem hora que supura. Um ano e meio depois, em Petrolina, eu participava de um curso que não serve pra porra nenhuma, mas seu rei mandou e a gente participa, contrariada, um curso agendado para a semana anterior à semana da folia de Momo, uma completa sandice. Cheguei em casa aborrecida, numa terça-feira aborrecida, pensando nas extraordinárias prévias carnavalescas do Recife, doida pelo sábado de Zé Pereira, cheguei, tomei banho e dormi. Sonhei com meu pai. Sonhei que estava de saída da escola, já na porta, a secretária me chamava, afobada, pra eu atender o telefone, que era meu pai. Eu ficava muito surpresa porque ele estava morto no sonho, mas me telefonava, ele me dizia assim: 'Adriana, eu quero que você venha pra casa'. Essas ordens eram muito a cara do meu pai, ele mandava muito, eu quero que você faça isso e aquilo, eu desobedecia, me ferrava, pra depois confirmar que ele tinha toda a razão e todo o direito de mandar em mim. Ele estava sempre muito certo. No sonho, eu perguntei a ele: 'onde tu tá, painho?', 'Estou com sua mãe'. Eu disse 'que bom, pai, porque eu vou pra Recife sexta-feira, depois do curso, pro carnaval, a gente vai se ver'. Ele não quis saber de nada, ordenou, duro: 'Adriana, eu quero que você venha pra casa agora'. Acordei com aquele nó na goela, que desata quando a gente chora. No dia seguinte, quarta-feira, contei o sonho pro Serginho, meu amigo de Campina Grande, ele me olhou com aquela cara de homem bom, que ele sempre teve, me olhou e perguntou: ' e você não vai pra casa não, é?'. Foi o que bastou. Agarrei a bolsa, corri pra rodoviária, até hoje meu chefe espera um esclarecimento pra aquela saída tempestuosa, inexplicada, comprei passagem pra logo mais à noite, arrumei a mochila, me enfiei no ônibus às 19 horas, botei os pés em Recife às 7 horas da manhã do outro dia, minha mãe morreu em casa, dormindo, no mesmíssimo dia, quinta-feira, 6 de fevereiro, à noite, pouco depois das 22 horas. A vida seguiu, a vida sempre segue. Eu é que nunca mais me consolei. Tem hora que sangra.
A crônica de hoje me machucou um tanto, me deu um cansaço por dentro, uma vontade de madornar. Vou descansar o esqueleto, cochilar, pegar no sono. Nossa Senhora do Bom Bofe me conceda, quando eu estiver no ponto, a experiência subjetiva de teor manifesto, de sonhar um sonho possível, um sonho erótico-pornô do bom, com o Javier Bardem ('já dei meia volta ao mundo, levitando de tesão, tanto gozo e sussurro, já impressos no colchão'), que é pra eu gemer sem sentir dor, nem receio. O marido foi trabalhar, os cachorros não sabem do que se trata, permaneço essa que sou, uma mulher do lar, quase direita, acima de qualquer suspeita. "Eu criaria juízo, se alguém me dissesse o que ele come".

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Know-how needed

Moro numa cidade cheia de ritmos, que sobe e que desce ao som da maré, ela canta, ela dança, ela toca, ela vibra. Meu rincão é o paraíso na terra, não me interessa sair daqui para Nova York, para Milão, para Dubai, nem para a cidade-luz, minha Paris dos sonhos de qualquer um, que conheço como a palma da mão, só de ouvir falar. Quem dispõe de olhos e de ouvidos atentos, como os meus, cruza os sete mares sem sair do lugar. Só deixo o meu Rio de Janeiro de todos os santos, inclusive do meu São Sebastião, no último pau-de-arara, para morrer em Olinda, isso Deus pesando meus pecados bem pesados, e decidindo, em Sua infinita bondade e misericórdia, que eu mereço o merecimento. A cidade do Rio de Janeiro dista 174 quilômetros de onde resido. Isso faz toda a grande diferença. Tenho pra mim que as pessoas que sabem resolver tudo como ninguém, todos os especialistas do que existe nesse mundo véi sem porteira, essas pessoas ficaram todas pela beira da praia de Copacabana e de Ipanema, andando pela praia até o Leblon. Deve ser vontade de topar com Lígia, ou com o velho Chico, incógnito, disfarçado de Tom Jobim, numa caminhada ao entardecer. Topar com o velho Chico é encontrar uma agulha num palheiro, Chico prefere Paris.
Por incrível que pareça, o tema da crônica de hoje é know-how. Ou falta de. A falta de conhecimento operacional das coisas não chega a ser uma calamidade, desde que bem acompanhada de um chope, pra distrair. Eu estou numa idade em que tudo é muito importante, mas nada é tão importante assim. Como diria um colega paraibano, 'minha amiga, eu quero é prazo'. Quando nos mudamos pra cá, nosso primeiro desafio foi achar um abençoado que consertasse uma descarga de banheiro. Recebemos três especialistas, na ocasião, um em cada dia, cada um diagnosticando a seu modo o problema sem solução. Recomendaram-nos um quarto consertador de descarga, o Fusquinha, um cara boa praça, Fusquinha porque o nome dele é Almir Rogério, igual ao nome do cantor do sucesso Fuscão Preto, você é feito de aço, etc. Fusquinha desvendou o mistério da descarga quebrada, fez o reparo sem cobrar uma fortuna... E morreu. Fusquinha dirigia um fusca jurássico, sofreu um acidente na estrada, indo não sei pra onde, partiu dessa pra melhor. Eu não acho que Fusquinha deixou de existir, pra virar purpurina, porque eu acho que a gente não morre nunca. Preciso só de uns esclarecimentos por parte da minha irmã Isis, especialista nos assuntos do além, uma encarnada que transita entre os dois mundos com a facilidade de quem vai na venda comprar uma lata de goiabada e volta já, preciso saber dela se ele ainda é, no andar de cima, o cara competente que o irretocável serviço no nosso banheiro nos revelou, cá embaixo, entre os meros mortais. O trem desunera, em qualquer cômodo do nosso lar, e é tiro e queda, Ronaldo se lembra do Fusquinha, faz um comentário elogioso, emocionado, eleva a Deus uma prece, e a vida segue, meia-boca.
Trouxemos no caminhão, eu e Ronaldo, de Recife e de Friburgo, respectivamente, a voltagem de Friburgo também é 220, uma média de doze eletrodomésticos que nos espiavam das caixas, rindo-se da gente, pois aqui a voltagem é 110. Conversando com os vizinhos, aprendemos que o sujeito pode mexer na voltagem de um pedaço da casa a seu bel-prazer, e foi isso mesmo que fizemos. Depois de muita peleja, Fernando, funcionário da Engeluz, mudou a voltagem das tomadas da cozinha. Comemoramos a data todo ano, juntamente com o aniversário de casamento. Há duas datas comemorativas relativas ao fato, vocês entenderão por quê. Ocorre que a torneira da pia da cozinha estava numa altura impossível da pessoa lavar um prato sem se molhar, da franja até o dedão do pé, a pessoa trazia o xampu e já saía da cozinha com a louça asseada e de banho tomado. Meu ditoso marido teve a brilhante ideia de mexer na altura da torneira da pia da cozinha. Fusquinha, de uns tempos pra cá, presta assistência a São Pedro, é sabido. In other words, fez-se a merda. O especialista da ocasião, pela graça divina esqueci a graça dele, meteu a marreta pra cima, estilhaçou uma grosa de azulejo, virou, mexeu, sacolejou, cimentou, reazulejou, e o balcão ficou um mimo. Ronaldo estava prestes a estourar o champanhe, quando eu alertei: 'not yet, sweetie!, a máquina de lavar quebrou. O acendimento automático do fogão quebrou. A batedeira, a sanduicheira e o liquidificador também. O refrigerador deu o último suspiro'. Teria sido cômico, se a gente não estivesse com todos os nervos à flor da pele. O especialista da ocasião conseguiu desligar todas as tomadas da cozinha e adjacências, nem 11, nem 12, nem 110, nem 220, nem mel nem cabaça, tudo em greve, debaixo da argamassa e dos azulejos reluzentes. Num sábado à tarde. O especialista da ocasião, àquela hora, já estava no bar, gastando com salaminho, cerveja e mulher, a grana preta que levou da gente. O mais extraordinário é que o especialista da ocasião ficou subitamente incomunicável. Fernando da Engeluz retornou de novo, o bom filho à casa torna de novo, na segunda-feira, pra fazer seu serviço de novo, e cobrar de novo, que ele é bom, mas não é besta. É aí que meu coraçãozinho encolhe, vira uma uva-isabel. Um acontecimento desse, uma hora dessa, carrega meu marido pra fazer companhia a Fusquinha, eu fico viúva de pai e mãe, abusando do pretinho básico, que, pelo menos, me cai bem como uma luva.
Há ignorâncias com as quais a gente lida muito mais levemente, entretanto. São as atitudes sem o menor vestígio de technical expertise, mas que não provocam desastre, nem dor, nem sofrimento, nem rombo na conta bancária, nem processo nas pequenas causas. Aquelas bem intencionadas, bonitinhas, ingênuas até, enternecedoras, comuns aqui na região. Ronaldo e eu somos duas formiguinhas fora de forma. Digo isso assim, sem receio, porque a cardiologista dele não sabe do meu blog, nunca vai ler o que ora lhes confidencio. Temos um trato. Pelo menos uma vez por semana, chova ou faça sol, saímos em busca de um novo cappuccino, de uma nova torta, de um lugar diferente pra gente adoçar o lábio e a nossa relação. A gente se lambuza de açúcar, de pôr-de-sol e de poesia, e volta pra casa feliz de ainda não estar no ponto de visitar o amigo Fusquinha. Outro dia fomos atendidos por um veadinho muito simpático, efusivo, num bistrô aqui perto. Eu não tenho um tostão de preconceito, quem me conhece sabe. Tenho tio veado, primo veado, sobrinho veado, amigo veado, ex-chefe veado, cabeleireiro veado, médico veado, aluno veado, vizinho veado, ex-namorado veado, enfim, adoro viver cercada de veado, amo e respeito cada um deles, mas são veados, que se há de fazer? Se o atendente fosse gordo, eu assinalaria um veadinho gordinho. Ou gordo, ou gordão, ou bola, ou bujão, ou rolha de poço, ou moby dick, dependendo da circunferência. Sofro bullying desde o berçario, e sobrevivo, achando que é coisa pouca. Sobrevivo pra contar a história. Pois muito bem, o tal balconista era falante, afetado, já se aproximou assim: 'o que o distinto casal vai escolher hoje? Temos torta crocante, a famosa torta alemã e, ali, à direita, um sublime cheesecake!' Ronaldo optou pela famosa torta alemã, controlando, dentro das possibilidades, a gargalhada. 'A senhora, o que vai querer?'... Eu olhei pra esquerda, vi um bolo lindo, fiquei com água na boca, perguntei, apontando: 'aquele é de chocolate?'. Ele confirmou, balançando a cabeça. Aí eu fiz a pergunta que ele temia: 'o recheio e a cobertura são de quê?' . Ele respondeu: 'essa torta é suprema'. Eu fiquei esperando. Ele acrescentou: 'deliciosa'. Depois: 'muito suculenta'. Depois: 'a senhora não vai se arrepender'. Finalmente: 'fantástica'. Eu tive de pedir uma fatia, ligeiro, virar as costas e explodir na risada. Sentei-me à mesa, frouxa de rir, não conseguia parar. Ronaldo achou pouco e disparou: 'olha, ela tá rindo de você!'. Pra quê? Ele me olhou, querendo saber se havia algum problema, quanto mais ele falava, mais eu ria, fiquei repetindo 'a torta é muito boa, meu filho,e eu não tô rindo de você de jeito nenhum!'. Fui respirando devagar, pra me recompor, mas o cara se aproximou da mesa, me encarou e encerrou o assunto: 'é mesmo esplêndida, não é, senhora?'. Minha gente, eu ri até chegar em casa, o bichinho não entendeu nada, aquilo é que é vestir a camisa da empresa... Ele não conhecia um ingredientezinho sequer da bendita, mas vendeu o peixe, com os adjetivos que conhecia. Não sei de que é feita aquela maravilha, desconfio que nunca vou saber, mas é esplêêêêndida. Assunto encerrado.
Hoje cedo fomos ao mercado Princesa, buscar leite na promoção, e, só pra não perder o costume, batemos o ponto na lanchonete. Estudei a vitrine dos doces, me encantei com uma torta massa, perguntei pra moça: 'essa torta é de quê?'. A menina me lançou aquele olhar 43, meio de lado, já saindo, franziu a testa, ficou repetindo: 'é..., é..., é..., é..., é...', depois saiu da saia justa, muito antologicamente: 'é tipo assim um pé-de-moleque'. Ronaldo sentou pra não desabar no chão. De rir. Nem de pé-de-moleque essa moçada do sul entende, eu não sei de onde ela tirou essa resposta. Desisti, pedi duas empadas e dois cafés. A outra moça entregou as duas xícaras a Ronaldo, uma delas perfeitamente acomodada, a outra não parava no pires, o café derramou pra todo lado. Escolhi a limpinha, obviamente, 'Ronaldo, meu filho, que retardo é esse, isso é parkinson?'. Ele, delicado como a minha pele: 'Parkinson é o cacete, porra! Experimente ajustar essa porra dessa xícara nessa porra desse pires, vá!'. Humanamente impossível, de fato. Eram as duas peças, a xícara e o pires, de dois conjuntos de louça distintos!! Mais risadas incontidas, dois fígados desopilados, beijos na boca apaixonados e assunto encerrado.

Para minhas best friends Adriana, Renata e Jaque. Sem vocês, o blog perderia a razão de ser.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Aliança

Os motes amontoam-se dentro da minha cachola, cada dia é dia de uma boa ideia para a crônica que vai inscrever meu nome no mármore da calçada da fama. Adriana Ninguém, de uma vez por todas, agora e para além da eternidade, no rol dos imortais contadores de historinha pra boi dormir, diga aí. Toda hora eu penso que a hora chegou, quem me vê debruçada sobre o maldito teclado desse maldito computador, sim, meus sete venerados seguidores, mil vezes maldito, porque não existe entre os vivos e os mortos uma pessoa que goste dessa invenção do capeta menos do que eu, quem me vê nesse estado de absoluta contrição e isolamento de marido e de cachorro, jura que a hora chegou. Três ou quatro linhas depois de iniciado o embate, abro as pernas e entrego os pontos, beijo a lona, derrotada. O mais extraordinário do ser humano é o reconhecimento do fracasso. Fracassar com dignidade é uma arte. Perco de novo para Rubem Braga, o maior de todos os maiores. Quem não tem um livro do Rubem Braga, pode até achar que já leu a história mais bonita do mundo, contada do modo mais bonito que uma história pode ser contada, mas não leu. O pobretão infeliz que desconhece Rubem Braga, coitado, no meu modo de ver a vida, ainda nem abriu os olhinhos para a beleza da vida. Existem três assuntos pululando no meu juízo, mas eu não sei por quais cargas d’água, minha língua está coçando para eu lhes revelar, em versão compacta, os melhores lances daquele que foi o casamento do século, o meu. Desconfio que são os piores momentos, não sei, porque se a gente considerar o item superação dos tais percalços matrimoniais, o pior virou melhor, sem sombra de dúvida. Coloquemos assim: intercorrências da cerimônia, relatadas para os filhos, os filhos dos filhos, seus netos e bisnetos, até onde e quando Deus quiser. Não tenho um herdeiro a quem legar a minha miséria, como diria Machado, que, para o meu paladar, não é maior que Rubem Braga, portanto, essa conversa não vai mesmo muito adiante, o que me deixa tranquila e calma para falhar no melhor estilo, se for o caso.
As bodas da nossa querida sobrinha Erika aconteceram em três dias, feito festa de interior, quinta, sexta e sábado passados, lá em Jacarepaguá, onde a menina nasceu, cresceu, enjoou da boneca, tomou corpo, aprendeu para que servem os garotos, consentiu que um deles fizesse do seu coração gato e sapato, namorou com ele pra mais de dez anos, noivou, perdeu o tino e casou-se três vezes, que é pro conúbio vingar na vera e vicejar. Deus permita. Esse cabra tá muito do amarrado, em nome de Jesus. Amém. Se eles não se amam, é melhor internar ambos os dois na clínica psiquiátrica do bairro, três dias de enlace sem amor, é coisa pra doido varrido. O que eu sei é que ela ama muito o meu marido, seu dindo querido, e o meu marido a ama muito, noutras palavras, não me restou alternativa, chorei até ficar com dó de mim. Não procurei esconder, todos viram. Deixei que as águas invadissem meu rosto, as águas da memória me arrastaram para trás, para o miolo do dia 19 de abril de 2009, quando Ronaldão, meu noivo, dentro de todos os conformes como manda o figurino, disse 'aceito', perante a família e os poucos amigos que prestigiaram o evento. Não sei qual foi o santo que baixou nos ausentes injustificados, só sei que muitos amigos deixaram de comparecer, sem jamais pronunciar uma palavra sequer depois, a respeito da ausência tão profundamente sentida pela noiva. Alguns membros do clã dos Oliveira tinham, certamente, compromissos muito mais importantes na data em questão, não deram as caras. Não guardo mágoa nem rancor algum, mas não tenho amnésia.
Eu me casei pela manhã, numa manhã de sol do Recife, em Campo Grande, na igreja onde me batizaram, dentro de um vestido longo branquíssimo, um tomara-que-caia simplesinho, muito clean, entretecido nas costas, feito um espartilho. Simplesinha é a mãe de quem idealizou aquela trança. Eu, desatinada, atrasada como o diabo, tentando acomodar a banha dentro de um corselete. Caralho. Visualize a imagem, se for capaz. Não sou muito fã de igreja não, mas Ronaldo queria porque queria me fazer pagar o mico, eu concordei, pensando que, do contrário, ele poderia me escapar, subir a serra com mais de mil, para nunca, nunca mais. Esse vestido do demo nem foi escolha minha, levei Nilde, minha irmã, no dia de alugar a roupa, ela topou com o vestido e endoidou. O amaldiçoado era tão difícil de ajustar no corpo, ainda mais no meu, com tamanho volume, peito pra dar, vender e emprestar, que eu tive de pagar uma grana preta pra uma quenga duma costureira ficar me olhando nas provas, pra ver se a quenga aprendia a manobrar a porra da tira que cruzava até virar um laço no alto da bunda. A quenga não aprendeu porríssima nenhuma, mas guardou segredo até a hora de me vestir. O vestido não parou no lugar certo nem com a morrinha, eu fiquei parecendo uma cafetina dona de cabaré, as tetas praticamente saltando do tomara-que-caia-cai-a-qualquer-momento, nem sei como o padre concordou com a bênção. O meu cabeleireiro de muitos anos tava drogado, aposto meu salário, me fez um penteado o boi lambeu a testa , a visão do umbral, eu fiquei com uma franja colada na cabeça, até hoje eu pago pra saber qual foi o azeite que aquele filho da puta usou no meu cabelo. Meu juízo foi esquentando, eu rodei minha baiana, a anágua desprendeu-se, a quenga da costureira ajeitou lá como pode, na pressa, o padre veado dando ataque, por causa do atraso, o povo me ligando no celular, eu abri um berreiro, a maquiadora surtou, fez uma meia-sola ligeira por cima do massapê de base, blush e batom, amar é um deserto e seus tremores. Ninguém sabe o que eu sofri. Desaguei o oceano. Cheguei esbaforida na igreja, respirei fundo, com Ronaldo seguro debaixo do braço, caminhei seis quilômetros até o altar. Todo o vivido até ali não passara de um sonho mau. Quisera. O músico, um cara bastante jovem e talentoso com quem combinei todo o repertório da cerimônia e da recepção, todas as canções invariavelmente pagãs, selecionadas e ensaiadas exaustivamente, nos mínimos acordes, o músico resolveu me fazer uma surpresinha. 98,6% dessa juventude é crente, são crentes, sei não, matei essa aula, tem mais crente que gente no meu pedaço, e não é que eu me esqueci desse  pequeno detalhe? Lá pelas tantas, o sujeito atacou de hino evangélico. Fiquei paralisada, com aquela cara de anteontem, meu queixo rolou passadeira abaixo, não entendi patavinas. Tenho horror a hino. Se eu pudesse, despachava todos os cantores e cantoras de hino para o céu, que é o seu lugar. Tive ganas de estrangular o sacana. Não bastasse o exposto, na saída da capela, uma das anáguas escorregou, foi bater no meu joelho, eu empaquei, feito uma mula manca, meu Deus, uma cena dantesca. Mãos diversas por baixo da minha saia, puxa daqui, suspende dali, só me lembro da cegueira, seguida da explosão: arranca esse cacete dessa saia e joga na casa do cão, porra! Em dois segundos e meio o pano tinha desaparecido da minha vista, eu estava recomposta, devidamente sóbria, clássica, sofisticada e elegante, a caminho do salão de festa. Vocês acreditam que o cretino do padre, em nenhum instante, mencionou o forno que era a bexiga do salão de festa? A visita ao espaço ocorrera à noite, à noite os gatos são pardos. À noite... esfria. Meu amigo, é o seguinte: uma hora da tarde, o sol derretendo os telhados e a humanidade inteira, sem piedade, pense num calor de fornalha no subsolo do inferno. Eu com o dom da adivinhação, teria distribuído um lote de abanos na entrada. Entrei e senti a lufada pela proa, aquele bafo quente. Um palavrão bem mandado, no momento exato, acalma, relaxa, te coloca no eixo, dá até sono. Puta que o pariu. Os convidados suavam do suor escorrer face abaixo, as gotículas encharcando os trajes de domingo. Da miríade de refrigerantes e sucos da fruta estocados, não restou um pra fazer um chá. Ah, faltou contar a cereja do bolo. Na hora de sorrir para a foto e partir a primeira fatia, quando eu baixei a vista, tinha uma emenda maior do que eu, uma cicatriz no glacê, na cobertura, sei lá o nome daquele trem. Deduzi que a porra do bolo tinha rachado no trajeto, a galera do bufê certamente se virou nos trinta, improvisou um reboco de açúcar, cimentou na carreira, mas ficou o risco, de alto a baixo. Eu juro por minha mãe mortinha, meu sangue fugiu, eu me senti desfalecer. Mostrei a Ronaldo, ele me disse assim: o que é que a gente pode fazer agora, minha filha? Sorria para a câmera! Puta que o pariu. De novo. Até hoje pago conta feita para o dia 19 de abril de 2009 transcorrer sem quaisquer transtornos ou sobressaltos, juro pela saúde do meu marido, que, aliás, dividiu comigo as despesas. A brincadeira não saiu barato. Teve uma hora que eu parei de somar, com medo de desistir.
Do dia 19 de abril de 2009, ficaram inesquecíveis lembranças de amor pra duzentos anos, garanto-lhes. Os presentes ao nosso casório nos deram de presente a singela discrição. Minha comovida gratidão. Comentou-se muito foi a felicidade em cada canto, a emoção do casal, o júbilo, a luz, o transbordamento de carinho. De fato, erámos um par mais que perfeito. Somos. Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama ainda queima, nada foi em vão. A fé no que virá e a alegria de poder olhar pra trás e ver que voltaria com você, de novo, a VIVER, nesse imenso salão. Entrou pela perna do pinto, saiu pela perna do pato, quem quiser, conte mais quatro.

sábado, 5 de novembro de 2011

Bicho-preguiça

E o blog?’, indagou o colega ontem, no Portinho Boêmio. Achei engraçado. Aonde a vaca vai, o boi vai atrás. De uns tempos pra cá, aonde vou, vai a pergunta. Em 87,9% das ocasiões, o sujeito não faz a mínima ideia do que eu apito aqui no espacinho de que me utilizo para as mal traçadas, o colega em questão, só pra citar um exemplo, nunca leu uma linhazinha sequer, tadinha de mim, nem vai ler, mas acho simpático isso do sujeito substituir ‘como vai?’ por ‘e o blog?’, quando o sujeito descobre que a interlocutora do momento criou um blog. O sujeito ouve o galo cantar num sei pra que lado, pega o bonde andando e manda ver: 'e o blog?', quer coisa mais gentil? O blog vai devagar quase parando, porque é do meu feitio realizar as coisas como quem desiste, mas não é por falta de assunto, as nanopartículas de acaso se multiplicam numa velocidade alarmante. A questão é que eu morro de preguiça. Preguiça e vista cansada. Quando eu morava em Petrolina, uma amiga do coração, a Bet, uma professora de Português muito da porreta, que cruzou meu caminho feito um raio, mas deixou uma lasca da blusa na minha cerca, digo isso porque nunca me esqueci das palavras dela, a Bet, certa feita, me disse que eu não era poeta por causa justamente dessa minha indulgência pessoal e intransferível, do meu laissez faire, dessa minha maldita indisciplina, vê quanta delicadeza. Indisciplina é ótimo. Outra pessoa da área, o gigante Bruno, também professor de Português lá do instituto, também tatuado na minha história, me assegurou semana passada, com a veemência dos seus dois metros e pouco, quem conhece o Bruno sabe que o cabra é grande, o Bruno asseverou, perante testemunhas várias, o meu talento para contar causo. Pelo bem pouquinho que entendi, dava até pra eu ser cronista, se quisesse. Fiquei exausta, só de ouvir. Dia desses minha sobrinha, num papo bom de praia, uma sobrinha minha que é doutora das psicologia, conhecedora dos subterrâneos das chagas do espírito, protestava, inconformada, pelo fato de eu empurrar meu mestrado com a barriga, sempre pra depois de amanhã à tarde, logo eu, uma criatura tão preparada. Tenho pensado cá com as sinhaninhas e a fileira de botões, que a humanidade inteira anda meio enganada com a cor da chita. Nem em dia de festa, eu cheguei perto de ser essa brastemp toda. Menina ainda, estudando mais ou menos mais pra menos, num colégio particular, um belo dia eu tive de ser das melhores, do contrário, já viu, perderia a bolsa. O dinheiro escasseou tanto na época, que era doce e se acabou-se. Ou a menina se dedicava, espremia os miolos até a última gota, ou virava aluna da rede pública, fadada ao fundo do poço. O fracasso profissional fora devidamente vaticinado pelos membros da família, viria a galope, isso se me sobreviesse um ofício qualquer de garçonete ou balconista, depois da desinstrução formal na escola do estado. É foda, mas é fato. Nessa hora eu me lembro da molecada desvendando os mistérios das letras e dos sons, sob os cuidados de Tia Ada, minha irmã, professora do estado de Pernambuco desde que o mundo é mundo, a maior alfabetizadora do Brasil. Acho que Tia Ada está muito bem, obrigada, na companhia de tantas outras professoras que revolucionam e dignificam o ensino público, entre elas eu, a imodesta. Cresci nesse ambiente 9.5, com essa obrigação odiosa, hedionda, de nunca deixar a peteca cair, de entrar de primeira numa universidade gratuita, de trabalhar cedo, de trabalhar de rachar, de ter grana pro meu sustento, etc, fui aprendendo a ler e a escrever, na língua pátria e na outra, sempre com a corda no pescoço, acumulava logo uma penca de 9.7, que era mesmo pra me livrar da aporrinhação de precisar consumir demais meus neurônios com assunto chato. Acometeu-me um esgotamento físico e mental que entrou pros anais de medicina como doença degenerativa incurável.
Há quem perca seu precioso tempo especulando, formulando hipóteses para essa minha falta de foco e de empreendedorismo, para a minha indolência acadêmica, para o meu evidente desinteresse pela produção de um gibi, que dirá de um livro, para a minha aversão a qualquer diploma, bem na linha “certidão é papel que não preciso não”. Minha irmã mais velha sofre desesperadamente, a pobrezinha, perdida em conjecturas. Eu mesma já gastei uma preciosa meia hora da vida nessa peleja de buscar uma razão. Quando a gente nasce, cresce, se reproduz e morre, isso tudo no meio de gente hiper, ultra, mega, superpoderosa, gente filha de Dona Sinhá, o meu caso, a gente pode ficar com medo de falhar em público, é aquele velho fantasma do julgamento alheio, de falhar diante de si mesmo, a gente não desenvolve nervo para lidar com a derrota, para elaborar o fracasso, compreender a marcha, sacudir a poeira e tocar em frente. Logo, a gente escolhe não tentar. Pode ser. Quando a gente nasce, cresce, se reproduz e morre, isso tudo na pressão de ser precoce, de ser adulta antes da hora, de ser  os pentelhos de Jane Fonda, a melhor, custe o que custar, o raciocínio desembesta, a inteligência emocional tropeça nos cascos, não acompanha, cristaliza-se ali, infantil, temerosa, desestruturada. Pode ser. Quando a gente nasce, cresce, se reproduz e morre, isso tudo resultante de um óvulo bem maduro e de um espermatozóide idem, a raspa do tacho, a mãe achando que entrou na menopausa, sem sonhar que está gestando, de novo, pela oitava ou nona vez, sei lá, há controvérsias, outra criança para o oco do mundo, a gente já vai se formando geneticamente predisposta à lerdeza, pequerrucha inerte, as celulazinhas sempre preferindo o repouso. Pode ser. Eu não sei de nada, sei é que aposto todas as fichas na opção preguiça sete estrelas com vadiagem autenticada e vale-vagabundagem com pedigree. “Preguiça que eu tive sempre de escrever para a família e de mandar contar pra casa que esse mundo é uma maravilha”. Faço a louvação do que deve ser louvado, na minha opinião, o mínimo esforço. Pra não suar, que eu adoro andar perfumada. “A preguiça não é de hoje, ela é desde quando se amarrava cachorro com linguiça”. Até onde meu entendimento alcança, meu jeitinho de ser e de viver não faz mal a ninguém, não maltrata um mosquito com tosse, ora bolas. Meus quatro leitores não têm pressa. Eles me amam assim. Espero.