Se eu fosse uma contribuinte em quem a pessoa pudesse, de
fato, confiar o rebento na véspera da viagem, aquele amigo de quem se compra um
carro de segunda mão sem cogitar vistoriar o calhambeque, minha gente, na boa,
se eu prestasse para alguma coisa besta nessa nada mole vida, tivera a minha
pobre alma atabalhoada um dedo mínimo de ambição desmedida, o biscuit de prateleira
de uma pretensão mais ancha e edificante, guardaria o meu bloquinho de notas
falsas todas as informações fundamentais
são mesmo os amores da gente do filme massa a que assisti anteontem, um
negócio de cinema. Dá um tratado, uma dissertação de mestrado, a madame querendo.
Tô fora. How else can I explain those rainbows when there is no rain? It’s magic.
Once you feel the magic, nobre e meiga senhorinha, colha a rosa de fogo insidioso
do destino, abrace a aurora inusitada, acolha o calor do mistério, sentindo só,
sinta o sol bater, the stars desert the
skies and rush to nestle in your eyes, it’s magic... Somente sinta, despojada
do ‘kit fode da ciência’ - seus valorosos
apetrechinhos de pesquisa. Porque não valho o que o gato enterra, deixo a
tarefa pesada de dissecar a película, a partir da ficha técnica, aprofundando
devagar o corte, blá-blá-blá, para quem se amarra nessas empreitadas, gosto é
feito nariz, isso para não grafar aqui um nome bem feio, “cu é lindo”, Dona Adélia é lúcida de doida, gosto é cada um
com o seu e acabou-se, quem quiser que vasculhe nome de artista, de diretor, o
raio que o parta, o sujeito tendo curiosidade e disposição, madame, esse
sujeito vai ler é de perder a pestana, para o bom entendedor meia palavra
basta, o que não falta no script é
sugestão de infinitos labirintos de leitura. Mais fatigada que um maratonista, músculos
em franca degenerescência, sabemos, estômago ulcerado, fígado podre, tristeza
sem pedigree, cem anos de solidão, escolho divagar, preciso urgentemente sonhar, sonhar um sonho mágico debutante, pelo que imploro me desculpem.
Era uma vez uma moça bonita de verdade na tela. Uma moça
bonita vivendo sem malícia, entre o querido diário e as calcinhas, o espaguete
e as aulinhas de literatura, os seus jovens dias de moça mais bonita. A moça curtia
Inglês, filme americano, crianças, a moça curtia, principalmente, escrever para
ninguém nunca perceber, claro, mas a moça se encantava mesmo era quando o
professor lhe dava alguma condição de imaginar as suas coisinhas íntimas
sossegada, uma raridade na realidade dos que esbanjam pedantismo de pesquisa. A
moça gostava muito dos meninos também, gostava para namorar o gato da sala
mesmo, como todo mundo, aquele beijo da menina da escola nem contava, a moça gostava,
claro, ou achava que gostava, nesses assuntos cardisplicentes (cardíacos e
displicentes), quem tem um pingo de juízo, sabemos, não se mete. A manhã sempre
vem, a manhã pode trazer alguém. Anjo tem halo, não sexo. Não é que trouxe,
menina? O primeiro amor é a impressão de morrer, cadê que a gente esquece. Uma história de amor igualzinha
às outras, dor de poesia, dor de prazer, dor de sofrer, dor de perder, uma
história de amor igualzinha às outras, tudo igual e diferente, alguém duvida? Duas
meninas num vagão, fundindo-se fodendo, comendo as carnes, as entranhas, o
coração uma da outra, a senhora nem se arrisque a ver, vai que a senhora
simpatiza, o diabo atenta, o tesão aumenta, virar sapata tá na moda, a homossexualidade campeia, grassa, alastra-se no dorso das colinas, é quase uma imposição, a arma na cabeça, orai e
vigiai, portanto, o inimigo espreita.
Azul é a cor mais quente é um filme robusto,
inúmeras, insondáveis portas e janelas abertas mar afora, amar adentro..., acessos sem taramelas, sem gelosias, pela graça
divina. Impossível calcular a raiz da emoção, de onde vai brotar o jorro do
peito. Minhas vísceras fêmeas revolveram-se porque a moça bonita aprendeu,
apesar de tudo, a sobreviver, a preservar-se, meu Deus, a gente precisa tanto ter coragem
para preservar, a todo custo, a própria consagrada natureza. Uma coragem de
bicho. Coragem de visitar-se, de percorrer os buracos mornos, salivados. Coragem de revogar-se. Coragem de saltar, sem sinal de rede para amortecer o baque. Coragem de trincar os dentes. Coragem de beirar a
loucura. Coragem de se humilhar, lamber o chão de estrelas, os astros que ela pisava, distraída, passas, deusa de fel e delícias, desatenta ao teu vigia... Humilhar-se, feito um cão
sarnento. Coragem de chorar as pitangas, chorar de entorpecer as artérias. Coragem
de partir, bem mamado, bem chumbado, atravessado, cambaleando num cordão, a vida sempre segue. Coragem intrínseca de enfrentar a audiência, afrontar a conferência internacional dos tontos de empáfia, para ser professora
de crianças.
De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.
Objeto de Amar
De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.
(Adélia Prado)