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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Tenda dos milagres

Estou de volta pro meu aconchego, trazendo, na mala, bastante saudade. Achava essa música muito da linda, depois tomei um abuso, que só vendo. Não podia ouvir Dominguinhos, a carinha mais deslavada, soltando aquela vozinha açucarada, no horário de propaganda política do safado do Joaquim Francisco, PFLista, PSDBista, cria de Arenista dos infernos, que que é isso, companheiro??,  lá na minha terra, isso em mil novecentos e guaraná de rolha, a campanha era para governador do meu glorioso Estado – o Leão do Norte, me lembro como se fosse ontem. Troquei de mal com Deus, com Alceu Valença, com Dominguinhos – artista direitista enviesado na minha estrábica mira, eu ficava fula da vida, uma besteira com pedigree, hoje canso de saber. Basta um dia atrás do outro, o intervalo de uma noite parda, o tapume do palanque vira um edema só, a casa da mãe Joana, vai adensando, dilatando o taco, acomoda rato, gato, cachorro e papagaio perneta, a política é a arte do possível, uma lástima. De volta pro aconchego, tadinha, não tem nada com a política, sobrevive de doçura, de ternura, de pura beleza, me alegro na hora de regressar, parece que vou mergulhar na felicidade sem fim, óbvio ululante que fiz as pazes com ela. A bem da verdade, a senhora bem que se embaraça no passo, pressinto, desde a primeira palavra escrevinhada. O ninho de passarinho, afinal, é carioca ou é pernambucano? É a estrada, minha amiga, é o meu lentíssimo caminhar. A tenda dos milagres estende a lona puída sobre o céu do meu destino insensato, here, there, any and everywhere. Prossigo, obstinada, intransigente, no encalço do apreço, farejo o coração de qualquer um, lançando laço, caçando tempo e espaço para o acolhedor abraço. Quando estou nos braços teus, sinto a vida descansar, quando estás nos braços meus, sinto o mundo bocejar... Aquela nuvem que passa lá em cima sou eu, mais o braseiro mambembe das fibras do meu regaço flamejante, assim seja.
Recife continua escandalosamente glamorosa, a incontestável soberana do frevo e do maracatu, de Jaboatão dos Guararapes até Olinda, passando por baixo de todas as pontes vestidas de gala, arrasou na indumentária de fim de ano. As luzes do Recife, dessa vez, são espelhos d’água, refletem a apaziguadora claridade sobre o tapete seda dos rios, ornamentam as esplendorosas tiaras suspensas sobre as corredeiras do Capibaribe e do Beberibe, a Duarte Coelho, a Maurício de Nassau, a Princesa Isabel, a Buarque de Macedo, a Ponte Velha da minha infância, trajeto obrigatório de volta para Candeias, as imponentes estruturas de ferro ancestral incandescente, tão familiares, súbito inéditas, todas eternizadas ali, ali para depois de 21 de dezembro, ih, transcendemos a data!, rá rá rá, para depois de mim e de ti, ali para sempre, vergando ao peso da mais bela e nobre História do Brasil. Pela primeira vez, sem entender a razão da delonga, coisas do mundo, minha nêga, fiz o passeio do Catamarã, aquele barco que leva o turista para ver a cidade do ponto-de-vista do peixe, uma travessia inesquecível, um deslumbramento para a retina fatigada. Esse lugar é uma maravilha, mas, como é que faz pra sair da ilha? Pela ponte! Aprenda uma coisa, minha senhora: uma coisa é a senhora macerar seus insípidos dias, corroendo os cascos por cima do solo da ponte, outra coisa é a senhora atravessar o arco-íris da vida, velejando por baixo do abrigo dessa mesmíssima ponte, a senhora pode confiar.
Levei uma mochila, trouxe duas para casa, inúmeros fuxicos cosidos à mão, muito bem escolhidos, dobrados com jeito, guardados com muito gosto, no fundo do saco, fios de tecido de todas as fragrâncias, retalhos de desfiar sem pressa, doce de comer mais demorado, para não enfarar, muito menos empanzinar meus simpáticos leitores, Santa Rita dos Impossíveis me defenda do inconveniente, nem pensar. Por falar em impossibilidade, esse dispositivo desengonçado e extravagante, essa engenhoca maluca que, na minha modesta opinião, se não deu pé, vai dar, tudo dependendo do seu grau de intimidade com a esperança, essa destrambelhada. Questão de tempo, questão de fé. Pretendo despedir-me de 2012 com o mesmo riso frouxo, com a mesma irrefreável alegria, que perde o sentido, agoniza, mas não morre, é cedo. O sobrenatural me surpreendeu com um inesperado encontro, uma experiência mítica, uma surrealidade no chão da praça. Na véspera do meu retorno ao Rio, esbarrei numa criatura tão querida, no Shopping Center Recife frango com trocentos mil encarnados dentro, um negócio inacreditável, entrei no Shopping e esbarrei na minha irmã. Somos duas irmãs de sangue, suor, amor e lágrimas, apartadas por um passado de agruras que ficou supurando, fratura exposta, somos pessoas de quem a lâmina da vida não teve compaixão, fatiou as vísceras, a carne nua, já sofremos tanto, nós já sofremos tanto, que atraímo-nos, feito um ímã, do nada florescemos, plenamente, uma diante da outra, simples assim, por conta do acaso de Santa Rita, para uma trégua, um afago, um amoroso abraço, no meio da multidão. Tenho para mim que Jesus Cristo nasceu foi naquele preci(o)so instante. Um brinde à vida, este privilégio absoluto.


Para Lili, minha irmã, pela feliz coincidência.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Valentim's Day

Amanhã é 16 de dezembro, aniversário natalício de Valentim de Oliveira Barroso, meu caçulinha adorado.Três anos de festa em casa, meu cachorro nasceu para fazer a gente feliz, é isso. Impossível esquecer o narigão torcido da minha valorosa ex-professora de canto, ainda entre as minhas relações, rá rá rá, Itália querida, cada vez que declaro ao mar, ao clarão da lua, à terra e às estrelas do meu céu de estrelas, como é grande o meu amor por você, minha salsichinha jabu, jabu de jabuticaba, meu cachorro é afrodescendente, rá rá rá, como eu, a coisa mais linda de se ver e ter. A minha ex-professora de canto é uma flor de pessoa com esse gravíssimo defeito de fábrica, tirando eu, ninguém mais é perfeito, rá rá rá, releve, coração de melão, releve. Agora falando sério, minha senhora, a senhora também, bem que aproximou simetricamente as sobrancelhas, no súbito franzir da testa ultrajada, trejeito que não lhe fica nada harmonioso, a propósito, não faça careta, minha senhora, sou capitã do time dos que preferem bicho a bicho-homem, no mais das vezes, tudo dependendo do apelo da ocasião. Não troco meu cachorro por uma criança pobre, mas nem que a vaca tussa sangue pisado. Meu saquinho arrastando no chão encerado, no que se refere à questão, rá rá rá, do acolhimento das idiossincrasias coletivas e individuais, venho lubrificando tanto a minha tolerância zero, de uns tempos para cá, acomodando, assim, assado e cozinhado, no sofá da minha sala, o ‘uterinamente’ diverso de mim, vive la différence tem limite!, tenho sido tão hímen complacente, que sonho acordada com a manhã da compreensão universal, meu semelhante entenderá, sooner or later, na encarnação vigente ou na próxima, que criança e cachorro são departamentos completamente distintos, apesar das idênticas desproteção e inocência, desproteção e inocência características de ambas as espécies. Meninos e caninos são grãos superiores, convivem recíprocos, profundamente identificados um com o outro, dentro do mesmo patamar mais elevado da existência de animal e gente e pedra e parafuso. Entretanto, ninguém, nunca, jamais, em tempo algum, deixará de amar um cão para amar um filho, assim como é puro e verdadeiro que o sujeito, fazendo bom uso das atribuições da própria sã consciência, jamais deixará de amar um filho para amar um cão, não se trata de excluir, nem de substituir, digníssimo leitor, a sua colher não pode azedar o pirão de amor do outro, não interfira na decisão de amor do outro, a particular decisão do quê, de quem, de onde, de quando, de como e do quanto amar, que um cristão possa tomar na vida. É uma lição tão simples, que embasbaca: abrangei, multiplicai. Percebe? Ou precisa que eu desenhe?
Houve um momento, na minha difícil batalha para melhorar a voz, nem pense que cantar é um mar de rosas, cantar direito exige exercício, disciplina, é punk, tanto que pelejo faz uma era, estou é longe ainda de aprender, sigo cantando errado porque tenho de estar envolvida com um atividade de que goste tanto quanto gosto de ensinar, para o dia do lenço branco, flor de ir embora é uma flor que se alimenta do que a gente chora, já esteve tão longe a hora da despedida da sala de aula, por incrível que pareça, cochilei no recreio, suponho, esse adeus, de repente, acompanha todos os meus hesitantes passos agora, não sei mais mentir, qualquer extrema alegria ocasional, e são muitas, praticamente diárias, admito, na minha profissão, qualquer entusiasmo é sobrepujado pelo desejo intenso de parar. Conto com a sorte de contar com alunos fabulosos, sensíveis a ponto de perdoar a exaustão da professorinha, são tão parceiros, incansáveis colaboradores, da senhora duvidar, minha senhora, da senhora duvidar. Meus vinte e seis anos de dedicação exclusiva à bela causa, acabaram comigo, às vezes sinto que exagerei na dose, falta gás para fechar o ciclo com alguma possibilidade de medalha, uma pena.
Houve um momento em que não dispúnhamos de espaço físico para o canto. Itália ficou sem teto, tadinha. Espaço físico é feito hemorragia de sangue? Sei lá, deixa como está. Sugeri que os encontros semanais acontecessem na minha casa, fiquei contente de oferecer meu modesto lar para o aconchego da música, sou devota de Nossa Senhora, de São Francisco de Assis... e do violão. Animada com farofa, pinto no lixo, expliquei para a minha ex-professora que Valentim era muito novo ainda, que a veterinária tinha me orientado bem certinho sobre como uma visita deveria se comportar com ele, aproveito o ensejo para vender esse peixe, se a senhora precisa de uma veterinária com pedigree, anote aí, o nome dela é Érica, Drª Érica Toledo, pode confiar. Quase escrevo uma cartilha, de tanto que expliquei, minha senhora: quando entrar, Itália, não encare o cão, deixe que ele vai latir até cansar, não faça gracinha, não chame a atenção dele, faça de conta que ele não existe, não chegue muito perto de mim, ele pode achar que é uma ameaça, pode avançar, não tem mistério, Itália, é chegar, ignorá-lo, a gente tem aula numa boa, ele vai se acostumar com você, não vai haver problema, logo, logo, vocês vão ficar amigos, você vai ver. Valentim precisava de indiferença, quanta nobreza, Itália não viu. Nem Itália é indiferente a cachorro, a senhora veja bem. O discurso não surtiu o efeito esperado: “Adriana, querida, não irei porque você está trocando as bolas. Seu cachorro precisa ser adestrado, eu não”. Cerveja o que a vida é. De tudo se faz crônica. E canção.

Para você, Valentim do meu coração.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Gols de placa

Ai de mim, se começo a não achar mais graça... Ano passado, em dezembro, escrevi uma historinha fosca, sem muita projeção, para meia dúzia mais dois gatos pingados, chama-se Rebento a cria natalina de 2011, um textículo acanhado, coitadinho, baços olhinhos baixos, dedinho timorato da prosa de que tanto gosto, a senhora interessando-se, não faça cerimônia, sinta-se na varanda da sua sogra, que é feito mamãe para a senhora, rá rá rá, use e abuse, vai lhe custar três minutos do já esgarçado tempo, se muito, e, repare bem, absolutamente nenhum tostão, é dezembro, mas é grátis, a senhora pode confiar. Dezembro é fogo na roupa... velha. Trajes inéditos, depilação de verão, limpeza de pele, esteticista, salão de beleza, compras desenfreadas (todo mundo tem dinheiro, menos eu...), trocas equivocadas, sempre pelo artigo ainda menos desejado, a gente nunca acerta, novos e reprisados amigos e inimigos ocultos e declaradíssimos, o megafone na praça: Amo tu, tatu! Te odeio inteira, vadia! Parto para cima, esmago esse teu miolo mole de minhoca com tosse, eu mais meu top rolo compressor quatro por quatro! E as confraternizações fêmeas férteis, então? Todo dia nasce a caçulinha, impressionante! A São Silvestre arranca, acelerada, é da minha esquina, ai ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde até que arde, yells the psychotic White Rabbit daquele filminho enjoado. A festa do trabalho, a festa do trabalho do marido, a festa da igreja (para quem ergueu seu templo fora de si), a festa da hidroginástica, a festa da padaria, a do condomínio... na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Meus oito leitores do ano passado, desocupados em edição extraordinária, que são uma categoria de gente muito competente e labradora, assaz atuante no mercado, nesse mês de pouca séria labuta e de muito faz-de-conta - ninguém me garanta que inaugura grandes empreendimentos aos quarenta e quatro do segundo tempo de dezembro, que é mentira que lorota boa – meus compenetrados, atarefadíssimos oito leitores perdigueiros, desde o ano passado, estando por aí, de bobeira, pela cidade do sol, engatem a ré só um tiquinho, releiam Rebento, aposto que não estão lembrados da croniquinha fraquinha de feição, pobrezinha de atrativo, um flashback modestamente indicado por mim, para o momento, convém recuar sem susto, e conferir.  
A questão é primeira série primária, I’m not in the mood for compassion, simples assim. Meu peito sofre, desapontado, estou chateada com farofa, nada me entristece mais que a premiação do mau caratismo ululante de que me cerco, mãos e pés atados, não tenho escapatória, isso é o tipo da coisa que mexe com as vísceras do contribuinte, contamina o sangue bom da pessoa, dá vontade de puxar a cordinha e saltar no próximo ponto, sinceramente. Curioso é que perdi a voz, ando afônica por opção, sobreveio-me um abatimento, uma catatonia, sei lá, hoje, para a senhora fazer uma ideia aproximada, deixei o trem da memória recente descarrilar, que se dane, desgovernado de más lembranças, fosso adentro, silêncio, por favor, escolho a palavra rouca, sem ruído, não quero mais piar um pio de pinto, não acho mais um alfinete a respeito de coisa alguma, ponto final, ando deveras preocupada com minha flor da pele, preciso higienizar e tratar as perebinhas íntimas e pessoais, deixar esse barco correr, sem tanta interferência, quem se importa? Se o malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto, só por malandragem. O malandro não sabe, entretanto. Decidi privilegiar dois assuntos maneiros e aderentes, emplastro no meu juízo, acontecimentos institucionais, dignos de publicação no site da escola e nos jornais de maior circulação do país, no meu ponto-de-vista, ai de mim, se começo a não achar mais graça.
Eu e minha parceira de todas as horas, Cibellita amiga daqui até a eternidade, fomos convidadas a participar, essa semana, sob a batuta do colega Maurecir, de um evento organizado pelos alunos do grêmio, salvo engano, um show de talentos, um intervalo poético-musical no meio do caminho das abomináveis avaliações de recuperação, um coquetel de cantoria para desopilar o fígado; colorido, perfumado encontro do verbo com o som e com o riso, desses encontros que integram, sem o distraído sequer dar fé, os mais sensíveis e mansos de coração, os bobos da corte iffeana, fiquei bastante emocionada, feliz por sermos, eu e minha parceira de todas as horas, mais uma vez, convocadas para o samba, justamente quando o tom da conversa envolve amor e arte, beleza e alegria. Improvisamos no requinte, ficou bacana. Os meninos têm extraordinárias habilidades, além do destemor característico dos hormônios em fúria. Parabéns, moçada. Nossa instituição abriga grandes, múltiplos artistas, ninguém segura esses bebês. Meu receio é despertar sozinha um belo dia, sem amanhã de manhã que me valha, Cibelle longe daqui, eu completamente estrangeira de alguém que fale a minha língua enrolada.
Se começo a não achar mais graça, assisto a uma etapa do torneio brasileiro de dedobol, o risível bálsamo das minhas horas de pesado trampo a seco, sem bisnaga de vaselina. Muito comentou-se acerca dessa extraordinária modalidade esportiva indolor e inodora, que não deforma, nem solta as tiras, pelo contrário, traz diversão só, pura zoação e providencial alívio laboral, o primitivo artefato de fazer e de conservar amigos, não me recordo de registro escrito, aqui no blog, dos efeitos analgésicos e cicatrizantes dessa oitava maravilha da terra, sobre a minha falta de culhão para os pepinos do dia-a-dia, é a chateação recomeçar, proponho uma partidinha ligeira, para desanuviar a cabeça, para a energia da sala dos professores mudar. Gosto do esporte, mas não pratico. Prefiro apreciar os disputadíssimos embates, engasgar de tanto rir, escutando a narrativa do gigante Bruno radialista, uma figura inoxidável esse menino graúdo, o juiz ergue o braço, apooooonta para o centro do campo, final de jogo, a equipe da ‘Bicicreta na Cicrovia’ deixa o gramado, soturna, cabisbaixa, sorumbática, eu diria, a fiel torcida ‘Cacareca’ vai à loucuuuura, delííííírio na arquibancada... Dedobol é invenção de Bruno, aposto. Se não é, podia ser, borbulhando por dentro do gigante Bruno, a inteligência, a paixão, a imaginação e a indignação equivalem-se, incontestavelmente buliçosas, aguerridas, brilhantes, apesar de todos os pesares. Lamento por vocês, caríssimos fuchique addicts, que, a essa altura do baile, perguntam-se de que diabos ela está falando? Um caixotinho rústico, fileiras de pregos fincados, uma moeda pelota de cinco centavos, dedos ágeis de marmanjos barbados, duas dúzias de craques, no núcleo do cáqui tapete cor-de-rosa - futebol, sua tradição e glória - duelo de titãs costurando o campo de madeira... e a Copa do Mundo, na Baía Formosa, em plena segunda-feira. Meu receio é despertar sozinha um belo dia, sem amanhã de manhã de final de campeonato que me resgate, Bruno e demais atletas alhures, longe daqui, meu olhar forasteiro, fatigado, vazado de fitar o contorno do nada.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Certas esperanças

Compartilho a esplêndida crônica natalina de Sérgio Porto, o Ponte Preta, pois é exatamente o que lhes ofertaria, aos treze dias de dezembro de 2012, dispusesse eu de tamanho talento para escrever poesia dentro da prosa. Desejo ao amigo leitor que nos reencontremos bem e em paz, no ano que se aproxima, isso sim, é humano e acalentador. Ao reencontro! Boas Festas. Grande beijo.

É preciso — é mais do que preciso, é forçoso — dar boas festas, trocar embrulhinhos, querer mais intensamente, oferecer com mais prodigalidade, manter o sorriso e, acima de tudo, esquecer tristezas e saudades.

Façamos um supremo esforço para lembrar e sermos lembrados, porque assim manda a tradição e é difícil esquecer a tradição. Enviemos cartões e telegramas de felicitações àqueles que amamos e também àqueles que — sabemos perfeitamente — não gostam da gente. O Correio, nesta época do ano, finge-se de eficiente e já lá tem prontos impressos para que desejemos coisas boas aos outros, nivelando a todos em nossos augúrios.

Depois de abraçar e ser abraçado, desejar sincera e indiferentemente, embrulhar e desembrulhar presentes, cada um poderá fazer votos a si mesmo, desejar para si o que bem entender. Subindo na escala das idades, este sonhou todo o mês com um trenzinho elétrico, aquele com uma bicicleta (com farol e tudo), o outro certa moça, mais além um quarto sonhador esteve a remoer a idéia de ser ministro e o rico... bem, o rico só pensa em ser mais rico. O rico detesta amistosamente os ministros, já não tem olhos para a graça da moça, pernas para pedalar uma bicicleta e, muito menos, tempo para brincar com um trenzinho.

Dos planos de cada um, pouquíssimos serão transformados em realidade. Alguns hão de abandoná-los por desleixo e a maioria, mal o ano de 56 começar, não pensará mais nele, por pura desesperança. O melhor, portanto, é não fazer planos. Desejar somente, posto que isso sim, é humano e acalentador.

De minha parte, estou disposto a esquecer todas as passadas amarguras, tudo que o destino me arranjou de ruim neste ano que finda. Ficarei somente com as lembranças do que me foi grato e me foi bom.

No mais, desejarei ficar como estou porque, se não é o que há de melhor, também não é tão ruim assim e, tudo somado, ficaram gratas alegrias. Que Deus me proporcione as coisas que sempre me foram gratas e que — Ele sabe — não chegam a fazer de mim um ambicioso.

Que não me falte aquele almoço honesto dos sábados (único almoço comível na semana), com aquele feijão que só a negra Almira sabe fazer; que não me falte o arroz e a cerveja — é muito importante a cerveja, meu Deus! —, como é importante manter em dia o ordenado da Almira.

Se não me for dado comparecer às grandes noites de gala, que fazer? Resta-me o melhor, afinal, que é esticar de vez em quando por aí, transformando em festa uma noite que poderia ser de sono. 
E para os pequenos gostos pessoais, que me reste sensibilidade bastante para entretê-los. Ai de mim se começo a não achar mais graça nos pequenos gostos pessoais. Que o perfume do sabonete, no banho matinal, seja sempre violeta; que haja um cigarro forte para depois do café; uma camisa limpa para vestir; um terno que pode não ser novo, mas que também não esteja amarrotado. Uma vez ou outra, acredito que não me fará mal um filme da Lollobrigida, nem um uísque com gelo ou — digamos — uma valsa.

Nada de coisas impossíveis para que a vida possa ser mais bem vivida. Apenas uma praia para janeiro, uma fantasia para fevereiro, um conhaque para junho, um livro para agosto e as mesmas vontades para dezembro.

No mais, continuarei a manter certas esperanças inconfessáveis, porém passíveis — e quanto — de acontecerem.

domingo, 9 de dezembro de 2012

A loba da estepe

Baú aberto não protege tesouro. Não é máxima de Dona Rita, minha senhora, o velho ditado, entretanto, manufatura todas as peças originais de fábrica para sê-lo. Mainha preferia aquele do mosquito zunindo zangado, tão equivocadamente barrado nos salões de festa da boca fechada, um mosquito de tanta categoria, barrado no baile, a senhora se lembra? Em boca fechada, mosquito não entra. A vida, essa destrambelhada com pedigree. A gente precisa de um filho que ensine à gente que a mãe da gente esteve sempre certa, o mesmíssimo filho que vai subsistir, nutrindo-se de pantim, de insubordinação, de rebeldia sem causa, bradando, às quatro quinas deste mundo e dos outros, que a gente ensina tudo errado, até que o amanhã, o que será?, venha surpreendê-lo com o agridoce mistério de cuidar do seu próprio rebento, uma dureza, a vida sempre repete o dever de casa, à vida, essa destrambelhada! Sem herdeiro para fazer um chá e assumir a inadimplência, uma pena, sigo apostando minhas mínimas posses no palpite: é assim mesmo que toca a banda e o espetáculo acontece. Dona Rita só errou quando não me criou na rédea curta, segurando a minha língua de trapo, tirando isso, foi primeiríssima de classe, no peito a reluzente medalha de honra ao mérito de fazer dos guris buchudos, os grandes homens e mulheres que ora, incontinenti, perdem a memória, o viço e a flexibilidade, sem complacência. A senhora calcule aí, a caçula da família sou eu, quase cinquenta anos no origami da cara, a encostada no meu sovaco fez sessenta já, no talo, a mais velha inteirou setenta primaveras e um quebrado para o santo, envelhecemos dignos, os filhos de Rita, em comitiva (acalanto...), na marra, sem subterfúgios e sem consolo.  
Só mudo de assunto por causa das sucessivas encomendas à minha humilde pessoa, não sei o que deu na humanidade, todos desejam reconhecer-se na lata ou nas entrelinhas do meu diário de bordo, tenho três historinhas engatilhadas, apontadas para o coraçãozinho esperançoso de cada requisitante, meu receio é desapontar a galera, perder o fio da espontaneidade característica deste braço de rio da integração nacional, rá rá rá, temo é findar incógnita, hermeticamente lacrada, chorando no leito as pitangas derramadas, com os mansos burros n’água, sem açúcar e sem acesso à passagem secreta para o crivo do respeitável leitor – a indiferença, a censura, a absolvição pretendida, ocasionalmente, negada.  Minha saudosa mãezinha não tinha nada de besta, não mesmo, enxergava além do horizonte, expunha a pamonha fumegante, a gente ainda tateando as espigas para o strip-tease. Curioso como ela zelava por minha boa imagem, apreensiva com meu verbo solto, suscetível, em boca fechada, mosquito não entra. Insisti na falação, deu nisso, agora, desobediente, se arrebente!
Luciana, posta em desassossego, rá rá rá, quer que eu escreva sobre ter quarenta anos, a bichinha está prestes a inaugurar a nova idade, aquieta a periquita, Luciana, quem não fez quarenta, vai fazer, tudo uma questão de tempo passado e presente. Malogro, rá rá rá, juro que esqueci, urge aguardar a ginkco biloba surtir algum efeito. Mentira, Lu. Sei muitíssimo bem a quantas andava a minha dor, a minha alegria, quando virei a loba ali-babá dos quarenta ladrões. Sinceramente, mulher, é um sonho de valsa dissolvendo no céu da boca. Toda mulher é, de fato, uma loba, quando tem quarenta anos, se avexe não, a bronca é safada, os ganhos, infinitamente superiores, são tantas as recompensas da gente ser dona do nariz e do salto alto. Lembro-me de que dispunha de disposição para tudo, do direito até o avesso, passando pela sala de aula e pelos ilusoriamente pacificados complexos dos bares, dos lábios sôfregos, eita!!, do sexo sem nexo. A bem da verdade, enfrentei três violentas crises existenciais, no decorrer desse folhetim barato, a minha nada mole vida. Crises em nada relacionadas à consciência da cinza das horas, hoje sei. Meu primeiro desmoronamento, deu-se quando era menina e fiquei, subitamente, órfã, as mamães postiças, minhas irmãs queridas, combinaram de tomar casa e constituir as próprias famílias, a coisa mais natural de acontecer, saíram do meu alcance, praticamente no mesmo instante, adormeci no calor do ninho, amanheci no sereno, insana e sozinha. Minha intimidade com o pranto vem daí, quem me conhece, sabe, sei chorar choro desatinado, até com o sopro do vento. O segundo abalo sísmico, o mais trágico deles, foi a perda de Seu Biu e de Dona Rita, na minha curva dos trinta, uma mutilação seguida da outra, sem chance da chaga aberta cicatrizar, a minha mãe me pediu perdão por não ser a minha mãe, deu dois suspiros, depois morreu. Desnecessário descrever o sentimento, quem desconhece, um dia vai sofrer, as favas estão contadas. Às vezes, minha nêga, não dá nem para sacudir a poeira, a foice escapole, decepa, prematuramente, pela raiz, o pé da bela flor recém-florida. Da ausência de Cris, o meu amor profundo, nunca mais vou me recuperar, o futuro promete o alívio que não consegue cumprir, cansei de, resignadamente, aguardar. O terceiro baque foi o diagnóstico da artrose generalizada, acompanhada da velha artritezinha rara e complicada, alojada nas articulações do extenso corpo desvalido, na sacro-ilíaca, inclusive, porque eu sou chique, bem, quarenta e cinco dias de impressão da ossatura esfarelando, dor física de endoidecer, dessas que o sujeito sequer desconfia que possa vir a experimentar um dia, por baixo do tapete da pele, dor de querer desistir de ser.
Sinto-a pronta para viver a sua melhor idade, esperar não é saber. Eu acho que o show está recomeçando, sob nova direção, Luciana, a sua. A faca, a goiabada-cascão e o queijo estão sobre a sua mesa. O convidado de honra chegou, no frescor da madrugada, o a(o)caso já lhe apresentou, fez a sala. Fico feliz que você tenha mencionado filho, em um de seus recentes comentários, não cometa o erro crasso de partir daqui sem contribuir com um filho para a roda-viva do mundo, o giro do mundo requer pessoas e mais pessoas, uma nova legião de gente boa, entre elas seu filhinho, da barriga, do coração, da intuição, sei lá, um filho para amar, a quem contar fábulas de amor, um filho para (des)orientar, que, de grandes intenções, o inferno anda superlotado, né, rá rá rá? Ele saberá que você esteve sempre certa, quando ele crescer... e aparecer. Eduardo contribuirá, decerto, com um pequeno e definitivo verso, como faz Ronaldo, meu marido, que Deus escondeu debaixo das longas barbas brancas, toda essa eternidade, graças a Deus, para ser o dono de mim. Um beijo. Boa sorte. 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Chocolate com pimenta

A de hoje vai ser expedita e rasteira, do jeito que seu rei mandou dizer, I can feel it in my bones, é isso. Off the top of my head, sem as devidas rotundas reflexões, nada além de uma doce ilusão, como me apraz essa ilusão à-toa, caro leitor incondicional do meu enredo... little useless  food for thought, rá rá rá, enchimento da linguiça que a senhora consome, na quitanda da gorduchinha escrevinhadora, ouvidos moucos da própria voz reverberando no porão do juízo, a senhora lê alto o meu papiro, não minta, a língua estalando, lambendo os beiços, não minta, a senhora pigs out sem uma pataca de culpa, sem dar fé da validade do produto. Venceu, minha senhora, venceu faz é tempo, perdeu a graça, convém munir seu estojo barbie lilás dos sachês de efervescente sal de frutas eno sabendo à maracujá, abacaxi e guaraná, eno guaraná - o top ten dos lançamentos do mercado, também na versão bolinhas dispersíveis, as apaziguadoras das perebas do estômago e do coração partido, um bom chá pra curar azia, um bom chá pra curar essa azia, o que sobrou do céu. Estou de brincadeira com meus meninos de Petróleo e Gás 2, ontem, a gente fiou uma conversinha leve, engraçada, na classe (palavra linda essa, adoro que o meu ofício floresça na ‘classe’, o meu único refúgio), os meninos estudaram um balaio de idioms com nomes de bichinhos e de partes do corpo, um intervalo despretensioso como eu, que ando cansada de tudo, um encontro de olhares e de mãos e de sentimentos do mundo, entreato entre os tempos verbais que aprenderão cedo ou muito mais tarde, por sua conta e risco, sem a minha má influência. Pois muito bem, esses meninos, ninguém duvide, esses meninos, por mais desclassificada que seja a aula vagabunda que o sujeito venda a preço de banana (são muitos os convidados, raríssimos os legitimamente eleitos, por inevitável vocação, para a profissão imaculada), ah, esses meninos vingaram já (Merda, buddies! Break your legs!), ninguém segura esses bebês.
Quando eu não puder pisar mais na avenida, quando as minhas pernas não puderem aguentar levar meu corpo, junto com meu compromisso reafirmado a cada amanhecer, escolherei parar, não estou nessa de pedir arrego, não faz meu tipo, disso os meus superiores, os quais respeito, reverencio demais, podem ter certeza. Anteciparei minha aposentadoria, devo ter direito a isso, lamentando apenas o azar de não contar com articulações saudáveis para seguir adiante, fazendo a coisa simples e certa, ensinar, toda vida, foi meu ar. Por hora, trabalho com prazer, não é possível que haja na escola alguém que pretenda colocar à prova essa pura verdade, prazer, apesar dos pesares, trabalho com honestidade, humildade e afinco, dentro das possibilidades, tirando riso de pedra, que meu organismo caprino libriano constitui-se de carne gorda e de bom humor, careço de siso e de riso para caminhar. Tenho, sob minha responsabilidade, um grupo de taxistas, gente da melhor qualidade, um servicinho extra que me impuseram, insistiram tanto, acedi, cordeirinha obediente, manda quem pode, faço as minhas objeções a esse jeitinho Dilma de ser e de desentender de Educação, enfim, mais doze horas semanais no lombo da professorinha ruim dos joelhos, ‘já que tá dentro, deixe’, é o meu lema. Pois bem, a minha primeira e derradeira experiência com esse programa do governo Dilmaligna, rende frutos dulcíssimos da gente saborear. Quarta-feira passada, dei um susto na galera, marquei uma prova para segunda próxima, o mundo se acabou dentro do “laboratório de idiomas”, rá rá rá, a senhora notou? No meio de uma revisão last minute, que inventei, no fim do segundo tempo, meu aluno menos jovem, rá rá rá, salvou, sem a menor intenção, a minha semana. Seu Estalin falou bem assim: “gente, eu nem sabia que eu tava sabendo tanto!”, dá pra tu? Acabei de me lembrar da frase. Pimenta no fiofó dos outros, Dona Rita que o diga, pimenta no dos outros... é refresco, não me esqueço. Um centímetro, ao menos, dessa historinha mequetrefe, tem de, pelo menos, cheirar a cheiro artificial marrom-bombom de chocolate.
Ontem, troquei figurinha de cromo com a minha mais nova aquisição, rá rá rá, os miúdos de Petróleo e Gás 1, uma belezura de gente, gostei muito deles, uns amores. Quando eu partir, terei feito muito bons amigos por lá, decerto. Mais tarde, absolutamente por acaso, encontrei Cibelle e o namorido, o famoso Zé, um figura inoxidável, adorável, a propósito, ele emparelhado com ela certinho, feito dedo na venta, os ruins de tão bons se reconhecem, Cibelle é uma pérola, não é possível que exista na escola alguém que se atreva a questionar essa mais pura verdade. Lindos os dois, envolvidos, enamorados, perispíritos incandescentes, saca? Prontos, é isso. Longa, açucarada coincidência, regada à cerveja e à alegria de amar e de ser amado, parece que estão se organizando para engravidar, depois que ela debulhar essa porra desse doutorado das trevas, um entrave para qualquer embrião de felicidade. No pequeno dia em que um doutorado produzir um professor, minha senhora, dou uma festa, a despesa será toda minha. Morremos de lacrimar, duas bobonas com pedigree, sob o olhar atravessado dos machos adultos que não choram, rá rá rá, enquanto conversávamos sobre o lance de João e de Karlinha, tão inusitado, tão bacana, tão potente, o amor contente de poder continuar, teu queixo no queixo do teu filho, ad infinitum, assim seja. Tanto que Francisco apressou-se em meter o inocente bedelho, o milagre de ser uma pessoinha e tanto, Francisco franco e forte, quebrando tudo, com a corda toda, a inspiradora imagem do sonho real, num pinguinho de gente, tiquinho de grande homem.

Para Cib e Zé, os brigadeiros da quinta-feira.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Tortura e glória


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos. Veio a ter um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de algum livrinho, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima com paisagem de Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como data natalícia e saudade.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.

Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa.

Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes eram a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Bom, mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do dia seguinte ia se repetir com o coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer está precisando que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você não veio, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se formando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Esta devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não entender. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para ela não era essa descoberta. Devia ser a descoberta da filha que tinha. Com certo horror nos espiava: a potência de perversidade de sua filha desconhecida, e a menina em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar agora mesmo As reinações de Narizinho. E para mim disse tudo o que eu jamais poderia aspirar ouvir. “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”

Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa, pequena ou grande, pode querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito.

Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração estarrecido, pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei mais comendo pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

(CLARICE LISPECTOR)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Maracujá de gaveta

Nada de mais, nada de mau, ninguém comigo, além da solidão. A senhora deve estar indagando a seus botões e ao próximo, ‘crônica de segunda-feira?’, não é esse o combinado. De fato. Entretantomente, cá para nós e para a vizinhança faladeira, a senhora arrasta uma asa pelo bloguinho, hein, minha senhora, vai dizer que não gosta de uma fofoca recém-desabrochada, fresquinha feito o café da manhã sem sinal de sol  e sem coisa mais edificante para projetar, operacionalizar e parir, a minha avaliação, na opinião que a senhora nem pediu, aliás, é a seguinte: a pessoa da minha idade dispõe de duas alternativas estruturantes de amadurecimento (eufemismo da porra, rá rá rá!!), uma é a batata frita, a outra, o azulejo, coloquemos assim, tamanho o contraste, duas concepções diametralmente opostas, antônimos vieses de vida. Conheço cinquentões com a fogueira no rabo, umas gentes que parece que tomam uma bolinha e assumem a compleição e a personalidade verdes do incrível Hulk, saem com mais de mil, inventando e realizando coisas extraordinárias, do cabra ficar besta, acomete-lhes aquele comichão desenfreado de co(a)çar novos conhecimentos e considerações sobre a roda da rebinboca da parafuseta, aperfeiçoamentos vários, na sua e noutras áreas nada a ver, o cabra fica é polivalente, rá rá rá, aprofundamentos abissais, a cabeça do sujeito chega fumaça, o corpo carece de acompanhar, a todo custo, essa gente pesquisa o DNA e as novas modalidades de manter a forma de menino, tome-lhe academia, tome-lhe carreira na rua, na chuva, na fazenda, fazia tempo, a propósito, que eu não via o povo correndo tanto por aí, aonde a gente vai, topa com um bravo brasileirinho irmão, trajadinho de Papa-léguas, me lembro logo do desenho animado, vejo a hora o Coiote materializar-se ali mesmo, no calcanhar de Aquiles do atleta maduro com tudo em cima, devorar-lhe voraz a panturrilha, para o sujeito saber o que é bom para tosse. Na curva perigosa dos cinquenta, da qual me aproximo, a contragosto, em ritmo bem diferente, a passos muitíssimo menos largos e frenéticos, acentuadamente limitados e artríticos, deixo claro, quem não malha os bíceps, tríceps e quadríceps, naquele intervalo entre a aula de Inglês Instrumental e o amaldiçoado abstract das trevas, ainda por concluir, está estudando de perder a arruela do juízo, uma temeridade azulejada. Não está vendo? Não estou nessa! Eu quero sossego! A outra gente é a minha praia, a da batata frita do topo do rol das preferências gastronômicas, categoria em que me incluo dos pés ao cerebelo, eu e eles, na marcha da formiga, sem lenço, sem documento e sem vontade, devagar quase parando para um chope na birosca da esquina da segunda-feira com o desnaturado domingo que partiu sem um furtivo aceno, custoso que só, de regressar.
Pra ver encorparem os caules. Pra me ver mais tarde, sabendo o que sabem os velhos. Lá vou eu, eu queria ficar. Argumentarão tratar-se do inferno astral da caprina aniversariante de janeiro, dia letivo ano que vem, quero festa na escola, digo logo. Não se trata disso, o caso é mais sério. Raciocine comigo, caro leitor interlocutor do meu desvario matinal: definitivamente, não estou no meio do caminho, isso é conversa mole para dar de comer à insônia crônica do cara preta, senão, vejamos: batidas na porta da frente, é o tempo. Às vésperas de completar a dura prova dos 47, fiz uma continha de cabeça e percebi, assombrada, que atravessei os primeiros cinquenta por cento já, faz um pedaço de chão, a menos que o Senhor das Esferas, brincando de mau gosto, tenha me reservado um porvir meio ruim das pernas, que jamais desejei, doído, arrastado, de privações as mais humilhantes para um ser humano, e de esquecimento. Meu pai morreu aos oitenta e três anos, lúcido de dar inveja a qualquer fedelho que desfrutasse do privilégio de conhecê-lo, os da minha casa sabem a que me refiro, PRIVILÉGIO maiúsculo, não existe outra palavra. Tanto que, no hospital, minutos antes do acorde final, que não presenciei, nem poderia, Deus soube afastar daquele quarto os que não teriam sobrevivido à cena, ele avisou, “eu vou morrer”, e morreu. Desse dia em diante, aprendi que não preciso de noventa e quatro anos perambulando vida afora, a menos que os pecados sejam tamanhos, que eu mereça o castigo.
Não procuro esmiuçar as cem razões por que o novo semestre acaba de raiar, pras bandas do IFF, onde não estou no momento, pela graça divina, minha preguiça pesa hoje duas vezes mais que meu corpinho roliço, as importantes razões por que o semestre começa sem que haja necessidade de esforço algum, de minha parte, no sentido de recepcioná-lo, com toda a devida pompa, circunstância e sacrifício. Das duas, uma e meia: posso estar completamente vagabunda de carteirinha, senil, caduca dos últimos lançamentos didáticos e metodológicos concernentes ao ensino-aprendizagem da língua do patrão, por pura opção, uma pobre alma desinformada, desatualizada, ultrapassada, obsoleta, dando aula do tempo que Dondon jogava no Andaraí, salvem a jurássica professorinha e os desafortunados aprendizes de um futuro imponderável... e breve. Outra possibilidade, a menos provável, é a da minha pessoa já ter visto de um tudo nesse mundo das letrinhas estrangeiras, sobrando sempre duas palavrinhas esquisitas para tocar gaita, o privilégio maiúsculo de ser muito velha no métier, de haver esfolado adoidado o solado do pé, no terreno quente e arenoso, de preferir, doravante, a maciota corrediça, o recapeamento asfáltico tinindo das boas estradas, fartas de água fresca e de sombra, as quais percorro vendada, de cor.
Para não dizer que meu planejamento acadêmico está puído de tão gasto, se bem que não se mete o bedelho em time vencedor, ora bolas, acrescentei uma proposta de trabalho ao pergaminho, a única, indivisível e multiplicadora, para o desafio que virá: estreitar os laços de afeto com os meus alunos de ontem, de hoje e de amanhã. Procuro ser muito cuidadosa na minha relação com eles, apesar do pavio cada hora mais curto as time goes by, perdão, queridos. Devem queixar-se de mim por aí, nem ligo, é da gênese do aluno reclamar da vida e da gente, rá rá rá, mas amo esses meninos como se cada um fosse um filho que a vida não me deu, simples assim. We’re giving love in a family dose, that’s it. Ainda ontem, conversava com Luana, que não estuda comigo, a propósito, lá no face dos desocupados, rá rá rá, sobre uma coisa engraçada que identifiquei num dos comentários de Evelyn, a respeito de Epígrafe. Evelyn acha que Luana é minha sobrinha, não é bacana isso? Luana me disse que, às vezes, sente como se eu fosse professora dela, não é muito bacana isso? Luana achou que o Francisco da foto era meu sobrinho, isso não é bacana demais? A senhora agora teve a certeza absoluta de que eu estou gagá, mas não me importo um tico. É o meu jeito de perecer sobre a face da terra, ninguém tem de me acompanhar.