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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Overdose

A culpa é do Rubem, cara. Inventei de me enroscar com o guru das horas tenras e tensas da minha caminhada sem espalhafato, três vivas para o mestre querido, ‘meu Iaiá, meu Ioiô’, o Velho Braga imortal, imortal!! Rubem Braga – o codificador da bagatela essencial, o artesão das vitais desimportâncias, o catedrático da falta de assunto, o cronista que nasceu e viveu para redimir a vaidade da humanidade metida à besta. No dia que eu mentir, a senhora já sabe. Gastei a semana inteirinha ruminando histórias cascudas, boas de refogar e servir à moda: uma cutucada impiedosa na questão da gravidez na adolescência: Maria, a minha assistente presencial e remota, rarará, descobriu que sua neta de quinze anos vai ter um bebê, água morro abaixo, fogo morro acima e menina enjoada da boneca, doida pra dar, meu camarada, quem segura? Pretendia arriscar também um novo gorjeio sobre homossexualidade: Clara, Marina e Tânia Mara abrindo o fole, rarará, pense numa musiquinha aporrinhante é o tema das donzelas apaixonadas da novela. Água morro abaixo, fogo morro acima e duas mulheres enamoradas, doidas pra dar, ampla entrega absoluta, afã de comerem uma a outra, meu camarada, quem segura? Outro comichão recente, madame, por conta do sumiço do livro, confesso. Penso que cumprir a vida seja simplesmente não roubar o que é dos outros. Não roubarás casa, coisa, corpo, colo, consciência e coração dos outros, simples como a gota d’água. Água morro abaixo, fogo morro acima e o sujeito sem moral nem bons costumes, o degenerado a postos, de plantão, o patife doido pra tomar pra si o que não lhe pertence, meu camarada, quem segura?
Duvido alguém se interessar é por meu excesso de peso, papo inútil, quem diabos liga, cara? Conversinha fiada que sequer provoca cócegas. Escovando os dentes, me olhei no espelho, pra quê? Gorda, profusa, avantajada. Graúda sim, desmantelada, neném, jamais - meu norte, minha filosofia. Volume sexy, suculento, apetecível, de devorar com dez talheres, cara. Maior que a média, isso desde o berçário, ninguém duvide. Aliás, saí da maternidade deixando Dona Rita para trás, a ver navios, coitada, fodida, acabada, estropiada, arrombada da peleja de parir um rebolo de cinco quilos. Diz que quando ela finalmente recuperou-se, retornou ao lar doce lar para eu dar de ombros, rarará, nem aí nem chegando, nem leite de peito queria mais, habituada ao afável sabor das guloseimas em lata. O absurdo tem limite. Existe uma diferença brutal entre a criatura perder a forma de barril fiu-fiu bem devagar, mordiscando uma paçoca, um brigadeiro extra aqui e ali, a boca nervosa trabalhando incansavelmente na poda da vestimenta, rarará, na derrocada da medida mais ou menos certa, e a criatura adormecer fofinha para amanhecer obesa mórbida, carecida de uma urgente urgentíssima cirurgia bariátrica. Desse jeito. A prednisona infla o contribuinte no susto, overnight, cara. Dá um desgosto, uma vontade de nada, a gente fica com aquele semblante de ‘comeram meu pudim’, such a devastated full moon face, uma melancolia, bicho, uma lástima. Começo a fazer 10mg/dia exatamente hoje, uma lasca de alegria. A partir dessa dosagem, garante o médico, o inchaço tende a lentamente regredir. Não que eu deseje ser a mais bonita também por fora, rarará, não se trata disso, por fora bela viola, por dentro pão bolorento. Mas, cá pra nós e pro povo, sem mais delongas, na cara: tomara, meu Deus. Tomara.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Doutor Malogro

Bando escasso, arraia miúda: eu mais dois ou três felinos, pingados e silentes. Calados, embatucados, prostrados, consternados. Leitora do meu afeto, sem tirar nem acrescentar um trema, é o seguinte: o laboratório parecia um templo budista. A minguada plebe rude não abria o bico outrora aceso, palestrante, estrepitoso de palpites. Jazíamos, cara, inertes, catatônicos. Isso me deu um amargo na língua, um desgosto só, só a criatura vendo. Observei meus pares e ímpares, pensei assim: somos da banda pobre, a gente deve ser ‘muito da’ pobre, meu chapa. Somos podres de pobres, parceiros, só pode. Pobres e capricornianos. Concílio de ‘cabras’ da peste, pois, uma modesta fatia de caprinos autênticos, sim, não resta vulto de dúvida: nenhum capricorniano da gema cai feito um patinho no papo furado ‘a taça é nossa!’, esquecido de berrar da arruela saltar do miolo inflamado, o justo protesto ‘se hay gobierno filho da puta, soy contra!’ do chão da praça. Acaso despencando, para erguer-se é uma novela. Capricorniano não cai para levantar no susto, sacudindo disfarçadamente a poeira do tombo, dando a volta assim, vapt-vupt, num piscar de turvas retinas de lince, com destreza de ginasta e duas risadas, duas sonoras gargalhadas de Fafá. Ninguém tem pressa de vestir azul, bola para o cume, a vida segue, não mesmo. O capricorniano sabe honrar o luto, acolhe o momento da tristeza como abraça um seu recém-desencarnado, chora todos os brotos da pitanga, abona o pranto propício e farto. Desfavorecidos de capital, sim senhora. Miseráveis. Duvido o contribuinte abastado, montado na lenha, na bufunfa, o dinheiro escapulindo pelo colarinho de grife, o pereba se achando, sentindo-se o dono do jogo e da banca, duvido perder o sono e a alegria para uma reles semifinal de copa do mundo, não mesmo. Rico perde uma alegria de manhã, compra três de tarde, é desse jeito. Viaja para Porto. Seguro, de Galinhas, do raio que o parta. Ou afoga as mágoas em Frankfurt, vai se recuperar em Munique, um bom refazimento no coração de Berlim é o que há, tô errada? Se lhe parece... Somente no peito machucado do fodido é que a humilhação da vida inteira, num segundo, aflora, lascando tudo. A síndrome de vira-latas acomete quem não tem um pau para bater no gato que não tem nada com isso. Coitado do torcedor fodido. Coitado do gato. Aquela dor sentida, inesperada, abre um leque de mazelas, desfia um rosário de descontentamento. Parece até que o pobre nunca teve um pequeno dia da mais louca alegria. Eu disse ‘parece’?
Entendo de futebol como entendo de análise combinatória. Entretanto, sofro de nascença. No que sofro, rumino. No que rumino, aprendo. No auge do flagelo, a ferida supurando, minha senhora, o sujeito querendo ou não, cedo ou tarde demais, aprende. Um currículo esporte espetacular nunca alimentou canarinho. Arraste seu passado glorioso cravejado de pedrinhas de brilhante - uma maçaroca dessa idade! – estrada afora, carregue o calhamaço de títulos num carrinho de mão, para aliviar o peso, take it everywhere, terá desperdiçado um transatlântico de energia e tempo. Quem precisa do passado é museu, companheiro. Se o passado servisse para alguma coisa, seria um presente. A vida exige da pessoa uma abertura, um despojamento, um frescor, sei lá, uma atitude bastante diferente. Um deslocamento de intenção: o desejo de crescimento a partir do seu redor, da novidade medrando à sua frente. Um olhar buliçoso, neófito, calouro, estagiário, sempre aprendiz, menos altivo, menos ‘doutor’ e muito mais ‘paciente’. Um profundo reconhecimento da imperfeição humana, uma humildade íntima, entranhada nas células, humildade serena e permanente. Curriculum vitae é currículo morto. Cada noite, um óbito. Cada madrugada, um trabalho de parto. Cada manhã, uma semente.