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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Depois dos temporais II

Minha amiga, eu vou lhe mandar um papo reto: um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam, incomodam muito mais! A pobre, ingênua docente desavisada, meu nome e completo sobrenome, a senhora entende que sou essa maria-mole abestada que para reabilitar não há um só remédio em toda a medicina, a maria-mole de crachá de besta, a anta irrecuperável dá asa à cobra criada, depois é sem trégua essa peleja, o danado do menino não dá um refresco, só quer ser o best friend, no divã da intimidade da professorinha, mais por dentro que um talinho de macaxeira, da nada mole vida da gente. Atendendo a inúmeros, insistentes pedidos, todos muito bem representados pelo glorioso Felipe Santos, esse cara é você, meu querido, rá rá rá, Felipe é um dos meus 27 leitores da atualidade, sendo que dou a ele essa condição de mandar na minha crônica de fio a pavio, dou e arreganho (o espectador assíduo, interativo, envolvido, tagarela, na fila de autógrafos, rá rá rá, tem comigo todas as prioridades, digo logo!), concedo-lhe o direito somente porque, se, nos carnavais acontecidos antigamente, a presente escrevinhadora desconhecia o significado do complexo verbete fidelidade, ignorando outrora seu sabor de mel, seu cheiro de flores orvalhadas (eita!), minha senhora, por causa de Felipe, preciso admitir, preciso reconhecer, por causa de Felipe, hoje sei. Deus é fiel, mas Felipe, minha senhora, na dedicação ao fuchique, Felipe arregaça! Felipe e seus blue caps, léguas de mim cometer a injustiça, rá rá rá, carregam no lombo, estrada afora, este bloguinho sujo, torto e inconsequente, é mais ou menos por aí. Para vocês, portanto, Lipe, Wel, Lulu, Luciana, Raquel, Fulano, Sicrano, Beltrana, Clara, Ana e quem mais chegar, rá rá rá, abraços e beijinhos e carinhos, e a história doida para se desenrolar. Bom passeio. Toca o bonde, macacada!
Perfil devidamente esculhambadamente concluído, voltei para Recife, a cidade das minhas angústias e da minha brutal felicidade, a minha eterna morada. A vida, conforme deduzimos, seguiu sim, sem susto, sem grandes novidades. No primeiro dia de janeiro de 2008, no miolo do olho do furacão de uma ressaca descomunal (a mardita quando não mata, faz um estrago, ninguém se iluda, madame!), recordei-me daquela noite paulistana (baderna maiúscula, sem fronteira!), me veio o codinome, a senha, bem direitinho, na cabeça, acessei o par perfeito apenas para ter raiva, para ler que as minhas belas mensagens, certamente enviadas pelos mais nobres e cultos homens de bem do mundo inteiro, rá rá rá, haviam sido terminantemente bloqueadas. Lu, no MSN, esclarecendo: “tia, nem adianta, muito tempo sem visitar o site, agora, minha linda, só pagando!”  Promoção de verão: seja cliente VIP por três meses! A bagatela de R$ 19,90! Paguei, a senhora me acredite (qualquer um dispõe de três reles, inofensivos minutos para o elogio da loucura!), paguei ressabiada, paguei no cartão, pelada de medo, paguei para me arrepender com farofa. Das mais de cinquenta mensagens recebidas, um horror, uma coisa de nem se comentar (haja gente burra, cafona e descomposturada, viu?), das mais de cinquenta (dá pra tu???), nenhuma restara. Dias depois, depois da escola, estropiada de cansaço, tarde que só, já de madrugada, notei, na minha caixa de entrada, um e-mail meio diferente. Começava assim: encontramos um perfil compatível com o seu. A grande vantagem de ser VIP então, compreendi, era aquela! O sujeito VIP tira um cochilo na rede, rá rá rá, enquanto a laboriosa equipe de cupidos desocupados cuida do serviço pesado, a difícil busca da agulha decente, no amplo palheiro, aglomerado de desavergonhados. O tal perfil? Ei-lo: NOME: Teleofilus. NATURALIDADE: Rio de Janeiro. IDADE: cinquenta e uns. DESCRIÇÃO: nem jovem nem velho, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem feio nem bonito, humano só, e demasiado. FRASE DE APRESENTAÇÃO: se a vida insiste em te dar limão, meu camarada, faça uma boa limonada, com muito açúcar. Sofri uma leve tontura, não convém mentir neste momento da mais pura verdade. O velho do Rio, rá rá rá, usara as minhas mesmíssimas palavras!! Tínhamos idade e disponibilidade para acolher, na palma da mão, cada deslumbramento que a mágica do acaso nos trouxesse, decerto, alguém precisava estender o braço, foi dessa maneira que imaginei. Bebi um pouco, por cima da ressaca, mais duas ou três taças do vinho tinto da coragem com a qual raríssimamente posso contar, nesse quesito, especificamente, nunca fui uma vasta mulher, pelo contrário, assemelho-me a um prato de papa, um balde de banha, um humílimo baguinho de jaca. Mais para lá do que para cá, finalmente, acenei: um olá despretensioso pela coincidência na referência ao limão, Teleofilus. Com extraordinário senso de humor, a tão característica e apaixonante irreverência, aquela graça toda, o riso fácil que desperta e adormece dentro dele, dia após dia, Ronaldo respondeu: “olha que meu limão dá bom caldo! Experimenta!”
Hoje estou com um pendor para confissões, como diria o Mestre Braga, vontade de abrir meu peito em praça pública. Quem for pessoa discreta, e se aborrecer com derrames desses, tenha a bondade de não continuar a ler isto, na próxima sexta-feira.


Para todos os corações apaixonados.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Depois dos temporais I

Ninguém arrote indiferença, não engulo essa, não mesmo. A morte ronda a vida, do primeiro encontro à despedida, que eu vejo e aspiro, a morte germina toda hora, todo acorde, todo ritmo, em todo negro buraco, é sempre um novo último ensaio, geral, tombos e perigos e ausências de amanhãs, a gente errando, errando e errando, até os passos mais fáceis dessa dança corrosiva. Desista de aprender a bailar com a morte, minha senhora, desista. Lá vem a besteira do surrado discurso, ah, a juventude tão brutalmente interceptada, o clichê dos meninos tão meninos na flor da idade com um belo futuro pela frente, tal e coisa, a morte só quer mesmo uma desculpa, quanto escarcéu, quanto sensacionalismo, meu Deus, para quê? Para eu sofrer à maneira de bicho, de cachorro sarnento do meio da rua, isso só. Para eu chorar desconsoladamente as pitangas alheias, as minhas pitangas, essa dor é muito minha, ninguém jamais procure me convencer do contrário, é completamente meu o desejo de correr doida varrida para o oco do mato, carregando no colo as mamães amputadas que me são tão íntimas, mulheres do mundo, uni-vos!, sair para fora de todas as casas, de todas as lógicas, de todas as sacadas e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, magnânimo poeta. Não é o incêndio - labaredas, asfixia - não é o culpado, não é o noticiário apelando para a emoção da gente, não é a estatística, não é nada, é compaixão, é humanidade, é puro sentimento. Quero que seja logo dia de aula, meu Deus, quero ver viva a rapaziada que segue em frente e segura o rojão, que não foge da raia a troco de nada, não foge, não foge, não foge, meu Deus, estrangulada. Quero tocá-los, quero para ontem, com a máxima urgência. O drama dos pais e filhos de Santa Maria me aflige, me açoita, me atinge feito uma bala perdida, encontrada aqui mesmo, jazendo por dentro da caixa dos peitos.  
Meus alunos exigem que eu desenhe a história, tantas vezes figurinha repetida, agora na caverna do blog. Iracema dos lábios de mel - o mito - a professora que eu esperava ser, a oraculosa que mora na Filosofia e não tá prosa, rá rá rá, tem essa maluquice também, de repente, quer saber como foi tudinho, tim-tim por tim-tim, arregala o olhão assim, a senhora jura que ela desconhece o enredo, a desparafusada  já escutou tanto que decorou, fica me lembrando de detalhes que esqueci, minha senhora, é o seguinte, cobriu é circo, cercou é hospício, entenda bem, a máxima serve direitinho para definir aquela valorosa escola, cada um de seus adoráveis e abomináveis frequentadores, inclusive. Uma história de amor, minha senhora, o sujeito vive ou conta, li outro dia e concordo, desde criancinha. Love is in the air faz três anos, nesse programa de rádio, escorre aos litros o amor pelas escadas, relaxo na certeza, portanto, de que o relato estará anos-luz aquém das grandiloquentes expectativas, não importando o quão desesperadamente eu tente, inutilmente, impressionar a distinta audiência. Amo demais os meus alunos, faço tudo que eles pedem, seu desejo é uma ordem, ainda mais nessa segunda-feira sem sol e sem razão, particularmente comovente e comovida. Se os maiores cronistas do Brasil fatiam o bolo, por que não eu, a mais miúda, de todas, de longe, a mais insignificante?
Em julho de 2007, participei de um congresso em São Paulo, muito mais para bater perna sob a garoa, rá rá rá, do que para me atualizar acerca de qualquer coisa na minha área de atuação, eu gosto muito de estudar pouco, disso até meu diretor já sabe. Hospedaram-me duas sobrinhas, Luciana e Ana Paula, ambas morando por lá, uma em Perdizes, outra na Vila Mariana, dez dias de acomodação gratuita e muita farra, maravilha das maravilhas. Surpreendeu-me demais, fiquei abismada de carteirinha, com a coragem de mamar na onça, quando tomei conhecimento do tal par perfeito, fiz um escândalo ao descobrir que as duas loucas de pedra tinham cadastro nesse site de relacionamento, uma confusão dos diabos, sou essa pessoa cismada com a própria sombra, ameacei abrir o bico para minha irmã, a mãe delas, foi engraçadíssimo, minha irmã já estava careca de saber, claríssimo, sempre fui esse despertador enguiçado, disparando atrasado, rá rá rá, sei lá como aconteceu, me recordo mesmo foi do momento em que as meninas (a cachaça ainda mata um corno desse!) decidiram criar, no par perfeito, um perfil para a minha humilde pessoa. Latinha de loura na mão, para não perder o costume, entrei de sola na brincadeira, afirmando, categoricamente, jamais, em tempo algum, acessar aquela porcaria recheada de cafajeste e de psicopata, as duas, na maior gandaia, digitando todas as leseiras embriagadas que eu dizia: busco um homem de caráter, honesto, decente, trabalhador, sincero, sobretudo bem humorado, um homem de riso fácil, com habilidade para fazer do limão, uma saborosa limonada. Frase de apresentação: só não se perca ao entrar no meu infinito particular, docinho! Início de partida na arena dos sonhos. Sexta-feira tem mais. Aguardemos.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Inseto

Não sei de onde vai sair a historinha definitiva, se é que, endógena, francamente, a menina do olho triste resiste. Tinha muitos planos de impressionar a molecada, amanheci fosforescente, fora de brincadeira, plugada no 220, destemida de cair o queixo, de minha autoria o drible, a firula e o gol de decidir a partida. Fui para o salão de beleza a toda, virada na bala, nos pentelhos de Jane Fonda, a vontade era voltar no mesmíssimo pé-de-vento, coar ligeiro um cafezinho classe A, de Melitta para mais, que ando cheia daquele pó duvidoso da escola, trem ruim do cão, Deus me livre, comprei para casa grãos de grife, altamente selecionados, compatíveis com a estirpe da bela e singela canequinha (coisa que amo é a minha cara escarrada no presente, gratíssima pelo mimo, Evelyn querida, minha doce amiga!), estava tão precisada de abrir o fole, recauchutado o cinismo habitual, a característica ironia, ambicionava escrever de doer, de perder o senso e a beira do dedo, a minhocada efervescendo no caldeirão do juízo. Solou, madame, gorou, deu chabu, tem vez que o tiro sai pela culatra, talvez a senhora acredite.
Programação das mais simples, tudo pela vadiagem da sexta-feira, sabemos. Guardei os restos mortais para outra armação, não me lembro se comentei aqui, na algazarra da comemoração do aniversário, numa das festinhas, quebrei os óculos, foram-se os anéis, sobraram intactas as lentes. Não tinha como o folgado dia de hoje dar errado, a carona de Ronaldo para o centro, uma conversa choramingada com a gentil vendedora da ótica de costume, não contava com essa despesa, veja aí o que pode ser feito, isso e aquilo, três parcelas possíveis no cartão, seguidas das bombásticas, inspiradoras fofocas manicurais de praxe, unhas pintadas, desce um chope, desce mais... e o pano para as manguinhas cavadas do blog. Não tinha como melar. Melou. Por arte do diabo, já de saída, minha estrada entortou. Juro que não vi como foi, acelerava pela Teixeira e Souza, tinindo, sonhando com o livro que hei de lançar este ano, com a cara de pau que Deus me dá toda manhã, a generosidade que nem mereço, uma tiragem modesta, cinquenta exemplares vendidos, a preço de banana, para os familiares e demais leitores pingados do fuchique dos meus amores, seguia fina por ali afora, feliz da minha vidinha besta, de repente, uma lufada e aquela dor acontecendo, com pedigree, ardendo, rasgando a bola do olho adentro. Parei na calçada, ceguinha de pai e mãe, lacrimejando, lacrimejando, fogo na vista, o olho esquerdo queimando, a felicidade foi a Pacheco no calcanhar, entrei na farmácia gritando, meu olho, meu olho, a farmacêutica acudiu, trouxe Lacrima, eu esguichei no meio da cara, misericórdia, molhei o olho, lavei, lavei, encharquei o olho, que dor filha da puta, minha senhora, passou um tempinho, a moça conseguiu, a custo, abrir as pálpebras para examinar, adivinha? Um bichinho feito um besourinho pequerrucho, com patinha e tudo, a moça enfiou a mão, puxou o danado, vivo bulindo, ganas de abarcar o globo... terrestre!, o olho ficou vermelho, aquela fita, só vendo. Me deu uma moleza tão grande, instantânea, uma dor de cabeça, liguei para Ronaldo, o coitado aperreou-se, quando dei fé, tinha chegado para me buscar. Passei a tarde prostrada, pingando colírio, sumidouro, o suco turvo das mudas palavras pingando, pingando, um desconforto, uma agonia latejando, fraqueza, vulnerabilidade, uma inconformação de carteirinha. Logo eu, esse rolo compressor, uma mulher para mais de metro. Leseira aguda na cabeça inchada, esquecida. Estranhos corpos, ele, eu, a crônica definitiva, pobrezinha.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Lola

O que será o amanhã? Que será da minha realidade profissional, até as Olimpíadas, contaminada do jeito que estou, correndo-me, nas calibrosas veias, a monstruosa, ultrarresistente mutação da bactéria da indisfarçável preguiça? Juro por minha mãe mortinha que não faço ideia. Dois mil e dezesseis é o ano da alegria, vou parar de trabalhar em dois mil e dezesseis, a senhora heard it through the grapevine, aposto meu apêndice em ótimo estado, estou praticando faz um tempinho já, desacelerando, como convém aos ‘na antevéspera’ da melhor idade, aqui e ali descolando as camadas de apego, os mais chegados lamentam, ‘tamanho gás, não faça isso, uma perda inaceitável, insubstituível!’, blá blá blá, há quem, sincera e honestamente, curta meu trabalho, há quem compartilhe até, meus profundos agradecimentos, não mereço a metade. On the other hand, tem gente que não vê a hora bendita, coisas do mundo, minha nêga. Perdida em pensamentos de aposentadoria (sua linda!), escancaro a janela do quartinho de escrevinhar baboseira, milimetricamente disposta sobre a bocarra aberta do velho notebook cuspindo as letrinhas e os acentos de que mais ou menos me valho, a ortografia me prega cada peça que só vendo, abro a janela e faça-se a luz por cima de textículos tão inúteis e esculhambados, rá rá rá, abra a janela, formosa mulher, para outra segunda-feira vendendo saúde, uma antipática a segunda-feira, vamos combinar, crachá de exibida, se bem que tem vez que tarda, quando o final de semana não vale o que gato enterra, a segunda-feira tarda, mas não se esquece de espanar a asa na fuça da gente, a bicha não falta nunca, uma indigestão, uma cólica, uma dor de dente, um siso para extirpar, impressionante, nada aflige a diligente, nada acomete a pétrea segundona, é a cara de bunda da funcionária do retrato. Entre preparar duas apostilinhas e atualizar o blog, I’ll take the latter, rá rá rá. Houve uma ocasião, mil anos atrás, em que fui observada, isso no tempo da Cultura Inglesa, minha chefa superpoderosa era Patrícia Brasileiro, na época, a Cultura tem esse big brother permanente, o coordenador na sua cola, espiando, um sufoco danado, essencial porém angustiante, pois bem, um belo dia, all of a sudden, Patrícia entrou na minha sala, uma turma de pequenos endiabradíssimos, fiquei muito a fim de fazer tudo muito certo, conforme o planejamento, claro que não deu certo, errei no requinte, uma lady atabalhoada de conceitos mal-ajambrados, seu feedback a respeito da aula, recordo-me de cada sílaba, mudou a minha prática pedagógica para sempre: acho que você tem que confiar mais no seu taco, na sua capacidade de improvisação, Adriana, não tenha tanto receio, você é uma grande professora, e já está pronta. Desde aquele dia, a senhora me acredite, relaxei os cornos, descontraí a testa e a musculatura da nuca, relativizei uns tantos gessos metodológicos, descartei dois terços de teoria equivocada, meus encontros com os meninos são de uma plasticidade alarmante, cabe um trem, um rinoceronte, tanta coisa a gente pinta e borda no calor do mágico instante, deixo a troca acontecer, serenamente, sob o transe do acaso, de uma circunstancial necessidade, necessity is the mother of all invention, as partes se encaixam feito um lego, se eu adivinhasse, teria me libertado antes.
A bicha não falta nunca. Por falar em bicha, amanheci romântica e pirada, Cole Porter nas alturas, night and day I’ve got you under my skin, Dione Warwick dando o tom da conversa. Cole Porter, um dos maiores músicos dos Estados Unidos da América do Norte, compositor de mão cheia de lirismo e graça, Cole Porter era outra bichinha complicada com uma poesia não menos densa, feito Sá-Carneiro, melhor um tiquinho, os bons ventos da vida boa, só renome e sofisticação, deram uma forcinha, o poeta elegante ancorou o bote, rá rá rá, no regaço generoso de uma moça das mais prestimosas, doida varrida por ele, tão apaixonada a pobrezinha, que topou posar de esposa e de cão de guia, cuidou dele, protegeu sua alma sensível, sua grandiosa obra, sua casa, suas finanças, lhe deu toda a condição de relacionar-se com quantos homens ele desejasse, quem um dia irá dizer que (não) existe razão nas coisas feitas pelo coração, minha senhora? Ninguém jamais ousará enfiar a mão nessa complexa cumbuca. Amor é consenso, consentimento, comparecimento. Existe um filme espetacular, que só fez sucesso aqui em casa, rá rá rá, chama-se De-Lovely – Vida e amores de Cole Porter, confesso que vi mesmo foi por causa do astro que faz o papel do outro astro, na muito bem construída película, película é tudo, adoro essa palavra película, rá rá rá, aquele fofo do Kevin Kline, perfeito na pele de Cole Porter, sou fã de Kevin Kline desde Um peixe chamado Wanda, coisas do mundo, minha nêga. Acabo de me lembrar do Xico Sá, um jornalista cearense porreta, um cronista gaiato de carteirinha, tão bacana ele, tão talentoso, que eu jurava que era pernambucano, rá rá rá, dia desses, peripécia do destino, assistindo a uma entrevista, sofri a brutal desilusão, como assim Ceará????, fiquei arrasada. Xico escreve para a Folha de São Paulo, sou tiete da sua coluna semanal, foi lá que aprendi a expressão vaza, Lola, vaza!. Quando uma amiga do Xico lhe confidencia um fortuito envolvimento com um gay, que nexo faz? tão sexy gay, rá rá rá, Xico dispara: vaza, Lola, vaza!, acho o máximo, sensacional, segundo porque é gozadíssimo, madame, primeiro porque, fatigados de compreender a roubada, reconhecemos tratar-se de um conselho deveras elucidativo. E sábio. Se a senhora conhece uma mulher que não sinta e demonstre, sem constrangimento, a mais profunda afeição por um, dois, três, quarenta e seis veados, a senhora, por favor, me apresente, que tô virgem dessa experiência, os gays são as criaturas mais adoráveis do mundo, do ponto-de-vista do respeito à humanidade, à individualidade, ao sentimento, à emoção, à opinião das pessoas, do ponto-de-vista da competência para zelar pelo feminino, do ponto-de-vista do otimismo e da alegria, vamos combinar. Tirando os pastores paladinos do oeste, restauradores da heterossexualidade perdida, rá rá rá, e as fêmeas fatais mulheres para mais de metro, ungidas pelo Altíssimo para resgatar dos escombros, do entulho de suntuoso rosado lixo de lamê e purpurina, o homossexual desgarrado, qualquer donzela dentro da normalidade, um e sessenta de altura por cinquenta e seis de peso, já piscou a pestana para um sujeito inconcluso, com alguma dificuldade de classificação, nesse angu de caroço. Alguns jovens vivenciam esse conflito, intimamente, sem pressões externas, ele batendo bola com ele mesmo, até uma determinada idade, meus caros, isso é bossa nova, isso é muito natural. Ao ser vivente seja dada a liberdade de gostar, de expressar-se amorosamente como lhe aprouver, é cruel, é assustadora essa interferência social e religiosa, numa seara tão particular, tão extraordinariamente bela e delicada, sagrada. Não tenho filhos herdeiros do legado da minha miséria, diria Machado, pimenta no fiofó dos outros é refresco, coisa e tal. Entretanto, por mais que procure, não consigo encontrar outro desassossego para um pai ou mãe, senão a dolorosa constatação da livre e espontânea opção do seu amado filho pela farsa, a ‘conveniência’ de uma mentira de sofrer e fazer sofrer, deve ser foda isso. Esse assunto já deu, visse? Merece o devido colo e descanso. Equilibrando-se nas etéreas vigas do faz-de-conta, de que diáfana seiva sobreviverá sua historinha de amor para boi dormir? Vaza ligeiro, Lola, vaza! Entre quatro paredes forradas de verdade concreta, a mão naquilo, aquilo na mão, e os pés no chão, que mal pode haver, né não?

ALL RIGHT WITH ME

It’s the wrong time and the wrong place
Though your face is charming
It’s the wrong face
It’s not his face, but such a charming face
That it’s all right with me
It’s the wrong song in the wrong style
Though your smile is lovely
It’s the wrong smile
It’s not his smile
But such a lovely smile
That it’s all right with me
You can’t know how happy I am
That we met
I’m strangely attracted to you
There’s someone I’m trying so hard to forget
Don’t you want to forget someone too?
It’s the wrong game with the wrong chips
Though your lips are tempting
They’re the wrong lips
They’re not his lips
But they’re so tempting lips
That if some night you’re free
It’s all right, it’s all right with me.

(Cole Porter)


Para meu amigo Marcelo.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Puro amor

A rosa do amor tem sempre que crescer, minha senhora. Não estando na vibe do mo(vi)mento, minha senhora, a senhora, por favor, não se acanhe, tenha a bondade de recolher seus módicos pertences, o banquinho, a rabeca, deslize, no assoalho encerado, os delicados pezinhos de lã, atravesse muda o arco da porta, sem desviar a mínima atenção, faça a gentileza, dos inapelavelmente atrelados ao bonde da minha doce e terna historinha de par perfeito, carregue consigo o pesado alforje de azedume, que o fardo lhe machuque o ombro e a clavícula, por fora e por dentro igual talo de macaxeira, nem ligo, ligue não, minha filha, isso é inveja, a inveja é um sentimento muito feio, feio e potente, desconsidere, ignore, manjericão, o patuá e uma prece, Adriana, doravante, aprenda. Dona Rita era mesmo uma figurinha de cromo, rá rá rá, bolo na mão e cafuné, beliscão com alfenim, mordia e assoprava, na medida certinha, nem se falava em psicologia, naquela época, a cantiga ninava e o pau comia, seus filhos seriam duros, fortes, e moles que nem manteiga – humanos, porque é desse jeito que se cria, sua vida sem mãe lhe ensinara, com que sabedoria, Mainha, por sua conta e risco, na corda bamba de sombrinha, levantava e baixava a nossa bola – o livre balão da razão e da emoção da gente.
Antônio Maria é um cronista pernambucano da maior importância para o planeta inteiro. Eu sou doida por tudo que ele escreveu enquanto viveu, ah, tua distância tão amiga, esta ternura tão antiga, o desencanto de esperar... sim, eu não te amo porque quero... arrepio do dedão ao cocuruto, com os poemas que a voz inconfundível de Dolores Duran imortalizou, Dolores, a bênção. Minha dinossaurice crônica referenda: sou velha, e daí, há velhos chegados ao pagode muito antes de mim. Deve ser a coisa mais extraordinária, imagino, o sujeito partir dessa para melhor, havendo inscrito, na curva da estrada, para a salvação da moçada, esse luminoso rastro de eternidade, venerável Antônio. Julgava-se cardisplicente, uma mistura de cardíaco com displicente, veja você, que maravilha, distraídos, venceremos, a senhora já sabe. Acabou morrendo mesmo do coração, coitado, difícil hospedar tanta solidão dentro do pobre peito, o músculo pifa, não dá para ser de outra maneira. Meu marido e eu desencarnaremos de um jeito parecido, suponho, vamos seguindo a trilha dos grandes amadores. Dia desses, um dia frio by the way, num bom lugar para ler um livro, rá rá rá, cismei de fuçar umas coisinhas sobre Antônio Maria, na net, às vezes penso que, não fosse essa besteira de dar tanta aula à toa, um desperdício com pedigree, onde já se viu o cidadão achar que precisa de um professor para estudar um idioma, um tablet desses que nunca vi nem comi, só ouço falar, mais uma ideia fixa, minha senhora, bastam, dão de sobra, Inglês ainda por cima, que se enrola e desenrola em qualquer esquina e estamos conversados, sinceramente, não fosse essa chatice de ter que trabalhar, despejaria um carro-pipa de erudição por onde andasse, eu mesma a maior autoridade no assunto, a mais conceituada pesquisadora de pernambucanos ilustres (três vivas para o meu rincão adorado, nobre celeiro de escrevinhadores geniais, rá rá rá!), do passado e da atualidade. Embasbacada com a coincidência, descobri que Antônio Maria, certa feita, publicou o seguinte: Numa declaração de bens, citaria, entre as primeiras coisas: ‘Conto com a amizade de Rubem Braga’. Eram amigos! Parágrafo encerrado.
Numa declaração de bens, citaria: Conto com Ronaldo Barroso, meu primeiro e último amor apaixonado, e demais pessoas que me têm afeto, família e amigos leais, meus queridíssimos alunos, inclusive. Meus quarenta e muitos anos, rá rá rá, foram bastante celebrados, fiquei profundamente comovida com a cascata de  deliciosas felicitações virtuais, via facebook, tantas palavras aconchegantes, aromáticas, com temperatura, como é bacana dar o seu a seu dono, Dona Rita, reconhecer a importância deste instrumento tão integrador (será?), que nos possibilita acomodar o corpo e a alma na rede, a bunda na janela, socializar apreciações, as nossas verdades e mentiras, os apreços, saberes, vivências, humor, belezas, poesia, a rebimboca da parafuseta, o sujeito até apanha aqui e ali, de um canalhinha da ocasião, levanta, sacode a poeira cósmica, rá rá rá, curte um provérbio chinês, comenta um post absolutamente imprescindível, logo adiante, renova o olhar para o outro, reinventa a relação com o mundo, no fim, minha senhora, não se perde nada – tudo é a troca da qual emergimos, ampliados, mais vivos. Terça-feira passada foi humanamente inesquecível. Ganhei festas, no plural, madame, com direito a bexigas coloridas espalhadas pelas paredes e quadros brancos pichados de carinho e gratidão. Ganhei torta de chocolate de Ovomaltine da Choco-rá, nem acreditei quando vi, minha torta favorita, convidada para o samba, rá rá rá, ganhei tantos presentes, cupcakes, brincos, perfume, sabonete, uma foférrima caixinha cor-de-rosa para eu guardar o que eu quiser, um livro que vai chegar a qualquer momento, rá rá rá, uma coisa de comer muito gostosa que vou saber o que é somente na próxima terça-feira, rá rá rá, ganhei um vasinho com uma plantinha, minha senhora, as folhinhas e as floresinhas me lembrando de tocar o barco, continuar a crescer, para a frente e para o alto, as raízes me impelindo a compreender para trás. Estou assim meio guri buchudo, no dia seguinte ao aniversário, com o riso frouxo, entretido com os novos brinquedos, sob o anestésico efeito da intensa alegria. Ninguém segura esses bebês. Vocês souberam. Vocês sentiram. Vocês fizeram. Não consegui escapar de ser genuinamente feliz. Tarde aprendi a gozar a juventude, e já me ronda a suspeita de que jamais serei plenamente adulto. Os meninos de Hospedagem compreenderam, finalmente, por que vim morar no Rio de Janeiro. Surpreenderam-se ante a bombástica revelação de que fora apenas amor. Puro amor. Faltou contar a melhor parte, os detalhes do nosso primeiro encontro, no aeroporto. Tempo haverá, rá rá rá rá rá rá! Do fundo do meu coração, rapaziada sangue bom, obrigada.


Crônica dedicada aos meus alunos. De todos os tempos.  

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Aula de Inglês

Amanhã é aniversário dele. Minha homenagem.



- Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei, com a maior atenção, o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir, às pressas, que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:

- No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:

- Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:

- No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

- Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

- No, it's not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.

- Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray.  Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.

As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:

- Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por uma onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta.  Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo em que exclamava, muito excitada:

- Very well!  Very well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me, imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

- It's not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945

A crônica acima foi extraída do livro "Um pé de milho", Editora do Autor, Rubem Braga - Rio de Janeiro, 1964, pág. 33.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sentido

Precisa amar sua amiga, irmão, e relembrar que o mundo só vai se curvar, quando o amor que em seu corpo já nasceu, liberdade buscar, na mulher que você encontrou. Milton Nascimento e Fernando Brant passaram do ponto, nesse pequeno dia de tanta inspiração, Sentinela está entre as dez mais belas canções do mundo, no meu top ten, bem entendido, a senhora brinque de fazer sua lista, é um passatempo interessante, a gente vai escrevendo, mudando de ideia, apagando, troca a ordem dos fatores, altera, na cara dura, o produto, rá rá rá, meu top ten é libriano, minha senhora, signo da indecisão, sofre de permanente hesitação com pedigree, uma mobilidade alarmante, comete cada deslize, é cada injustiça, meu Deus, prefere ser essa metamorfose ambulante, predomina o arrepio do preciso instante, dando e arreganhando o tom da conversa. Hoje, beforehand, esclareço: não estou boa para pobre, dia de dor de cabeça é assim. Abri a janela, de manhã tarde, dez horas do dia, veio a fisgada, tchun, contraí a fronte, cenho pavoroso, chegaste, companheira de jornada?, o beliscão da inconveniente machuca com gosto, exatamente um mindinho acima da sobrancelha esquerda. Presença. Parece que vai doer com propriedade, a desalmada, de um lado só, rá rá rá, vamos jogar, Pollyanna? Apanha ligeiro o tabuleiro, contente. Duas neosas, de seis em seis horas, e seguir, a gente se acostuma com tudo nessa vida bandida. Morrer agora? Não quero. Os cdzinhos aguardam, enfileirados, a vez de se lançar. Engraçado isso do sujeito ter playlist no computador e no raio que o parta, a modernidade tem muito fôlego, os artríticos, tadinhos, extenuados, bufando, quedam-se, humilhados, à acolhedora sombra do frondoso jambeiro. Não sei o que há comigo, não consigo não tocar as coisas. Sou a maior compradora de cd do Brasil, carpindo a minha dor sozinha, alguns lps da minha juventude jamais foram remasterizados, o lp de Clara Nunes, por exemplo, aquele de Regresso, cortei um dobrado para baixar Regresso no pc, alivia, decerto, mas não cura. Careço estudar as capas, os encartes, esparramadinha no sofá, fico girando o acrílico entre os dedos, sabe como é?, cafuné nas notas, tens as minhas digitais, o que salva a gente são os rituais particulares. Essa semana, na TV, ouvi que uma grande loja francesa, de cds e afins, fiquei besta, fechou as portas! Não precisa explicar, minha senhora, eu só queria entender. Se a molecada, nowadays, só conhece música por meio da internet, a molecada desconhece o que é bom para tosse, o passado mais remoto e inteligente, os sons e as letras pais e mães da humanidade. A indústria fonográfica, no meu ponto-de-vista, precisa de uma drástica desatualização, urgente, fossilizar-se para sobreviver.
Sem medo de ser feliz, reafirmo que Milton e Fernando passaram do ponto. Uma overdose de Sentinela, sem as devidas precauções, a saudade, nas noites de frio, em meu peito vazio, virá se aninhar, Sentinela pode matar da emoção da saudade. Nenhum contribuinte com cabeça, tronco, membros e o músculo pulsante, que tenha sentido, das tripas à superfície da pele, a ceifa de um ente querido, tenha certeza disso, minha senhora, vou mais longe, nenhum ser vivente atravessa, incólume, este poema, esta melodia. Se a senhora curte as veias abertas de Nana Caymmi, então, fodeu, a senhora pise nesse chão devagarinho. Eu sou completamente apaixonada pela voz dessa mulher. Para mim, é o seguinte, o compositor querendo impressionar, entregue seu rebento às cordas vocais de Nana Caymmi, o mais será contemplação extasiada. Surpreendi-me, na escola, recentemente, com Maurecir, nosso querido professor de pintar o sete, Maurecir é um sujeito talentoso pacas, toca, canta, dança e sapateia com categoria, acho Maurecir um sujeito bem bacana, tirando o fato do colega não gostar de Nana, Nana Caymmi é uma lamentação enjoada, uma choradeira que não me agrada, rá rá rá. Continuamos muito bons amigos, as minhas relações de amizade resistem ao insondável, a tudo nessa vida, exceto à calhordice da desonestidade, seguimos parceiros, entre nós, rá rá rá, interpôs-se essa restrição, apenas. Nana distende, enobrece essa versão de Sentinela, é isso. Assisti a quatro shows de Nana Caymmi, saio completamente chapada, de perna bamba, para o meu paladar, a diva come com farinha, esculacha. Aliás, os cds de Nana estão na agulha, prontos para rodar, depois de Milton, a vibe do momento é cantar para liberar tanta saudade, saudade engole a gente, engole a gente. Longe, longe, ouço essa voz que o tempo não vai levar. Memória não morrerá. Minha saudade cheira a leite de rosas do sovaco de Seu Biu. Painho, eu não sou digna de que entreis em minha pobre morada, porém, se tu desejas, queres me visitar, dou-te meu coração, dou-te meu coração.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Ladeiras de folia

Ladeiras que só interessam a ti e a mim... Conversa mole para boi dormir, digo logo. O errado é da conta de todo mundo, isso era Dona Rita, botando pra quebrar nos ditados, eu sou essa pessoa transbordante de sabedoria popular, nos dias pares, rá rá rá, só por causa dela, as flechas certeiras apontadas para o direito, Mainha era um ‘compêndio proverbial’, um negócio impressionante, de cair o queixo, e sem alisar banca de escola, isso Dona Rita frisava bem frisado, na lata, na cara da gente, empilhava a penca de filhos letrados, uns frangotes pelados metidos a cavalo do cão, a prole no seu devido lugar, trinta e seis degraus abaixo do salto alto do sapato dela, rá rá rá, mais rasteiros que poleiro de pato. Lamentavelmente, não dei cria que crescesse amparada pelos ensinamentos da minha saudosa mãe, teria imitado Dona Rita, do meu miolo frouxo à panturrilha, na educação de uma criança somente minha, estaria abalizada, coberta inteira de razão, duvidava que a brincadeira não desse certo feito dedo na venta.
Alceu Valença escreveu adoidado sobre as ladeiras de Olinda, as ladeiras de Olinda são o palco mais apropriado para as peripécias de quem deseje experimentar o raro tempero da melhor receita de beleza, ao delicado molho da poesia completa deste glorioso país-continente sem eira nem beira. Um dia, as misérias do pão e da idoneidade vão desaparecer do meio do Brasil e do mundo, vivo de acreditar, de fazer, devagarinho, mais ou menos, a minha parte insignificante. O amigo leitor que ainda não visitou aquele épico monumento, cidade parideira de bem-aventurança, Olinda, tens a paz dos mosteiros da Índia, tu és linda, pra mim, és ainda minha mulher , meu amigo, faça a si mesmo a gentileza, sinta nos veios da face a inebriante carícia, providencie um pé-de-meia, que nem precisa ser tão estribado, Olinda sabe receber sem espalhafato, sem o sujeito precisar vender as córneas, pode confiar, já foi, nêgo? Não? Então, vá! Olinda também sabe esnobar, chique de doer, toda trabalhada na elegância e no cartão de crédito de quem pode, pode. Tem um lugar lá em cima, que não é para qualquer bico, vem justamente do Beijupirá, a historinha que pretendo lhes contar. Beijupirá é peixe e é o nome de um restaurante arrochado, o estabelecimento é luxo só, desses do cabra entrar na aba dos outros, passar bem, comer e beber da fina flor, tirar um bocado de retrato, se exibir no facebook, fazer um agá, aparecer às custas do besta da ocasião, que ninguém é de ferro. Quando retornamos daquele passeio de barco por baixo das pontes do Recife, a senhora deve estar lembrada, estávamos os quatro, eu, Ronaldo, Nilde e Isis, varados de fome. Minha irmã das altas rodas, rá rá rá, Tia Isis, convidou a gente pra conhecer o famoso Beijupirá. Tia Isis é essa figura inoxidável, é ela que see dead people, troca uma ideia legal com os desencarnados da família, rá rá rá, espírita convicta, de carteirinha, pós-graduada com louvor, aluna laureada no Liceu de Allan Kardec, só vendo. Me deu um frio na espinha, visualizei a carreirinha de zero na conta, aguardei o veredito de Ronaldo, ele concordou, relaxei, meu marido sempre sabe o que está fazendo, rá rá rá, já que tá dentro, deixe, ora ora! Minha senhora, para encurtar o causo, basta descrever o acesso ao palacete assobradado: um suntuoso elevador panorâmico, desses transparentes, acanhado, porém, no tamanho, vamos combinar. Para baixo, todo santo ajuda, distribuímos o peso sem querer, obra e graça do acaso, Ronaldo e Isis, eu e Nilde, a capacidade máxima do bicho era essa, duas pessoas, para cada viagem. A janta foi da hora, espetacular, idem para a despesa, Tia Isis fechou de badoque, assumiu sozinha todos os zeros, não rachou nem com o anjo da guarda, anfitriã arretada... e abastada. Para cima, o santo tem de contar com mais sorte. Isis e Nilde subiram na frente, claro, que eu precisava de um mico king kong para a posteridade do blog. Ronaldo e eu emperramos a dois passos do paraíso, sem saber os desejos aonde é que iam dar. O bicho parou antes do fim da linha, rá rá rá. Ficamos presos, no alto, de repente, o solavanco e uma ré inesperada, rá rá rá, anarriê!!, voltamos, com mais de mil, para a base, Nilde viu tudo, ria de perder o chapéu, Isis, abiscoitada de nascença, aluada com pedigree, sem perceber a confusão, comunicando-se, decerto, com um Gasparzinho camarada do lugar. Quando a gente aterrissou, a bela jovem, muitíssimo educada, quebrando tudo na pantalona e no bico fino, rá rá rá, sugeriu que subíssemos um de cada vez. Ronaldo não perde a piada, disparou, no quente: esse caixote é de papelão, é, menina? Não levanta duzentos quilos? Tinha que pendurar uma plaquinha exclusivo para magros, né não, madame?
A gente ainda tentando respirar, recuperar-se das gargalhadas, eu ria de engasgar, de mijar na roupa, rá rá rá rá rá rá, só vi foi um aborígene da velha Marim, na minha janela, o rasta surgiu do nada, trancinhas eriçadas, gritando é contramão, minha senhora!!!! Tá doida, é???, para Tia Isis, a motorista. Isis já não é muito orientada do juízo, na pândega, como diria Dona Rita, a coitada errou o caminho, entalou numa ladeira estreitíssima, escorregadeira, rá rá rá, um magote de turista mais perdido que filho da puta em dia dos pais, encostou logo na bunda do carro, não demorou, a cena era essa: uma carreata atrás, outra na frente, a gente no meio, Isis danou-se a rezar, nunca ri tanto na minha vida. Nilde decidiu chamar a polícia, desembestou a pé, ladeira abaixo, potoco, potoco, o salto no paralelepípedo, rá rá rá... Com pouco, avistamos a luzinha vermelha, a viatura, os guardinhas tiveram uma trabalheira dos diabos, explicando, é uma contramão, ela deve ser turista, rá rá rá rá rá rá rá, turista com placa de Recife, rá rá rá rá rá rá. Abriram um espaço para Tia Isis manobrar, uma ruazinha de nada, inclinada pra raio, Ronaldo não podia dirigir, tinha bebido, o jeito foi apostar todas as fichas na espiritualidade, rá rá rá rá rá rá, meu Deus, que coisa mais engraçada! Quando a gente, finalmente, conseguiu sair daquele novelo, entrando em Recife já, Nilde comentou bem assim: olha, Isis, se eu não tivesse ido buscar, com os meus adorados pezinhos, rá rá rá, os policiais, a gente tava fodida, não saía dali era nunca mais! Tia Isis: engano seu, Nilde. Você foi o instrumento, é diferente. Meus amiguinhos desencarnados, meus mentores espirituais trouxeram aquela viatura. Nilde: e foi, foi??? Mas era só o que me faltava!!! Pois você vá tomar bem no centro 'daquele canto' por causa disso, sua porra!!!!!!!
Eu lembro daquela menina subindo ladeiras
Ladeiras de frevo e preguiça da velha Marim
Ladeiras tão carnavalescas, escorregadeiras
Que na terça-feira jogaram você sobre mim
Ladeiras sugerem saudade, minha companheira
Ladeiras que só interessam a ti e a mim
Eu subo e descubro
Que a vida é feito ladeiras
No seu sobe e desce contínuo
Princípio e o fim
Perdi um amor tão bonito naquela ladeira
Que vai dar no Alto da Sé
No Bar Querubim
E hoje a saudade me aperta de toda maneira
Ladeira da Misericórdia tem pena de mim

Ladeira da Sé, ladeira preguiçosa
Ladeira do Amparo, da Misericórdia, amor...
Ladeiras, ladeiras...
(Alceu Valença)

domingo, 6 de janeiro de 2013

Há cura?

Nada melhor para a saúde que um amor correspondido. Vinícius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô, saravá! Centenário do poeta este ano, a senhora sabia? Nem eu, ouvi no Esquenta, aquele programa da Regina Casé, meu marido arrasta um bonde por Regina Casé, não perde o Esquenta por dinheiro nenhum do mundo, cada um com suas devidas esdrúxulas preferências, concorda, madame? Gosto é uma modalidade de manifestação altamente subjetiva, no tablado do coração da gente, individualíssima, graças a Deus, intransferível de carteirinha. Intransferível até certo ponto, vamos combinar, meu bom gosto para as bonitezas da vida vem de dentro do meu e de outros antiquíssimos olhares e estremecimentos, gosto a gente não só lamenta, a gente discute em bom estado, ou alterado, rá rá rá, furiosas borbulhas na boca seca, espumando, a gente quebra o pau sem cerimônia, exaltasambamente, de estrilar, da merda virar boné, isso entre a segunda e a sexta-feira, sábado e domingo são sagrados, um Japão na paz, brancos dias brandos, do mais profundo entendimento matrimonial, a ferro e fogo, na residência da escrevinhadora. Hoje, pra não dizer que não falei das flores, adorei assistir à Margareth Menezes puxando uma belíssima canção não sei de quem, originalmente gravada por Clara Nunes, a noite emprestou as estrelas bordadas de prata e as águas de Amaralina eram gotas de luar, era um peito só, cheio de promessa, era só, era um peito só, cheio de promessa. Cada um com o seu pulsar e com a sua venerável herança estética, peito cheio de promessa. O melhor do Esquenta é me lembrar de que Ronaldo sempre aprecia as menos graciosinhas, rá rá rá, aqui e acolá, dispara um elogio a um bichinho televisivo esquisitinho, Regina, cá para nós e para o povo da rua, é um acidente de trem sem sobreviventes, eu, descabelada e remelenta, com toda desgraça, amanheço mais bonitinha uma coisinha, assim seja.
São demais os perigos dessa vida pra quem tem paixão, principalmente, quando uma lua chega, de repente, e se deixa no céu, como esquecida. Vinícius de Moraes, de novo, sobre o meu pesar, sobre o meu contentamento, amém. Ontem foi noite de show de verão, na Praia do Forte, o melhor prefeito do Brasil (é Alair, é ooooooooooonze, rá rá rá...) arregaçou com pedigree, queima de fogos digna de Virada, um negócio espetacular, quem cochilou no Reveillon, lavou a égua porque viu a reprise, não sei se existe foguetório contratado para o mês inteiro, bem capaz, soube que o prefeito é chegado nessas exorbitâncias. Eu, o consorte (um amor correspondido, bote sorte nisso, Rona, rá rá rá!), Zé e Cibellita, chegamos na orla eram 22 horas e um tiquinho, isso depois de lixar o esporão numa caminhada dessas do contribuinte artrítico e artrósico, meu caso comprovado com cintilografia, a senhora já tomou ciência disso, uma caminhada do contribuinte desejar parar no meio, voltar pálido para casa. Zé estacionou o carro na baixa do sapateiro, longe pra raio, era isso ou levar o carro no bolso para a beira do mar, vamos combinar, estava foda. O prefeito falou, em entrevista, para quem quisesse ouvir, que seu principal objetivo é “Cabo Frio assim o ano inteiro”, não sei como foi, sei que o prefeito falou desse jeito, o prefeito deve saber o que anda dizendo. Haja infraestrutura para tanto mineiro, nunca vi tanto comedor de queijo junto, francamente, desafiando de vez a noção na qual se vê que o inferno é aqui! Onde o prefeito vai comprar um mínimo de civilidade e respeito, de educação doméstica e turística, de conscientização sócio-histórico-ambiental para os espécimes autóctones e visitantes desta terra azul ensolarada, para abundante distribuição gratuita, na entrada da cidade, onde Alair vai comprar não sei, acho bom a assessoria do prefeito se coçar, superlotar o estoque, rá rá rá, do contrário, não sobrará pedra sobre pedra. Enquanto isso, não nos custa insistir na questão, confere, Lulu? O cabra deu conta do recado muito direitinho, revisitou as baladas consagradas, a multidão curtiu, soltou a voz, balançou de com força o esqueleto, empolguei-me inteira, achei bacana. Entretanto, dessa vez, pareceu-me cansado o Luluzinho, gripado, sei lá, já vi Lulu Santos cantar mais cristalino, com mais convicção, a juventude é essa força estranha, vai se acumulando, a pessoa envelhece com pedigree, principio a confirmar, eu mesma, que dá mesmo nisso. Nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará, a gente, inclusive, inexoravelmente. Lulu à luz da alaranjada lua que o prefeito encomendou para a festa. Há adolescências seminuas e há um vampiro pelas ruas, Vinícius de Moraes.  Há um renovar-se de esperanças, Vinícius de Moraes, esperança, o melhor da festa. Peitinhos de pitomba, cheios de promessa. A vida vem em ondas, como o mar, Vinícius Poetinha de Moraes, incógnito e imorredouro, no coro da molecada.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Clã

Minha senhora, vou lhe dizer uma verdade capital: ninguém segura esse bebê, três vivas para a tecnologia! No labiríntico trançado que não é da gente cochilar dentro, refiro-me agora à internet, seus começos, meios e apocalipses (a internet é o terceiro segredo de Fátima, acredite!), a propósito, de presente de aniversário, quero saúde, paz, prazer e alegria, mais uma rede de casal novinha em folha, para fins de acomodar a banha sem aperreio, adormecer e sonhar, eu desejo um apagão bem brasileiro, pretendo dormir de babar na fronha, o pesado e vaporoso sono dos justos. Três vivas para a mais espetacular das tecnologias de ponta, na trambiqueira teia virtual cumbuca do sujeito entornar o sumo das coisas de si e dos outros, minha senhora, na prolífica internet de todo sagrado dia, absolutamente de um tudo se copia. Inauguro um textículo, já imaginando quanta semelhança há de haver com o escrevinhado de anteontem, penso logo que alguém, alhures, postou uma historinha equivalente, nas vírgulas e nos pontos, irmãs siamesas as duas, nas semelhanças físicas e nas diferenças psicossomáticas, rá rá rá, inclusive. Ou vice-versa, claro. Esse meu descrédito na capacidade individual da minha própria pessoa, rá rá rá, de gestar, parir e patentear qualquer besteira que preste, assinada por mim somente, minha senhora, vem de muito longe. “Nem com psicola”, argumentaria Zé, o parceiro de Cibelle, psicola é psicóloga, vocês entenderam, rá rá rá, um amigo gaiato é o melhor ansiolítico dos tempos modernos, a mezinha que salva a gente das intempéries da vida de gado, insipiente e triste. Tenho horror a complexidades de forma e de conteúdo, meu graal é puro e simples assim, desde o descobrimento do meu universo particular. Uma menina pequena não é gente grande nem que a vaca tussa, gastei minha pobre infância tentando, tentando, nadando contra a corrente, dançando fora do passo, um fiasco para vinte e três subjetivas croniquetas, mais adiante. Devia ter arriscado um doutorado aos tenros dez, doze anos de idade, nowadays, dearest, não posso mais.
Cada um com sua dor e delícia. A única verdade indiscutível são as existências individuais. Todos os itálicos deste glorioso blog de asneiras, minha senhora, brotaram do terreno fértil de mentes brilhantes, não saíram do baú da minha cachola, esclarecimento mais que explícito, oportuno, adequado, sem sombra de segredo. Tenho, no máximo, muito boa memória, ouço o galo cantar no porão do juízo, pinço as duas, três palavras raras de que me lembro, o resto é tarefa do google, um despretensioso clique, tchan, mesa posta, para o meu deleite. Amanheci pesquisando, de novo, a tal pia adjetivo, significando salgada, comida pia, sopa pia, caldo pia, devo isso a Felipe, ‘pia, Felipe!, teu belo nome dentro da história!’, meu aluno sabido, leitor contumaz deste espaço de letrinhas, interlocutor querido das minhas maluquices. Vou fuçar mais um bocadinho, meu caro Felipe, encontrarei, em Pernambuco, decerto, caju, delírio, consolo e mais um pio sobre o assunto. Pia é também espia, ‘pia só!’, sei que você sabe. “As fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.” Cada um com sua delícia e dor. Minha língua explode no coração da cidade estrangeira porque balbucio o íntimo, intrínseco, intradérmico glossário, pelos cantos da casa, salivando, entrementes, entre dentes - Recife, a tua falta é pia -  ausência quente demais roubando meu sossego e fome, sede salobra, esquisita, saudade austera, infinita, de um pequeno chão e seu mormaço. Engraçado, não perdesse o vocabulário, o sotaque, Adriana... O jeito de falar... Não. Nunca. Não se trata de infelicidade, nada disso, sou feliz aqui, na justa medida das minhas impossibilidades. Disponho de amor clandestino para a Guanabara. O Rio de Janeiro continua lindo, do Corcovado, indiscutivelmente inacessível, o Redentor soberano, das alturas, segue mantendo a promessa de acolher a imigrante desajustada, na nuvem do Seu abraço.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Antimanhã

Nenhuma múmia se mexeu, nenhum milagre da ciência aconteceu. Todo capricorniano é mestre-sala em arruinar o caldo, rá rá rá, o sujeito pensa que deu o ponto, o cabrito sorrateiro mira o caldeirão do prato principal da caprichosa ceia, o rei está contente porque é Ano Novo, escorre telheiro abaixo, a pá de pimenta e de sal na sopa, o cozido fica pia. No meu glorioso nordeste de cabra da peste, a comida carregada no tempero, fica pia. “Vigia o molho, Mainha! Virgem Maria, minha filha, que errada foi essa?, o molho tá pia!”. Uma referência à pia batismal, talvez, nunca me aprofundei nesse assunto, não sou da patota da pesquisa, procurem saber vocês, perdigueiros de nascença, interessados estejam, logicamente, nada na marra deu pé, jamais dará, descubram como a história começou, escrevam-me uma singela cartinha, vou adorar. Nem todo capricorniano é pessimista, Luciana, minha linda sobrinha quarentona, rá rá rá, que, a propósito, ainda não leu a crônica encomendada por ela mesma para a minha pessoa, somos enta, quem aguenta?, rá rá rá, Lu é capricorniana sem ser pessimista, mais e mais otimista as time goes by, aposto meu baço que a culpa toda é da meditação, Lu é budista e meditadeira de mão cheia, um negócio espetacular para quem gosta. O namorido também medita a dar com o pau, noutras palavras, trata-se de uma relação escrita nas estrelas, flecha apontada para o centro da mosca do sucesso, três vivas para o Sidarta, a senhora pretendendo amarrar o burro na sombra e contrair núpcias e alguma enxaqueca colateral, minha senhora, vá logo procurando, entre vocês quatro, ele, você, a mãe dele e a sua, a estreita interseção, um alfinete de coincidência, uma nesga de convergência, demarque a área bem direitinho, mande benzer, cuide desse quadrado como se fora a Terra Santa, do contrário, nem tente.
Minha parceira de todas as horas, ‘Cibellita Perón que pasa’, rá rá rá, lembrou-se da gente, telefonou aqui pra casa, convidou-nos para o jantar da virada, Cibelle é assim, não tem mais para onde aquele grande coração intumescer-se, o músculo (pimba!) expande-se, cabem mais dois pesos pesados dentro, e com folga. Cib e Zé são duas generosidades entrelaçadas, emanando energia curativa para o mundo, precisam procriar, o quanto antes. O encontro foi maravilhoso, indefectível, mão na mão, pé no chão, os anfitriões ainda não se deram conta, mas estão casadinhos da silva, ninguém duvide, uma graça. Simples de doer, de dar uma agonia, ninguém dá nada por ela, rá rá rá, a coisa mais querida, a minha amiga (na vida é tão bom ter um amigo, meu Deus!), esclarecendo: comprei o pernil já temperado, Dri, dei um toquezinho só, suco de abacaxi com alho poró, preparei lentilha para dar sorte, uma farofinha, um arrozinho, saladinha, claro, temos vinho, cerveja, champanhe, você, querendo, Dri, traz o refrigerante, está pronta a festa. Levamos rabanada, a especialidade dezembrina de Ronaldo, sobremesa, aliás, assaz elogiada, Rona não brinca em serviço, o leonino, na beira do fogo, é fogo. Barriguinhas forradas, partimos para a praia das Dunas, esperançosos de assistir ao show pirotécnico, em sossego, ponto para o meu marido, uma ótima ideia, restara, na areia, um espacinho para quatro, de fato, sossego garantido, não fosse a avantajada pickup preta, apinhada de gigantescas caixas de som e de fluminenses mal educados, fluminenses sim, tenho certeza absoluta, que é isso, companheiros de caminhada?, uma zoada de trocar os alvíssimos montes de lugar, um bando de fanqueiros sem respeito algum (existe este aplicativo: respeito?), sem respeito por água, terra, céus, ares e gente, a humanidade movimenta-se de ré, quando se trata de enxergar o direito do outro merecer também uma rodela do planeta, brutal desrespeito do homem pelo homem, uma constatação medonha para o último dia do ano, vamos combinar. A pickup preta trouxe a irmãzinha clarinha, uma pickupona branca, com pedigree, trezentos e oitenta fanqueiros desembarcaram da dita cuja, a visão do inferno, rapazes, moças, crianças, inclusive, crianças, sobretudo, completamente desamparadas de pai e de mãe, eu, grávida perene, tive ganas de arrastá-las dali, acredite, crianças tirando foto no espelho pra postar no facebook, quicando a bunda no chão, rala a buceta no chão, rala a buceta no chão, julguei, por um instante, que os fogos, na noite escura, anunciassem o fim de tudo, um improbabilíssimo recomeço. Seu sexo é sua rosa, menininha, você pode tocá-lo, decerto, desbravá-lo, com as próprias  mãozinhas, que estejam limpas, isso é importante, é tão natural, pode fazê-lo, tranquilamente, a sós, na intimidade do seu quarto, no seu momento de aprender prazer, quando chegar o magnífico momento. Perdi o tom da conversa na hora, perdi o prumo, o jeito, a concentração,  perdi a recém-nascida alegria. Amanheci nauseada. Quantas vezes mais a minha esperança será posta à prova? Hipersexualização infantil. A exposição dos meus pequenos a essa degradação da pessoa é uma coisa que acaba com a minha natureza, falo sério. Todo capricorniano é especialista em arruinar o caldo, sinto muito. Os aquarianos, os piscianos, os geminianos e os librianos leitores da ocasião, por gentileza, postem, no espaço reservado a vocês, os mais belos, alentadores, otimistas, edificantes relatos da noite passada. São bem-vindos, são absolutamente necessários. Feliz Ano Novo.

MENINOS SÃO JOSÉ

Toda criança me arrebata,
toda criança, por me olhar,
me arregaça as mangas do amor
e dele, desse amor,
morro de emoção.

Há nisso mais do que o fato
de criança ser igual flor,
mais do que criança ser da vida
a metáfora das coisas
e seu verdadeiro valor.

Vejo José pousando sobre a casa,
as asas dele mudam o episódio lar.
Abraço o José em todo riso
e mesmo quando não o tenho no
colo todo o tempo...
evento de criança soprando a casa!

Eu fico com as pernas bambas
quando quem me aponta é uma criança.
José é Júlia, também Carolina, também Pedro, também Clara,
também Olívia, também Antônio, também Valentina, também Lina,
também João, também Luíza, também Nicolau, também Juliano,
Guilherme, Diogo, Jonas, Mayara, Vinícius, Leon, Natassia,
José é todas as galáxias de meninos,
porque são só verdades,
belas verdades,
límpidas eternidades,
futuros mundos.

Belas!
Tenho vontade de defendê-las
das injustiças dos ditos maiores,
dos esticados que,
aprisionados,
querem aprisionar.

Por todo o sempre e agora,
toda criança quando chora,
respondo- que foi?
Quem não te tratou direito?
(Toda criança, quando chora,
acho que me diz respeito.)

Quero as palavras delas,
a nitidez sublime das conversas
delirantes e sábias,
quero os descobrimentos que trazem
em sua transparência natural!

José voa na casa e eu pulso
no ventre como uma grávida perene, meu Deus,
(todo filho do mundo
é um pouco filho meu!)


Como me amolece o coração,
barulho som de grito de infância
no colégio de manhã!
Como é, para o meu frio, lã
uma mãozinha pequenina
dizendo pra mim dos caminhos...,
elazinha dentro da minha,
como o dia carregando a noite e seu luar,
e aquela vozinha sem gastar,
me pedindo com carinho e desamparo:
me leva lá?


Não mimem crianças ao invés de amá-las,
para não adoecê-las
para não encouraçá-las!
Não oprimam crianças na minha frente,
vou interferir, vocês vão se danar,
vou escancarar!

Não usem criança na minha presença,
tomarei o partido delas,
não terão minha parcimônia,
não vou compactuar!
Não cunhem nelas a tirania,
eu vou denunciar!

Sou maternal de universo,
mil crianças caminham comigo!
Sou árvore cuja semente
se chama umbigo.
Ai... toda criança
quando grita mamãe,
respondo: que foi?
(Acho que é comigo!)

(ELISA LUCINDA)