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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Lua Cris

“Eu queria ser esse cachorro”. Isso é frase da minha irmã, referindo-se ao meu primogênito e a sua velhice muitíssimo bem assistida. Nicolau dispõe de médico particular, exame particular, tudo a tempo e à hora, não lhe falta remédio, nem petisquinho, nem a honestíssima pedigree sênior 7 anos mais, ele tem quatorze, mas tá dando tudo tão certo até agora, que ninguém mexe nesse time campeão, a saúde dele anda nos trinques, a saúde financeira da família, precisando urgentemente de entrar nos mesmos trinques, portanto, fica tudo como está pra ver se a maré vai mudar. Se a canoa não virar, a gente chega lá. Essa minha irmã é uma figura inoxidável. Já veio aqui três vezes, cada visita é um flash, meu marido gosta demais da companhia dela, os dois parecem amigos de longa data, tratam-se com um carinho, com uma intimidade que só vendo, é toda boa’ pra cá, é barbudão gostoso’ pra lá, vê-se logo que as duas almas estão se revendo, é reencontro, ninguém me convence do contrário. Em duas semanas, vão pintar as canecas juntos, na terra do frevo e do maracatu, ele vai viajar de férias, sem a minha pessoa, ela vai hospedá-lo em casa, com toda a pompa e circunstância. Saberei da farra, mas só depois, quando ele voltar, se ele um dia voltar. Essa minha irmã perdeu a sua única filhinha, uma das moças mais lindas que já vi, a filha mais doce e amorosa que uma mãe pode desejar ter na vida, em um acidente de carro bárbaro, absurdo, anos atrás. Minha irmã passou açúcar nessa galega filha dela, mas a galega também sabia ser braba feito um siri, se o momento exigisse, ninguém pisava nos calo dela não, ela subia nas tamanca, cada salto dessa idade assim, eu não sei como a minha sobrinha conseguia evoluir na passarela com tanta graça, trepada naquelas perna de pau. Agora tinha o seguinte, quando ela cismava de desintegrar a criatura, era tiro e queda. Pra derreter um coração de leão, dispunha de artilharia pesada. O olhar mendigo, uma carinha de querubim de procissão. Tinha um senhor chamego comigo, um jeitinho de dizer ‘tiiiiiiiiiiiia!’, assim mesmo, comprido, ‘tiiiiiiia, tás aqui eu nem sabia mamãe nem me disse!’, isso porque ela não falava mainha, era mamãe, eu achava lindo ela dizer mamãe e painho, isso não é comum na terra da gente. Mamãe. Batia o olho em mim e acabou-se, grudava na barra da minha saia, conversava comigo de se esquecer do tempo, era tanto assunto, assunto que a gente só conversa com tia, minha irmã ficava com um ciúme de dar dó. Ria fácil, ria alto, agarrada com um pedaço de melancia, pense numa menina apaixonada por melancia, era Cris. Tinha uma maluquice que só Cristiane fazia, quando eu menos esperava, às vezes me deitava na cama dela pra ler, pois num é que ela pulava em cima de mim, esfregava a cara dela na minha, ficava repetindo, ‘deixa eu ver o seu olhinho, deixa, deixa, deixa! Cadê? Cadê? Oxe, num tô vendo nada!’. Dizia isso imitando voz de criança, um gasguito fininho, estridente, jogava a cabeça pra trás, gargalhando, me beijava, recomeçava a farra. Eu fazia um charme, ‘sai daqui, menina doida!’, brincando de não gostar. Eu morava sozinha em Petrolina. Um dia o telefone tocou, atendi,  era Nilde, do outro lado da linha, falando baixo, balbuciando umas palavras sem o menor sentido... Aí, de repente, de dentro do pranto, eu escutei... 'Cris'. O telefone escapuliu da minha mão, me deu uma tontura, minha vista escureceu, lembro que minha garganta tapou, fiquei sem respirar, eu parei de respirar, saí doida atrás da minha ginecologista, um anjo chamado Mônica, Mônica me deitou numa cama, comprimiu meu tórax com toda a força do corpo em seus braços miúdos, comprimiu meu peito sem ar, eu grunhi feito um porco, um ronco rouco, urrei, gritei, depois desatei a chorar, não conseguia parar, nem queria, eu queria chorar até acordar. Eu havia sonhado com a amputação. No meu sonho, quem visitava minha irmã era eu, seu filho me abria a porta da sala, eu caminhava até o quarto para buscá-la, a minha irmã estava sentada numa cadeira de rodas, ela não tinha pernas. O corpo dela terminava no tronco. Eu liguei duas vezes pra Recife, falei com ela, perguntei se estava tudo nos conformes, pedi a ela que prestasse atenção ao atravessar a rua, que olhasse os carros, que se cuidasse muito, eu tinha tanta certeza de um perigo iminente, ela até caçoou de mim, ‘mas como é que eu vou sofrer um acidente de carro sem ter carro?’
Às vezes sonho que Cristiane está aqui, online, parece que ela vai se comunicar comigo, mas a mensagem não chega, eu fico sem saber, quem manda não ter o dom. Ontem eu trouxe melancia pra casa. Desde então, cada dentada é uma punhalada e um soluço, não arredo o pé do abandono de não poder lhe acariciar os cabelos de luz. Se eu fosse superpoderosa, Tia Dau, lhe dava as minhas duas pernocas, com tornozelo aleijado e tudo. Lhe dava o meu marido, os filhos, os cães, uma dúzia de netos, pedra, pau, cimento, tijolo e um carro zerinho na garagem. Comprava pra você todos os ingressos pra todos os shows do Chico, o songbook do Chico, cada CD que o Chico ainda vai lançar. Tia Dau, eu lhe dava a Europa, a França e a Bahia. Os feriados e os dias santos. O céu, meu bem,  e o meu amor também.  Seis milhões de dólares e uma maneira de explicar. Deixa eu ver o seu olhinho, deixa, deixa, deixa! Cadê, cadê? Oxe, num tô vendo é nada, Criiiiiiiiis!

5 comentários:

  1. sem palavras pra comentar...

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  2. Muito bom. Ronaldo Barroso.

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  3. eu sinto muito a presença dela tia. em sonhos, nas reuniões espíritas, ou mesmo do nada.. acho que de alguma maneira ela está por perto.
    posso até sentir aquele cheiro bom qu o cabelo dela tinha.. penso que iremos nos encontrar um belo dia... quando a gente menos esperar. penso ainda q ela deve estar perto de vovô biu e de vovó rita. Em algum lugar q a gente não tem idéia de como seja nem se é realmente um lugar...
    Obrigada pela linda crônica, tia e por nos trazer essas lembanças queridas de nossa querida Cris. Essas não se apagam jamais. Beijo, no "olhinho".. Lu

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  4. Ô olhinho bom de dar beijo é o seu!
    Há coisas que realmente são invisíveis aos olhos.
    Como comentou Lu, minha tia, obrigado pela lembrança dessa prima tão amada que não tem como ser esquecida.
    Beijo no olhinho!
    Ma

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  5. Fiz de tudo para não ler a crônica. Resisti ao máximo. Fingi que ela não existia. Nem gostava de olhar o endereço do blog, para não lembrar. Infelizmente só conheci o significado da palavra "irmão" depois de tal fato. E desde então vivo, de mãos atadas, lacradas com Elso Filho, sendo perseguido pela pergunta "quantos irmãos você tem? É só seu irmão?". Aparentemente muito fácil de responder...
    Alex

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