Pesquisar este blog

segunda-feira, 5 de março de 2012

Dor de amor

Quem me conhece sabe, nunca fui muito fã de bicho, não era mesmo, do pretérito imperfeito não era, presente perfeito agora sou, e muito, e daí? Sou amiga do sol, da terra, da água, do ar e do luar, sou irmã de todos os peixes, caramujos e preás, mãe zelosa das feras e dos insetos, sou isso inteira, nas profundezas mais profundas desse recém-nascido sentimento em mim. Minto. Sempre tive uma quedinha por elefantes e por baleias, adoro vê-los na TV. Os elefantes e as baleias são as criaturinhas  mais volumosas e mais esquálidas do planeta, pedra e pluma, doce e sal, furor e placidez, o senso do contra-senso de Deus, que Deus proteja os elefantes e as baleias, da implacável, irrefreável crueldade humana, assim seja. Hoje, aqui no meu condado, seu rei Ronaldo mandou dizer que não se mata, nem se maltrata, nem que a vaca tussa, um filho do Pai. As jias e as lagartixas vão ficando, vão ficando, aprendem a se entocar longe das vistas de mamãe medrosa, e a vida segue, vicejando atrás dos móveis e dos quadros das paredes da sala de estar. Ronaldo é protegido do glorioso São Jorge, e é muito fã de São Francisco de Assis, o mais pobre dos pobres, o frade fraterno protetor de toda qualidade de ser vivente que houve e que há, os leprosos, os bandoleiros, os nobres, os plebeus, os condes e os passarinhos, jamais existiu aquele que lhe fosse estranho ao coração. Jamais existiu e jamais existirá, amém.
Em casa habitam quatro irmãos de São Francisco: Nicolau e Valentim, dois de seus mais fervorosos devotos, Ronaldo e eu. Somos uma família desarmoniosamente feliz, salve, Jorge, líder soberano; salve, Chico,  valente padroeiro do maravilhoso mundo animal. Adormecemos juntos, amanhecemos juntos, comemos juntos, brincamos juntos, brigamos juntos, fazemos as pazes juntos, brindamos juntos, todo santo dia santo, os cães e nós, ao milagre de sermos muitos e de não estarmos sós. Quem destrata um cachorro nosso debaixo do nosso teto, cutuca o cão com vara curta, pega em bomba, porque muito se engana quem pensa que cachorro não fala, cachorro conta tudo. Qualquer dono de cachorro sabe absolutamente tudo que se passa com seu cachorro, um cachorro revela ao seu dono, com toda minúcia de medicina forense, qualquer mínima ou máxima agressão de que for vítima, lamento por quem insiste em duvidar.
Sucedeu que, de uns tempos para cá, o calor do Rio de Janeiro 40° ficou impossível do sujeito administrar na base do ventilador de teto e do climatizador. Somos uma trupe rechonchuda, gordo no calor sabe com é, sofre dobrado, Valentim, meu caçula, nem tanto, é guenzo, um fiapo de seis quilos, tadinho, mas Nicolau, misericórdia, pesado feito um touro, acostumado às baixas temperaturas de Friburgo, começou a sentir no pêlo a diferença, só vivia pelos cantos, bufando, procurando um cantinho menos quente na cerâmica pra se espichar, uma coisa de dar dó. Em mim, sem mentira nenhuma, só não pipocou brotoeja na sola dos pés, eu fiquei parecendo um guri buchudo cheio de sarna, a visão do inferno. Compramos um aparelho de ar condicionado porreta, pela graça divina, mas a instalação nos pareceu meio complexa, Ronaldo contratou um pedreiro conhecido do síndico do condomínio, um cara para a pessoa confiar até debaixo d’água, o serviço demorou, fiação, caixa de mármore, o cacete a quatro, resumindo a historinha, somente porque eu ainda trabalho fora, deixo bem claro, nesse preciso instante,que, se eu não mais trabalhasse fora, como eu gostaria, isso jamais teria acontecido, continuando a historinha,  somente porque eu ainda  trabalho fora, o tal cidadão ficou trabalhando nessa instalação sozinho, lá no quarto, ele e os cachorros aqui, dois dias, sem ninguém para tomar conta.
Os críticos de cinema têm essa mania antipática de descer a lenha em filme com final feliz, e é só por causa desse costume feio dessa gente besta, que eu só leio as resenhas cinematográficas depois de ver as películas, adoro essa palavra película, que passei muito da idade de aprovar aquilo que os pretensamente sabidos aprovam, faz um bom tempo até, que eu gosto do que bem entendo, prevalecendo, no mais das vezes, os finais simples e felizes, na minha preferência. Meu valoroso São Francisco há de me valer na hora de encerrar essa crônica, pois o que ora passo a lhes relatar, perdão, é muito triste. Semana passada, levei Valentim para passear na rua e fiquei chocada com o que seu comportamento me disse com todas as letras. Ele não fez festa na calçada, não tentou correr como um louco, altivo,  cheio de coragem, de  alegria e de euforia, não latiu para os passantes, não quis acompanhar as bicicletas, não interagiu com as crianças. Tremia das patas à cabeça baixa, olhinhos baixos, apavorado, sem se mover, saltando sobre as minhas pernas, pedindo colo,  era outro cão, miseravelmente traumatizado.Valentim sofreu uma violência grande, tenho certeza disso, uma paulada, um chute,  alguma coisa muito ruim. Ferimentos, escoriações eventuais não nos chamam a atenção, nossos cachorros estranham-se diuturnamente, e vão às vias de fato, às vezes, lanham-se mesmo, são irmãos. Esse maldito pedreiro, na minha ausência, machucou meu pequeno, não sei como nem por quê, machucou tanto que transformou a sua personalidade, fez meu filhote fraquejar, esmorecer, emudecer.  A crueldade humana não tem limite. E eu nem pude defender meu pequeno, com as próprias patas, as minhas fartas, poderosas garras e presas, porque eu nem vi. As cinco chagas de Jesus Cristo sangram em mim. Ó Mestre, fazei que eu procure mais... Perdoar.

Um comentário:

  1. lembrei do filme irmão sol irmã lua.. assisitu?
    franco zefirelli. lindo.
    amar que ser amado.. pois é dando que se recebe..
    bj, Lu

    ResponderExcluir