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segunda-feira, 19 de março de 2012

Réstia de verão

Amanheceu nublado índigo-blue-cinza-chumbo, mas eu já tinha  visto  na TV, Sandra Annemberg confirmou que o verão acabou, noutras palavras, o inesperado matiz azedo da segunda-feira que principia não compromete meu torrão de alegria , há de ser nada, não é nada, é o sol e uma circunstancial preguiça de raiar, a esfera de fogo agora amuada, esgueirando-se de queimar. O sol decidiu trajar azul-escuro-urubu, apenas isso só, para variar, preferiu germinar assim opaco, humílimo e devagar quase parando, nem é o caso de sofrer por causa disso, nem de, por isso, a pessoa se matar. Eu queria calor porque toda segunda-feira é o dia de revelar ao mundo as minhas parcas prendas do lar, as outras feiras destinadas a varrer o pó para qualquer canto escondido, a cevar a pilha colorida e encardida de roupa suja, que se avoluma mansa, aguardando o melhor momento de mergulhar e de limpar-se sozinha, que, em casa, os panos asseiam-se por si, e como bem entendem, enroscando-se lascivos nas pás de plástico, imersos na imensa cuba de Omo mais Ariel e mais o mar de fartura da máquina de lavar, isso toda santa segunda-feira que Deus dá. Desde o dia do meu bem sucedido casamento, Deus conserve, se esfreguei um paninho que fosse, entre essas tenras mãos de seda que papai beijou, debaixo do jorro de uma torneira doméstica familiar, do tanque, do banheiro, da cozinha, muito atormentada ante a possibilidade da beira do esmalte descascar, faz tanto tempo que o fiz, a coisa é tão remota, que desisto de tentar me lembrar para lhes contar. Essa história cotidiana de roupa suja acumulada, também não chega a incomodar, sequer arranha, somos eu e meu marido, por muito bem-vinda coincidência, é um perrengue a menos para o casal casado enfrentar e estranhar-se a troco de retalho, somos duas pessoas que têm vestuário para dar, vender e emprestar, surpreendam-nos dezessete quinzenas de chuva e do mais intenso frio de rachar, trapo para cobrir as vergonhas, para nós, louvada seja Nossa Senhora das liquidações malucas das grandes lojas de departamento, não haverá de escassear.

Amanheci de bem com a minha vidinha mais ou menos, decidida a não depender da cor da manhã para rir de tudo e para tudo. O fim de semana transcorreu a contento, esbanjando intercorrenciazinhas à toa, dessas que não decifram a senha do cofre, nem reformam a intimidade da alma de um reles mortal, nem de dois, nem de três. Detalhes, miudezas, franzinices, miniaturas de acaso, de mau jeito e  de imprevisto gesto, que não afetam um mosquito com tosse, de tão insignificantes, pequeninices que eu nem sei foi como vi, tão pequenas desfraldaram-se diante do meu olhar. Das duas uma e meia, a idade avançando, meus caros, ou encurta a vista, ou escolhe encolher o derredor. Meu dentista carioca, sim, não sei se conversamos a respeito, eu preciso de um dentista competente sempre alerta, a postos para me colar um caco de canino ou de molar, onde quer que eu vá, minhas presas são de farinha ou coisa similar. Pois muito bem, meu dentista carioca, um sujeito cem por cento gente fina, convenceu-me não sei como, só sei que "foi assim como um resto de sol no mar", de que eu deveria traduzir para ele um texto sobre retração de papila, o coitado está envolvido com um curso de implante dentário, desses de seis milhões de dólares, e com mais outros duzentos e oito compromissos profissionais e acadêmicos, pense num cabra que corre atrás, nem é atrás, um cabra que corre na frente... É ele. “Quando dei por mim, nem tentei fugir do visgo que me prendeu”, era eu praticamente uma especialista em gengiva sadia e doente, em frestas interdentais, dentucice, banguelice e o raio que o parta, prestes já a aceitar um convite para uma palestra sobre o tema. Adestrei o monstro de dezessete cabeças, o bicho virou um inseto de nada, uma pulga, da pessoa aniquilar entre as unhas do polegar. Um passinho de dança para mim, para ele a estrada caminhada.

O fim de semana também serviu para Ronaldo inventar de contratar uma empresa para higienizar as caixas d’água da nossa casa, mexeu em vespeiro, meu consorte, foram dois dias de dor de cabeça lá nele, uma imundície, uma bagunça, um problema puxando outro, cano assim, cano assado, até tive a impressão de visualizar um peixe-boi abraçado a um monstro de dezessete cabeças, ambos boiando dentro da cisterna, para vocês terem uma ideia, um delírio tropical. A fonte secou. O fluido da vida rareou para as nossas bandas, o aroma do perfume importado evaporou, o suor não fez cerimônia, brotou na pele, generoso, e ficou. Exalamos macho e fêmea, sem disfarce. Inalamos o cheiro do amor sem subterfúgios. “De volta da serra, com os pés sujinhos de terra”, amamo-nos mais e melhor. Banhamo-nos juntos depois, de tempestade.

O domingo foi de tapioca e de encontro. Sem planejamento algum, porque é muito mais negócio o sujeito não planejar a vida no domingo. Abriu-se uma nesga de luz no céu desbotado, a gente "apanhou, à beira-mar, um taxi pra estação lunar". Dois amigos-irmãos queridíssimos, Jessé e Cibelle, sob o guarda-sol, brindaram conosco ao milagre da praia e do peixe, domingando a valer, sem pressa do domingo acabar. Ronaldo cismou de beber cerveja, para me contrariar. Contei sete copos, oito, nove, lembrei a fluoxetina, dez, onze, falei alto, doze, pedi que parasse, parou três copos depois de querer parar,  pelo prazer de me afrontar. Vi um vulto, era o vulto do monstro das dezessete cabeças, no ar. Pisquei duas vezes, o vulto era a colina adornada de verde, do lado mais verde do mar. A primeira carraspana do marido, depois do bem sucedido casamento, a gente não esquece. E ele nem se embriagou, pobrezinho. Das duas uma e meia, ou a dor do mundo estancou de repente, ou fui eu então que better late than never , definitivamente, cresci. O retorno à casa foi de muito riso e pouco siso, mas sua filha recém-abstêmia é que estava ao volante, Dona Rita, minha mãe. A senhora pode ir tratando de se desafobar.

Um comentário:

  1. a cara mesmo de seu Biu e dona Rita...
    beijos e parabens pela cronica!
    Lu

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