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sexta-feira, 26 de abril de 2013

Tequila

Os momentos bons, as horas más, que a memória coa... Inesperadamente, a memória acende e acode, fato: a mais pura, bucólica verdade. O acidente de trânsito suscita uma lembrança quente. Acabo de me lembrar do comentário de Seu Biu, meu pai amado, idolatrado, salve, salve!, naquela tarde azul esverdeada do bairro dos Aflitos (Recife tem um arborizadíssimo, simpaticíssimo, charmosérrimo bairro chamado... Aflitos, acredita?), a caminho do consultório médico, meu pai, bastante doente naquela época, tinha hora marcada com um cardiologista, na falta de alguém mais tarimbado para assumir a importante tarefa de ‘conduzir Miss Daisy’, rarará, naquela base do ‘só tem tu, vai tu mermo, ué!’, existem empreitadas das quais, não importa o quanto o sujeito peleje, não adianta, o sujeito não escapa de jeito e maneira. Mister esclarecer, minha senhora, sem mais delongas, o seguinte: eu sempre tive um receio danado de assistir Painho nessas horas, uma insegurança do cão, o retrato da paúra quando o cara se prepara para dar a cara à tapa. Ocorre que lá em casa tem doutor a rodo, doutor de grife, com pedigree, balaio cheio, rarará, doutor saindo pelo ladrão, os alvíssimos jalecos toda vida tremularam no varal, ao sabor da brisa amena do quintal da minha pálida infância, a gente os meros mortais da Terra, portanto, padece dessa aflição de ser pequeno, de não dar conta de uma emergência urgente urgentíssima, a gente teme o vexame de sofrer o lapso, o súbito branco gelo no juízo, justamente na hora agá, ante o ataque, o talho, a convulsão, o desmaio, o raio que o parta, a gente se julga incompetente até para respirar, que dirá para uma massagem cardíaca, não sei não, no calor do susto, meu camarada, eu não consigo mexer o mindinho para acionar uma ambulância, um pronto-socorro, aposto minha retina. Dentro da minha cabeça, desde sempre, sei lá por qual razão do miolo mole, incrustou-se a eloquente certeza de que qualquer semianalfabeto de meia pataca estaria mais abalizado a levar a termo, mais ou menos a contento, a relativamente simples missão de dirigir para o seu genitor acamado. Por cima da queda, meu amigo, prevalece é o coice de uma jumentice ocasional, a gente pode emburrecer por um instante, de nervoso, ficar ali com cara de besta, entendendo somente mais ou menos mais para menos o palavreado complicado do especialista, uma aflição, ‘como é que eu vou reproduzir, tim tim por tim tim, essa complexa conversa, meu Deus?’, logo eu! Deus me livre. Antes que me esqueça completamente do comentário, enveredando afoita pela perna do pato, minha senhora, ando distraída de dar pena..., sob o céu daquela distante tarde azul clorofilada, no coração de um solene engarrafamento, Seu Biu disparou o elogio à minha direção defensiva: “Adriana, você dirige muito bem. Cuidadosa, sem alvoroço... Você está dirigindo muito bem, minha filha”. Em Recife, minha senhora, eu tinha a leve desconfiança. No Rio de Janeiro, minha senhora, ninguém duvide, não há quem dirija melhor do que eu nessa espelunca.
Meu irmão morou no Rio de Janeiro muitos anos. Aprendeu toda safadeza, irresponsabilidade, imprudência e outras milongas mais, com o ‘descolado’ condutor carioca - cariocas nascem bambas, cariocas nascem craques, cariocas não gostam de sinal fechado - apinhou todas as lições de malandragem no saco, arrastou o maldito acervo de volta para casa; Ivomar, ao volante, parece pilotar um avião, minha cunhada, coitadinha, vive sobressaltada, à base de calmante, queda-se paralisada ao lado dele, não é moleza a pessoa atravessar o asfalto como quem, súbito, decola, expande as asas altaneiro, segue a toda, vencendo o tempo e cortando o espaço. Sinto na pele a agonia, conheço o drama, Ronaldo é um motorista talentoso, agílimo, muitíssimo experiente, tal e coisa, mas apresenta o mesmíssimo arrogante cacoete dos demais compatriotas: por cima de pau e pedra, Ronaldo precisa chegar antes do resto da humanidade, ponto final do último parágrafo. Coisa de babaca, babaca de carteirinha. Jamais terei condição intelectual e psicológica de assimilar tamanha babaquice. Meu calhambeque, o glorioso Pelomeno, foi brutalmente atingido por um ônibus, isso para as bandas de Niterói, não faz muito tempo. A traseira ficou um maracujá de gaveta, a porrada foi violenta, procuro ainda compreender como e por que sobrevivemos, sobretudo isso: por que sobrevivemos? Velocidade demais, audácia demais para quem anseia do futuro algum presente. Penso que foi livramento, um milagre de Seu Biu, certamente, Seu Biu, depois de morto, virou esse poderoso anjo da guarda da gente. Ganhamos uma segunda chance. Seu Biu salva e acabou-se, você que decida como tocar o bonde daí pra frente. Para não dizer que não falei das flores, machuquei o joelho, uma bobagem, super superficialmente. O motorista do ônibus também vinha apressado pra tirar a mãe da forca, claro: ele é carioca, ele é carioca, basta o jeitinho de ele andar...
Meu primeiro veículo automotor foi o busão nosso de cada dia, rarará. Éramos tão íntimos, que eu o considerava todinho meu, rarará. Estudei e trabalhei, anos e anos a fio, montada num Gol: grande ônibus lotado. Meu segundo automóvel, rarará, adquirido a custo, com o suor do meu emprego, chamava-se Silva, era um Palio prata, bonitinho e possante, conservadérrimo, PRATA = SILVER = SILVA, rarará. Esse Uno é, portanto, o meu terceiro carro, o primeiro zero quilômetro da minha vida de pobre, rarará, daí o nome de batismo dele: Pelomeno = PELO MENOS, é zero, rarará. O quarto é consequência da culpa, suspeito, um pedido de desculpa, um remorso salobro, um profundo arrependimento, espero. Meu marido me comprou um Jac 3 novinho em folha, o bicho vai sair da concessionária para a mão daquela que ora lhes relata o acontecimento. Prego batido, ponta virada: esse vai se chamar Tequila, por causa daquela música bacaninha do Skank: seu nome é Jackie Tequila, rarará. Escolhi o nome principalmente pela assombrosa circunstância na qual ele cruzou o meu caminho (um cálice, sal e limão, por gentileza, para ontem!!), para ser um membro da família, oxente! Aprenda uma lição, assíduo leitor da minha incondicional preferência: há coisas no correr dessa nada mole vida, que, para uma pernambucana naturalmente desacelerada suportar, só bebendo! Só bebendo!

3 comentários:

  1. kkkkkk O título foi o mais atrativo pra mim confesso. Boa parte dessa história eu já conheço, né? Enfim, fui ver que tal de Jac 3 é esse. Uau! Lindo o carro, amei demais. kkkkkkkk E esses cariocas... Ntsi, ntsi, ntsi. Por isso não quero dirigir, pra quem mal sabe diferenciar esquerda pra direita, dirigir é suicídio. hahaha Enfim, termino o meu comentário com uma frase diva/linda proferida pela autora dessa crônica envolvente. "Toda araruta tem seu dia de mingau."

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  2. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk o nome é muito apropriado pras circunstâncias! Dá-lhe Tequila!
    Essa história me lembrou sabe o que? Aquele errinho de interpretação de alguém quando você nos contou essa história no finado ano letivo 2012/2013. Lembra que você disse que tinha "apanhado um ônibus" e entenderam que você tinha APANHADO NO ÔNIBUS?! Meu Deus só de lembrar já passo mal hein!

    Eu tenho um medo precoce de direção, nunca vou dirigir, sinto isso no meu destino. Vou ter que ser podre de rico pra contratar um motorista pra mim. Logo eu, que tenho uma linda coordenação motora elogiada ao longo de toda minha vida por todos à minha volta (inclusive aquela professora da quinta série... lembra do elogio que ela me fez? Eu não conseguia cortar um pedaço de papel em linha reta e a insensível dispara na minha cara sem dó nem piedade: Menino, você não tem coordenação motora não?! Guardo esse momento no fundo do meu coração até hoje)vai ser difícil estacionar, frear, andar de ré então... pesadelo, só de saber que terei que pensar o contrário do que quero fazer pro carro poder andar nesse caso, dá um cala frio. Pelo bem dos brasileiros não vou dirigir tão cedo. O governo deveria me agradecer por essa abdicação, vai economizar muito no SUS.
    Beijão Drica!

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  3. Como sempre...ótima! Adoro seu jeito de escrever, sempre dinâmica! bjs

    Mônica Athayde

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