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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Flor de humanidade

Perder-se também é caminho. Dois meses ensaiando sobre a cegueira, o beiço da bengala abalroando jalecos diversos, de todas as fragrâncias. Para quem escolhe ficar doente, adoecer é um bocado complexo, pau de dar em doido, madame, um legítimo atrevimento. Em Cabo Frio então, meu camarada, puta que o pariu, nem tente. Longe do meu interesse, Deus me guarde, cansar o leitor amigo com essa lengalenga não vale a pena, coisa mais enjoada esse papo furado de enfermidade. A questão é que tem dia somente salvo pela palavra, quando o silêncio é suicídio, hoje necessito falar. Faz uma eternidade que me queixo, para os ouvidos moucos dos médicos desse paraíso tropical, a respeito dessa fadiga generalizada, uma vontade de deitar e morrer, impotente para vencer um lance de escada, sinto uma exaustão esquisita por dentro do organismo, um esgotamento completamente injustificado, vamos combinar, a senhora e eu sabemos que o antônimo perfeito de atleta sou eu mesma, pois muito bem, a minha pessoa anda afônica de tanto reclamar, a recomendação unânime repetindo-se, repetindo-se, como num disco riscado, os doutores locais me mandando combater o sedentarismo, tem que malhar, tem que correr, tem que suar, vamos lá! A desgraça da academia, aquela invenção de belzebu, se serviu foi para machucar, com requintes de crueldade, o frágil corpo e a alma atormentada. Antes de fechar os primeiros noventa dias, conquistei o extraordinário bônus master plus turbinado de braço, perna, pescoço e sossego irremediavelmente bichados.
Vagando devagar por vagar, encontrei Dr. Luís Octávio, que, obviamente, não quer tomar conhecimento do meu pequeno plano de saúde: a consulta mais bem paga da minha vida. Não me pareceu mercenário, pelo contrário. Reivindica o preço justo, concedeu-me um desconto significativo, uma meia para professorinhas desatinadas. Que venda competência e talento, e saiba cobrar. Que atenda de graça quem não pode lhe dar um tostão. Que mande a Unimed às favas, é isso. Luís Octávio, uma flor de humanidade. Um profissional experiente, criterioso, atento, responsável e amoroso, cheio de tempo livre para o paciente. Desde que nos conhecemos, esse homem simples de doer vem debruçando-se sobre o meu problema com um desvelo impressionante, observando, escutando, anotando, investigando possibilidades, requisitando testes que jamais supus que houvesse, numa prova inequívoca de que a morada de Deus é o nobre coração desses anjos da cidade. Já descobrimos que há um processo inflamatório muscular severo, além de uma neuropatia ainda em fase de análise, parece que estamos bem perto do diagnóstico, assim seja.
Amanheci grudada no telefone, confabulando com as atendentes dos laboratórios do Rio de Janeiro em peso, tentando conseguir informações acerca de uns exames bem específicos que devo realizar o quanto antes, uma frieza absoluta no tom da voz, uma rudeza, uma falta de tato, a leitora já reparou que sandice, como as pessoas do mundo ignoram a própria natureza enquanto se comunicam? Gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente. Nos dois primeiros lugares, bem famosos, por sinal, a interlocução deu-se com androides, acho, não é possível que aquelas moças reconheceram-se gente, gente conversando com gente, enquanto a gente procurava se entender, misericórdia. A gente quase se desculpa pelo transtorno de ligar solicitando que a sujeita faça o serviço devido, o que ela tem obrigação de fazer, sinceramente. Oh, meu grande bem, pudesse eu ver a estrada, pudesse eu ter a rota certa que levasse até dentro de ti... No laboratório Dr. Sérgio Franco, entretanto, trabalha um ilustre querubim desconhecido, chama-se Giovana, Gyovana ou Giovanna, quem sabe, rarará, uma doce menina solidária cheia de bondade na veia e de tempo livre para o paciente que nunca viu mais gordo. Você não aprendeu essa disponibilidade e essa gentileza com seu chefe, querida. Costume de casa vai à praça. Trata-se de berço. Boa educação. Jovem flor de humanidade, força nenhuma no mundo interfere sobre o poder da criação.

Para Giovana, que jamais lerá o que escrevi.

2 comentários:

  1. Você sabe, no último mês sofri um dobrado com a minha mãe no Hospital da Mulher. O hospital faz partos o tempo todo mas não tinha um ginecologista quando minha mãe precisou. Quem faz as cesarianas lá são ao moças da faxina né? Foi só ameaçar ligar pro CRM que se transfigurou um médico pronto pra atender a mulher que se esvaia em sangue na cama do hospital, sem diagnóstico. Lá você conquista atendimento no grito e na ameaça: hora diz que vai ligar pro CRM, hora pra imprensa. Enquanto isso, nosso prefeito destrói a orla da praia pra construir uma nova com passagem subterrânea. Quando precisarmos de atendimento médico vamos todos pra beira da praia, lá com certeza temos mais chances de encontrar médicos do que nos hospitais dessa cidade.

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    1. Um escândalo... Cavar buraco em qualquer buraco, feito se a cidade fosse dele, com o dinheiro do povo, é bem o jeitão da figura, né? O que é o PODER, meu camarada... O que é a IMPUNIDADE...

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