Perder-se
também é caminho. Dois meses ensaiando sobre a cegueira, o
beiço da bengala abalroando jalecos diversos, de todas as fragrâncias. Para
quem escolhe ficar doente, adoecer é um bocado complexo, pau de dar em doido,
madame, um legítimo atrevimento. Em Cabo Frio então, meu camarada, puta que o
pariu, nem tente. Longe do meu interesse, Deus me guarde, cansar o leitor amigo
com essa lengalenga não vale a pena,
coisa mais enjoada esse papo furado de enfermidade. A questão é que tem dia somente
salvo pela palavra, quando o silêncio é suicídio, hoje necessito falar. Faz uma
eternidade que me queixo, para os ouvidos moucos dos médicos desse paraíso
tropical, a respeito dessa fadiga generalizada, uma vontade de deitar e morrer,
impotente para vencer um lance de escada, sinto uma exaustão esquisita por
dentro do organismo, um esgotamento completamente injustificado, vamos
combinar, a senhora e eu sabemos que o antônimo perfeito de atleta sou eu
mesma, pois muito bem, a minha pessoa anda afônica de tanto reclamar, a
recomendação unânime repetindo-se, repetindo-se, como num disco riscado, os
doutores locais me mandando combater o sedentarismo, tem que malhar, tem que
correr, tem que suar, vamos lá! A desgraça da academia, aquela invenção de
belzebu, se serviu foi para machucar, com requintes de crueldade, o frágil corpo
e a alma atormentada. Antes de fechar os primeiros noventa dias, conquistei o extraordinário
bônus master plus turbinado de braço,
perna, pescoço e sossego irremediavelmente bichados.
Vagando
devagar por vagar, encontrei Dr. Luís Octávio, que,
obviamente, não quer tomar conhecimento do meu pequeno plano de saúde: a consulta
mais bem paga da minha vida. Não me pareceu mercenário, pelo contrário. Reivindica o
preço justo, concedeu-me um desconto significativo, uma meia para
professorinhas desatinadas. Que venda competência e talento, e saiba cobrar.
Que atenda de graça quem não pode lhe dar um tostão. Que mande a Unimed às
favas, é isso. Luís Octávio, uma flor de humanidade. Um profissional experiente,
criterioso, atento, responsável e amoroso, cheio de tempo livre para o paciente.
Desde que nos conhecemos, esse homem simples de doer vem debruçando-se sobre o
meu problema com um desvelo impressionante, observando, escutando, anotando, investigando
possibilidades, requisitando testes que jamais supus que houvesse, numa prova
inequívoca de que a morada de Deus é o nobre coração desses anjos da cidade. Já
descobrimos que há um processo inflamatório muscular severo, além de uma
neuropatia ainda em fase de análise, parece que estamos bem perto do
diagnóstico, assim seja.
Amanheci grudada no telefone, confabulando com as
atendentes dos laboratórios do Rio de Janeiro em peso, tentando conseguir
informações acerca de uns exames bem específicos que devo realizar o quanto antes,
uma frieza absoluta no tom da voz, uma rudeza, uma falta de tato, a leitora já
reparou que sandice, como as pessoas do mundo ignoram a própria natureza
enquanto se comunicam? Gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente. Nos dois primeiros lugares, bem famosos, por sinal, a
interlocução deu-se com androides, acho, não é possível que aquelas moças
reconheceram-se gente, gente conversando com gente, enquanto a gente procurava
se entender, misericórdia. A gente quase se desculpa pelo transtorno de ligar
solicitando que a sujeita faça o serviço devido, o que ela tem obrigação de
fazer, sinceramente. Oh, meu grande bem,
pudesse eu ver a estrada, pudesse eu ter a rota certa que levasse até dentro de
ti... No laboratório Dr. Sérgio Franco, entretanto, trabalha um ilustre querubim desconhecido, chama-se Giovana, Gyovana ou Giovanna, quem sabe, rarará, uma doce menina solidária cheia de bondade na veia e de tempo
livre para o paciente que nunca viu mais gordo. Você não aprendeu essa disponibilidade e essa gentileza
com seu chefe, querida. Costume de casa vai à praça. Trata-se de berço. Boa educação. Jovem flor de humanidade, força nenhuma no mundo interfere sobre o
poder da criação.
Para Giovana, que jamais lerá o que escrevi.
Você sabe, no último mês sofri um dobrado com a minha mãe no Hospital da Mulher. O hospital faz partos o tempo todo mas não tinha um ginecologista quando minha mãe precisou. Quem faz as cesarianas lá são ao moças da faxina né? Foi só ameaçar ligar pro CRM que se transfigurou um médico pronto pra atender a mulher que se esvaia em sangue na cama do hospital, sem diagnóstico. Lá você conquista atendimento no grito e na ameaça: hora diz que vai ligar pro CRM, hora pra imprensa. Enquanto isso, nosso prefeito destrói a orla da praia pra construir uma nova com passagem subterrânea. Quando precisarmos de atendimento médico vamos todos pra beira da praia, lá com certeza temos mais chances de encontrar médicos do que nos hospitais dessa cidade.
ResponderExcluirUm escândalo... Cavar buraco em qualquer buraco, feito se a cidade fosse dele, com o dinheiro do povo, é bem o jeitão da figura, né? O que é o PODER, meu camarada... O que é a IMPUNIDADE...
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