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domingo, 7 de dezembro de 2014

Pileque

Tragédia é uma lembrança sem doçura. Ninguém invente de me espremer os gomos do juízo, atrás de descobrir de onde tirei isso, não lembro mesmo, digo logo. Garanto que não fui eu quem cerziu a sabidona, quisera. Saltou de uma historinha de grife, só pode. Virei essa horrenda traça mutante, amanheço e anoiteço devorando as fibras de celulose, rarará, leio de um tudo, madame, de um tudo, sem comedimento, sem critério, as bulas das bolinhas, inclusive. Sobra braço, falta braço, as letrinhas folgadas, miúdas mãos nos joelhos, sacudindo os cachos, balançando bundinhas, uma novela mexicana, a senhora entende. Devidamente apetrechada – Ronaldo me comprou uma lupa! – mastigo até as bulas das bolinhas, para meu tremendo desconsolo. Milagre a gente resistir aos efeitos colaterais desses remédios, só Jesus Cristo Superstar dentro da causa, visse? Danado é que ando com a vista ruim demais, demais da conta, ruim para cacete, bicho, o oftalmo insistindo na tecla gasta, a fim de me subtrair o avassalador desânimo do nervo ótico, rarará: “vai melhorar, vai melhorar, é uma fase!”, eu mentindo inteira que acredito. Parece sabe o quê? Estado de embriaguez renitente. Permanente. Eu hoje me embriagando de uísque com guaraná... Só que não, violão. Sobriedade de dar pena. Meu sal de frutas é a crônica, alguém duvida? Coisinha à toa, cisco, célere suspiro mais humilde, mais despojado, mais lindo, mais sedutor, mais vasto, mais definitivo esse. Meu sonrisal é a crônica. Arrasto um bonde, um transatlântico, pelo superior escrevinhador do retalho, o imortal de chinelos, o ébrio busto no meio da praça (a bênção, eterno Braga!), tudo somente porque o cabra safado vai lá trocando as pernas, o gozador bebadosamba soca os grãos de qualquer acontecimento, apronta a massa, rejunta as finas camadas dos mundos num quadradito de nada. Seje breve, mas espalhe por aí o seu recado. Estupendo. Estupendo, meu camarada.  
Bom para o fígado, bom para o coração, bom para a pele é a pessoa não ser arrimo, não ser rei, não ser exemplo, não ser referência. Não ser candidata à síndica do prédio, sequer, na vida besta. Penso que alcancei o patamar. Corri tanto na direção contrária, me deixem seguir quietinha. Cruzei, finalmente, a linha, entre os tardios, os desclassificados. Tem hora que vigio o próprio rabo e fico abismada, espiando como, apesar de latente relutância, gás forjado, ainda assim, cheguei tão longe, acredita? Vivi o suficiente para reconhecer nas entranhas a brutal incapacidade para as pequenas, médias e grandes disputas. Já perdi batalhas adoidado, brigas de foice, pegapacapá de entrar de gaiata e sair gemendo, esfolada. Não temo fraturas, exposta, quantas vezes beijei a lona, publicamente. Apenas não disponho mais de saúde para novos golpes. Ringue, holofote, ovação, medalha, esse parangolé nunca me apeteceu. Nasci descomunal, cresci imensa, vou morrer inchada, rarará, sempre desejando muito posar de zerinho à esquerda, mínima, bem chinfrim moela de galinha. Tragédia é uma lembrança sem doçura. Recordo a casa, a escola, a caminhada. A memória não é nenhuma Brastemp de incorruptibilidade, rarará. A memória é sua, puxa, portanto, o cardume para o seu lado, a memória tende a preservar sua fuça, sua alegria, sua tranquilidade, questão de tempo. A seu bel-prazer, a memória enegrece uns traços, suaviza outros, a memória pinta o sete, malandro. A memória convida ao mergulho, decerto, mas estende a rede, ninguém pula para espatifar o quengo, relaxe. Existe aqui, na minha pupila, na minha cachola, nos meus sentidos, um fenômeno em processo: livramento, merecimento, tolice, doidice, bruxaria, amadurecimento, a leitora interprete do seu jeito. Três vivas para a felicidade da sã reminiscência. Não consigo mais me lembrar sem doçura, um bálsamo para quem comeu o pão do diabo. Vultos, vertigens, veneno, males turvos, falas foscas, ruídos abafados. Paredes embaçadas e móveis esmaecidos. Rostos mofados, de cera, de éter, súbito nuvem, desaparecendo. Feliz Ano Novo. Um brinde especial ao condão do esquecimento.


Para Delma, com carinho.

Um comentário:

  1. "Bom para o fígado, bom para o coração, bom para a pele é a pessoa não ser arrimo, não ser rei, não ser exemplo, não ser referência. Não ser candidata a nada na vida besta"
    Perfeito como sempre.

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