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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Suvenir

A madame almejando variar um tanto o cardápio das paradinhas saúde é o que interessa, rarará, a madame vá por mim, aposte nos liquidozinhos multicor saborosamente cativantes. No solar dos Barroso, é tudo adoçado com demerara, o doutor mandou, disse que não vê necessidade nenhuma da minha pessoa amanhecer e anoitecer atolada em aspartame, sucralose, nada disso, minhas taxas estão de causar inveja roxa, confirmou que é para eu dar um tempo, deixar de paranoia. Cenoura, maçã, limão, laranja e uma lasca de gengibre: massa. Suco de uva, limão, canela e outra lasca de gengibre: delícia. Ameixa-seca, abacaxi, hortelã e um cadim de farelo de linhaça: huuuuuuum! Couve, pepino, tome-lhe mais gengibre, outro cadim de farelo de linhaça e a frutinha de vez de sua preferência, esse néctar vira um suspense, é plural, legião, esse “eu adoro, eu me amarro”. Craro, Cróvis! Anteontem, exemplificando, bati com kiwi, ficou felomenal, bicho. Cada pirueta da lâmina é um flash, uma grata surpresa, sabe? Bem bacana. Se perdi peso, anote aí um quilo e duzentos grama, na generosidade, rarará... “Quem me chamar, ai, vai me encontrar nos teus olhinhos”, doutor... Dr. Luíz ordena: “CALMA! Calma na alma, Adriana!”, garante que o presente aspecto de hipopótama edemaciada: o estandarte do sanatório, qualquer dia, all of a sudden, vai passar!
Evocações da menina-moça triste de Recife. Ela mais ele. Ele e ela. “Memória não morrerá”. Suvenir de Seu Biu, cara – seu rugido e seu silêncio. Toda hora, conto a Ronaldo um causo testemunhado, especialmente protagonizado por meu velho pai, do banquete à embriaguez, do alarde dos dentes aos lábios duros, cerrados: o punhal, o soluço, o pranto convulso, desenfreado, e o perdão irrestrito dos pecados. Quem não sabia que Rui, o encanador oficial da nossa família, havia, de fato, num passado distante, dado cabo de uma pessoa? Quem não sabia? Seu Rui assassinara, comentavam, uma pessoa. Nunca conheci os detalhes dessa crônica antiga de Seu Rui, Seu Rui vivia enfiado lá em casa, trabalhando, consertando os enguiços de qualquer natureza, cabra habilidoso ali, o braço direito do velho, parece que estou ouvindo Mainha falar baixinho sobre esse assunto espinhoso: “eu tenho medo, Severino”. Seu Biu e seu inseparável copo de uísque, à sombra da árvere companheira, repetindo: “Dona Rita, não adianta. Pra frente é que se anda. Águas passadas não movem moinho”. Painho consentia que Seu Rui reparasse... Painho perdoava, leitora, Painho era o mestre da segunda, da terceira, da quarta e última chance. Assistencialista filho da puta, na linha PT, rarará, uma doação desordenada, necas de monitoramento decente – dinheiro, o almoço, a janta, os óculos, a roupa do corpo - um despautério, o cúmulo do exagero, seu trote de gente a circular entre a gente, gente de todas as fragrâncias, o que, às vezes, matava Mainha de susto, de raiva: “Dona Rita, um prato de comida pra um cidadão aí no portão”. “Que homem é esse, Severino? O almoço nem está pronto!” Seu Biu, rarará, era o tempo de abraçar a penca de bananas da fruteira e levar na rua pro moço: “É Cristo, Dona Rita. É Cristo”. Meu pai dava a maior trela, confiança pra mendigo, pode, cara? Agora, a madame contrariasse, rarará... Fuzuê, rarará... O cancão cantava, piava alto... "Eu não tenho palavra de rei".  Não tinha. Sua autocrítica explodia, despudoradamente, por todas as fendas do bangalô de praia, para aqueles de córneas de brigadeiro, asseadas. Filósofo, espírita, bufão comunista, rarará, caridade supurando das próprias feridas mal cicatrizadas, feito devia ser, no plano da Terra: uma personalidade ampla, densa, sedutora, apaixonante. As lembranças alfinetam as finas camadas do meu juízo mole de lembrar, pereba, lembrar sem dó nem piedade, lembrar a torto e a direito. Tudo me ardendo e tudo assoprando. Grande dor e consolo imenso: ingredientes misturados sem critério.
Mora em Cabo Frio um primo da banda paterna, há uns quarenta anos ou mais, suponho, difícil, difícil, dificílimo topar com Valdir pela cidade, entretanto, o cabra visita bastante os netos no Rio, visita a molecada e vai ficando, vai ficando, ele e a mulher tomando conta dos pequenos, os avós são assim mesmo, ninguém se iluda. Passou dos 70, o primo Valdir, decerto. Domingo passado, antes de votar, inventei de abastecer a geladeira, fui comprar minhas folhinhas, meus legumes. No caixa do Hortifruti, a demora foi levantar a vista, tomei um susto, a cabeça rodou, uma assombração, cara. Quanta semelhança, meu Deus... Quanta semelhança! Os braços, as mãos, a boca, as maçãs do rosto. Valdir e o tio, iguaizinhos. Seu queixo ficou inteiro no queixo de seu sobrinho, Painho. Guardamos as sacolas, conversamos uma boa meia hora no estacionamento, a madame querendo, acredite, de minha parte, respeito suas crenças, suas descrenças, "não me importa, honey", cada um acredita, desacredita, na medida das suas possibilidades humanas: nossos carros, uma enorme coincidência!, nossos carros, esperando, obedientes, lado a lado. Cheguei à seção eleitoral, aconchegada, tranquila, feliz da vida, convencida de que, dentro do clã dos Guimarães de Oliveira, não fui eu, em absoluto, que mudei. Conforme aprendi: à esquerda. À esquerda da esquerda atrofiada, camaleoa, ambidestra. Nunca mudei. “Ou bem se governa para os pobres, ou bem se governa para os ricos”. Por isso, na curva perigosa das cinquenta primaveras curtidas sol a sol sertanejo, não tenho medo de nada, noves fora perereca e lagartixa. Confio demais no espelho retrovisor: o estrado da minha história.

Um comentário:

  1. Eu lembro de seu Rui,,, mas não sabia dessa estória.
    puxa vida, é uma colcha de retalhos, neh?
    linda, linda. amei. conte mais...
    beijinho, Lu

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