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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Árvore

São só dois lados da mesma viagem, a hora do encontro é também despedida. Até quem não é muito meu amigo, 68,7% dos seres viventes racionais MC’s do planeta, sabem que eu retornei de Recife um dia desses, nunca fui muito reservada no que se refere a mexericos roupa suja de se lavar em casa, os assuntos de cunho familiar, prolegômenos parentais (prolegômenos é uma palavra que aprendi com meu professor de Linguística, aliás, com ele aprendi só essa palavra mesmo, não entendo como o indivíduo pode dedicar seus exíguos dias sobre a face da terra, escarafunchando os meandros subterrâneos da Linguística, a Linguística é um negócio chato pra cacete, fala sério!), a gênese do clã, as origens, as raízes, et cetera e tal. Aliás, nunca fui muito reservada no que tange à coisa nenhuma, na minha terra o povo fala Fulano é um bucho de piaba daqueles, tudo ele sai espalhando a torto e a direito. Bucho furado de piaba... Sou. Eu gosto demais de espalhar os meus entretantos por todos os cantos. Os entretantos alheios também. Eu gosto de contar ao povo da rua o que bem ou mal se passa com a minha humilde pessoa, com os meus imediatos ou não, o que se passa com a gente que cruza a estrada ali, diante do meu nariz permanentemente obstruído, me oferecendo beijos de amor, ou sem me sorrir um tico, nem me lançar um inofensivo bom dia, eis a minha sina... É disso, afinal, que o fuchique se alimenta, “pra nascer sem nome, pra crescer enorme e se chamar prazer”. Sou do Recife com orgulho e com saudade, sou do Recife com vontade de chorar, Recife mandou me chamar, foi a saudade que me trouxe pelo braço... na alta madrugada o coro entoava do bloco a Marcha Regresso. REGRESSO é uma canção belíssima do Candeia, magistralmente interpretada por Clara Nunes, canta, meu sabiá. A letra é um estouro de boiada, outro dia consegui baixar a música, ouço de morrer aqui em casa, me lembrando dos princípios do meu falecido pai, meu pai era doido por ela: não sabia que voltavas tão meiga assim, parte, amor, já é noite, mas traga de novo o calor dos teus beijos pra mim, que eu sei dar valor ao regresso, juro, jamais te peço pra ficares, amor. Meu falecido pai sabia dar valor ao regresso. Ele dava asa às cobras criadas, abria as porteiras, mas esperava debaixo de um pé de jambo, lá em Candeias, sempre disposto a partilhar aquele lote de uisquinho com a gente, debaixo do seu nariz e da sua asa, claro. Clara Nunes morreu de morte polêmica, coitada, no dia 2 de abril de 1983. Foi coice por cima do baque de perder Elis, Elis morreu um ano antes, desencarnou fustigada, tadinha dela também, com o açoite da língua ferina dos maledicentes de plantão. Elis Regina e Clara Nunes, as cantoras preferidas do meu pai, que também arrastava um trem por Alcione, a Marrom que até hoje abala as pilastras do peito de qualquer um, quando abre aquele bocão e deixa o tempo cantar. Clara Nunes se foi para além do luar, onde moram as estrelas, no dia 2 de abril, o dia do aniversário do meu pai, por isso, nem querendo, esqueço. Especulou-se horrores na época, inventou-se tanta história cruel, choque anafilático numa cirurgia de varizes, aborto mal sucedido, suicídio, “morreu foi de apanhar do marido”, o imensurável Paulo César Pinheiro, meu Deus, quanta maldade na veia. Paulo César Pinheiro é um sujeito que trata o tema em questão, com a devida necessária reverência, em seus intensos meros poemas, o cara sabe dar valor ao regresso, e bem direitinho. Quero ver meu portão bater, quero ver minha casa encher, como há tempo já não se faz, quero um copo que eu vou beber, e quando o dia amanhecer, eu quero adormecer em paz.
Dizem as más línguas que, quando eu era pequenininha do tamanho de um botão, difícil visualizar isso, hein?, um belo dia, de noite, eu saí de casa, sem olhar para trás. Devo ter agarrado uma fralda encardida e fui embora pra Pasárgada escuridão afora, me afastando de casa a passinhos curtos, porém muito determinados. Segui andando, andando, andando, não houve Santo Antônio com um gancho que me convencesse, com bolo, bala, sorvete ou manjar, a regressar ao lar. Desse episódio não me recordo uma vírgula, mas penso o que desejo, portanto, materializo essa criança do pé aos cachinhos, quase toco essa menininha desolada, arrastando seu paninho pelas calçadas, sempre que preciso estar com ela. Não me perguntem como isso acabou que eu não sei. Sei que anos depois, quando eu já era moça feita, um dos trinte e sete psicoterapeutas da minha vida, ouviu a história e quis saber se eu sabia quais braços, naquela ocasião, teriam me reconduzido, sem um tostão de esforço, ao seio da família. Eu me lembro disso como se fosse hoje... Perguntei a ele assim: ‘mainha?’ e me senti indisposta, de repente. Saí do consultório tão cansada, me arrastei pelo coração da cidade, feito uma barata doida varrida, com o pranto a me escorrer pela face, tateando mãos etéreas, repletas de ausência e de silêncio, vertendo um rio de água salgada sobre o chão da Rua da Saudade, do Hospício, da União, do Sossego, desembocando, às tontas, na Aurora.
A casa já não está mais lá, está dentro de mim, e cantar me lembra o cheiro do jasmim. Meus sonhos deixaram minhas mãos vazias. A  recente estada em Recife me abriu sulcos na alma, é certo, doeu que até Deus duvida. “O que não parece vivo, aduba”. A recente estada em Recife inaugurou uma alameda com pedrinhas de brilhante para eu passar, rumo ao ninho. Alameda que vai de mim para nós, eu e ele, um caminho absolutamente sem volta. Ronaldo não perdeu um detalhe da viagem, ele é um homem atento às minhas (des)ilusões porque ele vive para me ver feliz e para ser feliz comigo, venha o que vier. No aeroporto, me recebeu como o sol do verão, com sabonetes cor-de-rosa em formato de rosa, e um ramalhete de rosas vermelhas de verdade. Em nobre e delicado gesto de amor eterno, distribuiu rosas de todas as cores por todos os cômodos, um bosque na estamparia das novas toalhas de rosto e de banho, e das novas colchas e lençóis. Plantou na parede um jardim de papel contato, ramos e flores lilás em torno do espelho da cama para dois. Acho que pela primeira vez, desde a manhã do nosso casamento,  não me pediu que parasse de chorar. Acolheu cada lágrima, respeitoso, repetindo 'eu amo você', e me carregou pela mão. Dá-lhe, Gilberto Gil:



Nossa
Agora é me dedicar
Inteiramente ao nosso amor
Cantar nossa música
Agora é só decidir
Aonde queremos ir
Armar nossa tenda

Armar nossa tenda, já
Que a nossa varanda vai ser
A estrada da vida
Por onde o sol passará
E a lua também virá
Contar nossa lenda

E OS TEMPOS FUTUROS VÃO
SABER COMO FOI
ESCREVER NOS MUROS VÃO
NAS PEDRAS DO CHÃO
A HISTÓRIA DA NOSSA ILUSÃO...


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