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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

As coisas da vida

Não sei se a senhora sabe do que vou lhe contar, meus leitores são tão informados, profundos conhecedores de todos os assuntos. Talvez a senhora tenha raiva de quem sabe, não sei. Aposto que sua vida vai seguir, como dantes, no quartel de Abrantes, depois que eu lhe der uma informação muito importante para a sua boa formação (rarará) intelectual e psicológica, informação muito importante sem a qual, óbvio ululante, a sua vida, como dantes, de vento em popa, mesmo aos trancos e barrancos, vá lá, seguiria: Rubem Braga é o cronista do Brasil. Procure um romance de Rubem Braga. Não há. Pesquise uma peça de Rubem Braga. Não há. Um soneto? Não há. Ensaio, conto, novela? Nananinanão. O Velho Braga viveu e morreu cronista maior, único cronista, não fez vista grossa, nem deu de ombros, nunca traiu este gênero literário maiúsculo e prioritário, de todos o mais sedutor (quer fazer seu marido gostar de ler, madame? Crônica no cardápio do contribuinte, não tem erro!), croniqueta, cronicão, crônica breve, crônica urgente, crônica desesperada, sentida. Etérea, espessa, plúmbea, permanente. O Velho Braga ouviu rugir o leão da genuína vocação, a verdadeira natureza interior – sem aditivos, sem conservantes!, arregaçou as mangas, desbastou a facão o meio do mato, amassou o barro, construiu sozinho a estrada. Ladrilhou, com pedrinhas de brilhante, para quem quiser passar, o caminho que vai dar no sol cotidiano. Beco sem saída. Caminho sem volta. Graças a Rubem Braga, as coisas diferentes do mundo uniformizaram-se, em volume, estatura, tonalidade e relevância, minha nêga, as infinitas coisinhas do mundo assumiram a proporção do olho nu, acessibilizaram-se, para a mira de todo homem despido de preconceito, que se dispusesse a desamarrar o bode e enxergar a beleza e a grandeza do insignificante.
Uma leitora muito especial e muito querida sugere que eu utilize o espaço do blog para a exposição, a opinião e a discussão de questões mais abrangentes, mais gerais, que atinjam uma quantidade maior de pessoas, meus posicionamentos sobre o que vai na mídia, talvez, alguns temas mais universais, enfim, recomenda foco e frenesi, rarará, argumenta que meu objetivo, ao escrever, daqui por diante, no seu ponto de vista, claro, é uma sugestão, veja bem, levando em consideração a possível publicação dos meus textos, coisa e tal, meu objetivo precisa extrapolar o meu umbigo, ampliar contatos, identificações, reconhecimentos – ‘produzir’ empatia (?), Adriana. Acho muito engraçado quando ela espana a asinha, toda animada, solícita até a raiz dos cabelos, esse é um gesto admirável, compreendo, ela abre a boca devagar, articulando as palavrinhas da frase, rarará, parece uma professorinha fazendo ditado: você - pode - ter - uma coluna semanal - num jornal ou numa revista, rarará, as pessoas têm muita dificuldade no quesito sacação do pedaço de praia das outras  pessoas, a senhora me desculpe do fundo do coração, mas, enquanto leio os carnudos lábios alaranjados movendo-se, sem mentira nenhuma, é apenas nisso que penso. Fico muito constrangida de tocar nessa pereba, já trouxe o dicionário, desejo demais encontrar o melhor estilo, o vocabulário mais simples, delicado e adequado, longe da minha intenção desapontá-la, gerar algum tipo de rusga, azedume, Deus me livre, guardo um sentimento sagrado de respeito, gratidão, um carinho imenso por quem se interessa por minhas mal traçadas, mas tenho de esclarecer um cabelinho de sapo para minha especial e queridíssima leitora: não sei, mulher. Não sei. Tudo me confunde, tudo me atormenta, tudo me consome. Não sei separar o alho do bugalho, o graúdo do miúdo, o sensato do sensível, o luxo do lixo, o desmantelado do inapelavelmente bonito, tão bonito que mereça ser escrito. Não sei como apareceu a margarida. Não faço ideia do que mantém no ar este estandarte. Nunca retornei ao ponto de partida para examinar a fonte, os atalhos, para dissecar a trajetória do fuchique, duvido que acredite, entretanto, é a mais pura verdade. Acontece que eu fofoco por acaso, dentro da motivação do instante, não existe preparação, não existe modelo, nada, absolutamente nada é premeditado. Costurei três historinhas sob encomenda, admito, aos amigos tudo, aos inimigos uma péssima morte, é o meu lema, tenho minhas dúvidas sobre se a parada deu mais ou menos certo, há tantas controvérsias, minha senhora. Depois, tem o seguinte principal: colunista é cachorro grande, alpiste de grife, grão que não cabe no bico capiau de ave pernambucana esperançosa de pousar as avançadas primaveras no pé de pau daquele esconderijozinho de Olinda que ninguém sabe. Acrescente-se a isso outro seguinte: se eu inventasse de dar parte ao povo das minhas ignorâncias, dos meus desconhecimentos do céu e da terra, minha senhora, a interminável lista dava um livro robusto - o compêndio das minhas mais íntimas vergonhas. Por cima de tudo, o tiro de misericórdia: meu horizonte criativo esbarra nas muralhas da preguiça congênita. Ou de um inesperado, desatinado sofrimento. Hoje, por exemplo, pretendia compor um réquiem para Napoleão, o jovem cachorro de Isadora, que, subitamente, desapareceu da vida. A notícia me desarticulou o esqueleto, o raciocínio, a linguagem, acho. Senha inválida. Rastejo, invertebrada, incompetente para balbuciar uma sílaba. Não sei, mulher. Não sei. Ao abordar uma alma humana, seja apenas outra alma humana. E não se precipite. Não ouso tocar agora esta dor alheia, ela está demasiadamente perto. 

3 comentários:

  1. Acho que esse "livro robusto", esse compêndio, eu adoraria ler... oxala um dia essa preguiça se vá, minha senhora (é o que desejo para mim também, que tenho o mesmo sangue... afff)
    Fico admiradinha, e não é puxa saco que isso não sou, como vc escreve bem, muito bonito de se ver...
    Te amo muito!! bjo lu

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  2. Eu gosto do fuchique do jeito que está, mas se é pra dar pitaco... (como se fosse solicitado hahaha) Gosto ainda mais quando você escreve sobre suas historinhas de vida. Seu casamento, a visita à Pernambuco, seus cães (que exalam saúde hahaah). Eu sou enxerido de verdade, pode falar. Mas não se preocupe, a fórmula do fuchique de atrair leitores está à pleno vapor, isso foi só a opinião de um aluno metido sabe tudo né não?!

    O professor de Língua Portuguesa, Bruno (Gigante hahaha) citou Rubem Braga dia desses, falou exatamente o que já foi dito lá em cima, um dos poucos escritores que se dedicaram a apenas um gênero literário.

    Numa madrugada de insônia dessas eu "descobri" nos becos e vielas da internet um site feinho da UOL chamado "Pensador", é um buscador de textos onde você digita o nome do autor ou título da obra e acha o que quer e o que não quer. Fiz isso procurando textos da Martha Medeiros, a próxima vítima é o Rubem!

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    Respostas
    1. ... Quem viveu a vida sem se poupar, com a alma e o corpo, e recebeu todas as cargas em seus nervos, pode conhecer, como nós dois, essa vaga sabedoria animal de envelhecer sem remorsos. (Rubem Braga)

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