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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A silver lining

Hoje, vez primeira, baixou o caboclo da colunista de jornal, minha senhora. Tenho que tirar leite de pedra, minutos esgarçados já, ligeirinho, como se rouba, tantos compromissos bancários inadiáveis, fevereiro raiou sem posses, acanhado, comedido, pobre de Jó, antevejo novos empréstimos de aliviar a carga pesada da penúria, o rescalonamento anual da pindaíba, devo demais, não nego, ando quase desistindo de pagar, é muito isso, o sujeito viver na lona, sem um pau para dar num gato, vou te contar, é uma bosta. Eu queria ser rica de saúde, de inteligência, de graça e de formosura, só que montada na bufunfa, numa grana preta de esbanjar com algumas delicadezas para o espírito, para a minha doce humanidade. Olhei a hora, até meio-dia estourando, nem que seja na base da taquigrafia, da psicografia da Lispector ou de qualquer outra alminha depenada escrevinhadeira de mão cheia, rarará, a conversa da sexta-feira vigente estará encerrada, prego batido, ponta virada.
Every cloud has... a taste of honey. Limão com mel nas veias abertas da pernambucana, minha senhora. O carioca encostou com gosto, desinteressado de mudar de freguesia. Parecíamos conhecidos de longa data, o papo virtual rolando solto, todo dia um assunto diferente, dos e-mails partimos para o MSN, as coincidências, as afinidades tomando corpo, adensando, tal e coisa, um belo dia, na calada da noite, sem mais nem menos, enviei-lhe uma foto do rosto, uma dessas fotografias bestas, cotidianas, sem batom, sem glamour, sem um vintém de vaidade, a senhora entende. “Você é muito bonita, Adriana!”, ele mentiu, com toda a sinceridade. Mandou-me sua primeira foto, foto dele não senhora, a foto era de Nicolau, o Highlander da casa, nosso velhíssimo cachorro, por quem me apaixonei, no mesmo instante, irremediavelmente, Ronaldo é um homem que entende do riscado, o sujeito conhece bem o papel da verdade. Quando ele finalmente decidiu dar as caras num retrato, senti uma mistura de tristeza e de alegria, nem sei por qual motivo, vi tanta bondade estampada naquele olhar aceso de esperança sob a espessa barba grisalha sorridente, me senti tão feliz, tão sozinha, fiquei tentando respeitar as sem razões do acaso, tudo a seu tempo, Adriana, o grande dever de casa, tudo a seu tempo, para que tanta demora, tamanha agonia, isso era eu com meus botões tagarelando, pensando alto, sonhando, delirando, por que tanto descaminho, meu querido, por que nos desencontramos tanto pelas vidas?
“Vou entrar de férias em abril, quero ver você.”, e... meu mundo caiu! As águas de março fechando o verão, meu coração sol a pino, tudo certo, tudo nos conformes, o mundo azul no céu dos passarinhos, de repente, pimba!, “quero ver você”, o cyber-afeto, quem imaginaria, de altas intimidades com a dura realidade, a senhora veja se pode. “Recife de braços abertos, só faça a gentil gentileza de tirar o cavalinho da chuva, que não hospedo a sua pessoa na minha humilde residência, mas nem que a vaca tussa!”. Reservei um quarto numa pousada, no centro da cidade, gastei a manhã e um pedaço da tarde, decidindo o que vestir, rarará, isso para descobrir, recentemente, estupefata, que ele absolutamente não se lembra da cor, sequer, do molambo que eu trajava no grande dia, homem é esse bicho esquisito e adorável, foi tanta ansiedade, tanta insegurança, o 19 de abril de 2008 evoluiu tão desordenado, mas tão despirocado, que o avião aterrissou e eu tive que mentir com vigor, em cima do salto, jurei de pé junto que o atraso era culpa de um engarrafamento monstro, rarará, quando ainda me encharcava de cheiro de flor - Nuit de Mai Rosas, no portão de casa. É só olhar, depois sorrir, depois gostar, sem sombra de dúvida. No coffee shop do aeroporto, entre um e outro cafezinho, prontifiquei-me a levá-lo ao hotel para uma ducha, uma soneca, um pouco de descanso, expliquei que havia planejado uma passadinha rápida na casa da minha irmã, queria entregar-lhe o presentinho de aniversário.
- Não posso ir com você?
- Acho que você devia se trocar, pelo menos, não sei, não quer mudar de roupa?
- Não estou bem assim???
Tênis surrados de anteontem, a velha calça desbotada, a camiseta amarela feia como o diabo, reminiscência de uma das fervorosas brigas de foice do Sindicato do Judiciário por reajuste de salário, a luta continua, meu camarada!, então você é o presidente do Sindicato, não me diga?, rarará, o destino me pregara uma ópera bufa?, surpreendera-me com esse homem maluco, um desmantelado de carteirinha? Não. Ronaldo é um homem nu. De orgulho, de afetação descabida, nu de empáfia, nu de arrogância, um homem nu de preconceito, do jeito que eu queria, um modesto coração generoso ansioso por enredar-se naquele chão, no meio daquela gente, Ronaldo viajara para conhecer todas as minhas pessoas e para tornar-se, definitivamente, conhecido. Em quatro dias, visitou meus seis irmãos e metade dos sobrinhos. Voltou vinte dias depois para novos entrelaçamentos. Desembolsamos o dinheiro que não tínhamos, rarará, para o festival de passagens aéreas Rio-Recife, até o 19 de abril do ano seguinte, quando nos casamos de todas as maneiras que há. Devidamente amarrada no civil, com comunhão de escassez de bens, rarará, desembestei para a cerimônia religiosa, fantasiada de manjar de coco, atravessei a passarela do samba do crioulo doido (sugiro que leiam uma antiga crônica, chama-se Aliança), para receber a bênção e não ficar mais falada ainda no pedaço. Sob a batuta de Mestre Zé Roberto, o pároco mais boneca da Veneza brasileira, e olhe que, de sacerdote veado, o país sem porteira vive abarrotado, contraí as sagradas núpcias e um breve resfriado sem maiores consequências. Padre Zé Roberto, um santo, um sábio, uma figura inoxidável, uma bichinha descomplicada, graças ao Pai, de bem com Deus e com todos os meros mortais, fez um sermão de sacudir a torcida, comoveu os convidados, a mim emocionou profundamente, abalou para sempre a frágil estrutura do meu confuso templo interior: o compromisso firmado esta manhã, Ronaldo e Adriana, precisa durar a eternidade. Pertençam-se, escolham-se, em qualquer circunstância, pálidos de espanto, diante da mais bonita história de amor que eu já ouvi. Depois de toda tempestade, retorna a claridade, meus irmãos. Cuidem da sua história, preservem-na, zelem por cada precioso detalhe dentro dela. Lembrem-se de guardar alguns discretos segredos íntimos, particulares, um grande amor tem subterfúgios, nuances que os amantes não revelam, nem sob tortura. Afaguem-se cotidianamente, acarinhem-se, protejam-se, atentos aos pequenos, inesperados mimos e gestos que iluminam a relação, é de mínimas gratas surpresas que se constrói um sólido, nítido casamento.

ALGUÉM TOTAL

Vem me abraçar, vem
Vem reparar bem
Quem é que abraçou quem
Pois vou te abraçar também
Quem dá um abraço
Não sabe se deu
Ou se devolveu
Ou se perdeu
Quando o abraço sai de alguém
E não volta
Não envolveu, anunciou
Renunciou, dissolveu
Vem me abraçar, vem
Vem reparar bem
Quem é que abraçou quem
Pois vou te abraçar também
Quem quer um pedaço
Um pouco de alguém
Abraçando tem
E ainda mais
Se o abraço for além
De um minuto
Aí é fatal
Envolveu
Você tem um alguém total

(Dante Ozzetti/Luiz Tatit)

5 comentários:

  1. Ai lindo como sempre. Morri ao ler: "psicografar". Tio Xavier me deixou na mão, depois preciso ter umas aulinhas com tia Isis. Ainda não findou o texto né? Tem mais? ~ ansioso ~

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  2. Que linda história, Drikaaaaaaaaaaaa. Tenho fé de encontrar um amor que eu tenha a segurança de ouvir o "Pertençam-se, escolham-se, em qualquer circunstância".

    bjs da curiosa bocuda.

    Raquel Brandão.

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  3. "Comunhão de escassez de bens"? kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk você é impagável Adriana! Chegou ao fim a história de como vocês se conheceram, mas com certeza a história de amor não acabou. E não vai acabar tão cedo não! "Cuide do seu amor pela eternidade". Quer desfecho mais bonito que o da vida nossa de cada dia? Beijos!!

    Ps: Adorei o poema no final, acabou comigo haahahahahha

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  4. Vocês sabem de uma coisa que esqueci? Fui ver o filme do casório, claro, o importante é lembrar o bom, pois muito bem, Padre Zé Roberto, num determinado momento do sermão, recomenda que Ronaldo, vez por outra, carregue para casa uma flor roubada, comprada não, roubada do canteiro de um jardineiro descuidado: "roube a flor, Ronaldo, para ofertar ao seu definitivo amor." Espetacular, não é? Só pode ser coisa de veado mesmo, rs...

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  5. Lindo de viver! Te amo, luw

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