Pesquisar este blog

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Via de regra

Quase tudo como dantes, no quartel d’Abrantes. Farelos do domingão dissolvidos no fantástico show da vida, putz!, não tem escapatória para a antipática manhã seguinte, dia branco. Segunda é dia de branco, se branco ele for. Se você vier pro que der e vier comigo. Coração comprimido, uma sensação esquisita, um choro engasgado, desenhando um beicinho amarelo nessa minha cara insossa de chuchu desidratado. Passo o tempo contando o tempo que falta para a tão cobiçada aposentadoria, ‘vem nimim, sua linda!’, dessa minha coisa antiga de querer parar, as torcidas tricolor e rubro-negra sabem. As coisas têm alma, a alma das coisas. A questão é despertá-la. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa e seus múltiplos disfarces. Queria ver a poderosa agora no meu lugar, o rebolado da madame afrontando as fogosas, a perua solta na pista de dança, giving uma big duma festa lá no seu apê, e por quê? Solamente porque o doutor mandou a senhora sossegar o facho essa semana, mais um lote de semanas adiante. É pra glorificar de pé, Igreja!! Só que não. Uma paulada, guria. Uma paulada. Caprichosamente trabalhada na desobediência com farinha, pela graça divina, já que o doutor mandou baixar o fogo dentro de casa, eu queria ir pra escola. Mister trabalhar, urgentíssima urgência. Um porre homérico de sala de aula, a molecada sem compostura, sem recato, sem limite, a sala de aula bem que podia amainar a febre do rato, a coceira crônica da professorinha escrevinhadeira, olha o paradoxo aí, gente. Se não é aguda, é crônica, orienta Rubem Braga, o príncipe da nobre literatura distraída e arejada. Sede comigo, amigo. Inspirai graça e tola sutileza. Sessenta auroras e para sempre. Amém. Navegar mares mais serenos é preciso. O estaleiro vai ser meio foda, parece. Contradição, teu temperamento confuso, dialético, rarará, coincide com o jeitão desmiolado da blogueira, coitada.
Uma mente desocupada é a oficina do tinhoso. A gente sem poder bater o prego na barra de sabão, meu camarada, faz pacto de sangue com o capeta. Falando mal, prepare o pau. Aprendi que ‘canhoto’ e ‘demônio’ são sinônimos, uma descoberta revolucionária para a minha ‘sinistra’ pessoa, rarará, ‘meu passado me condena’ revestiu-se de translúcido sentido, rarará, Deus e o diabo na terra do sol, rarará: o mais cristalino significado. O sujeito canhoto é a sétima encarnação do demônio, devia nascer morto, pense assim, que é como penso, a opinião me acompanha desde menina. A gente presa em casa, na falta do que ler, meu camarada, mergulha às tontas nos Paulos Coelhos, nas bulas de remédio, nos manuais de funcionamento da geladeira e do telefone... e nos almanaques de etiqueta. Pus-me a folhear um volume de boas maneiras, nem me pergunte de que buraco saiu esse exemplar, devo ter pedido emprestado na hora de uma gafe formidável, minha especialidade, na esperança de virar um esboço, ao menos, de mulher fina, elegante e sincera, a senhora veja o tamanho da besteira, a inutilidade do propósito, rarará. Vai ver me esqueci rapidinho do vexame, deixei pra lá, tanto que só abri o bicho agora, necessity is the mother of all invention de jerico, sinceramente. Livro está pela hora da morte, a alternativa é perecer na ignorância. Enquanto o salário não vem, sigo caçando com o pequeno guia rigorosamente dispensável– o gato de botas de grife. Quanta idiotice... A autora mandando a leitora segurar a colher com a mão direita, eu me lembrando da madre superiora, a diretora do colégio beneditino onde estudei a vida inteira, minha mãe apostando todas as fichas no milagre: um filete de religiosidade vacilante, um mínimo de civilidade, refinamento e cortesia, no futuro incerto da caçula avessada. Às vezes, desconfio que perdi uma banda do juízo por conta daquela santa freira nojenta. Assessora direta de satanás, a donzela queria porque queria que eu escrevesse com a mão direita. Vendo que não tinha o que fazer para convencer a balofa esculpida na desobediência com farinha, a infeliz era me ver com o caderno, corria para aprumá-lo, um inferno!! A quantidade de canhoto do mundo, que escreve com o papel deitado, é maior que a quantidade de barata voadora do mundo. Entretanto, para Madre Cecília, eu tinha porque tinha que manter o caderno alinhado na carteira, feito os coleguinhas destros, é mole? Detalhe importantíssimo: carteira projetada para destros. Na aula de Artes, puta que o pariu!, Madre Bertigundes me dissecava as tripas, me escalpelava o cerebelo, a gorducha emissária do diabo tinha doces desejos de dona morte, a tesoura projetada para destros tinha porque tinha que permanecer na mão direita, uma tortura. Foi quando a Ismália do Alphonsus de Guimaraens saiu da rota, destrambelhou, bateu a biela, pirou de vez na batatinha, rarará: enlouqueceu, pôs-se na torre a sonhar, viu uma lua no céu, viu outra lua no mar, rarará, meu poema preferido naquela época, rarará... Pudera... A regra é clara. Estilo é conforto. Distinção é delicadeza. O máximo do requinte é a liberdade. O cúmulo da boa educação é o respeito a si mesmo e ao dessemelhante. Não se afobe não, mas, sob o escudo da religião, o homem vil bota as unhinhas de fora, dá passe livre para as mais torpes e insanas arbitrariedades.


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

(ISMÁLIA/Alphonsus de Guimaraens)

2 comentários:

  1. Se serve de consolo pra sua vida de canhota sofrida kkkkk na etiqueta europeia o garfo deve ser segurado na mão esquerda e somente nela. A vingança contra os destros!

    ResponderExcluir
  2. Meu irmão também era canhoto e fizeram com que ele se virasse com a mão direita kkkkkkkkkkk e você é finíssima, Drica!

    ResponderExcluir