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segunda-feira, 17 de março de 2014

A voz do outro

A moça abanou a asa um segundo, foi a conta, derrubou as guias de atendimento, voou ficha, cartão de plano, carteira de identidade, tudo para tudo quanto é canto. Outra moça, menos moça, acercou-se do fuá, nariz aceso, braba siri na lata, escalpelando a guria, coitada. Um constrangimento a criatura ser repreendida assim, na frente do povo, e sem o sobrepeso da culpa, ainda por cima. Porque, sinceramente, vamos combinar um negócio: se aquela jovem, dentro daquele furdunço de laboratório apinhado, àquela hora conturbada da matina, com os devoradores de compromissos a mil, a patota futuro da nação parindo gêmeos, dando ataques epilépticos, se aquela jovem, ali, deliberadamente, de caso pensadíssimo, preferiu espalhar a papelada no soalho, arriscando-se a perder o emprego e a pele de pêssego, aquela jovem está desenganada dos psiquiatras, ela mesma amarrasse os laços da camisa e adentrasse o camburão descorado, o comboio branco leite espalhafatoso disposto a empacar o trânsito para a maluca sozinha desfilar, rarará, aquela jovem rumasse atônita, desorientada de crachá, para o acolhedor regaço do sanatório geral vai passar, concorda? Doida de beber veneno, né não? Pena que não consigo me ajoelhar, entrevada feito o cão reumático, não movi a palha. Ajudei ajuda pouquíssima, disse a ela que era besteira, menina, acidentes acontecem, ora. Ninguém pode matar, ninguém pode morrer por um atraso. Fez de propósito? Fez para ter trabalho dobrado? Fez para apanhar dos contribuintes presentes ao recinto? Ando muito ressabiada com a humanidade, sabe? Que fim levou a piedade, a doçura das pessoas? Trocar de lugar um instante, other shoes for a while, existe esse fenômeno psicossocial aterrorizante, cara, o profundo desconhecimento do outro, que não é uma escultura, é gente! Uma omissão, uma insensibilidade, indiferença por seus pares, cara, ou sua raça é desigual, meu camarada? Fico bege com um trem desses! “Não conheço nem vou, que não disponho de prazo, muito menos de paciência, tolerância, respeito, cidadania e vontade”. É como observar as crianças extemporâneas, lamentavelmente tão prematuramente adultizadas, mulheresinhas e homenzinhos aguardando a seringa, nenhuma lágrima, anões acompanhados de seus papais amorosos, diligentes, autossuficientes a duras penas, onipotentes e refratários. Em que momento elas desaprendem? Por que os pais não desejam mais que seus filhos vinculem-se? Que grande perigo pode haver? Mínima abertura, tanto melhor, as ameaças açoitam. A senhora se lembra de quando as crianças eram crianças? Eu toda vida reconheci uma criança pela janelinha aberta para o meio do mundo, o sorriso amplo, desdentado, a persiana do olhinho escancarada, vão, canal, fresta, festa, uma flor do campo convidando a brincar, a achar graça, criança é convite, qualquer criança quer relação, troca, encontro, a criança vive de convidar a gente para ser seu amigo, pode reparar. Uma temeridade isso, cara. Não é minha mentira que, esbanjando essa saúde de ferro, desde 2009, frequento o laboratório em questão, com a fidelidade de um cachorro adestrado, até porque não me concedem outra possibilidade. Não é minha mentira: faz cinco anos que repito a frase: a Unimed Vale do São Francisco está no registro de vocês como Unimed Petrolina, repito para entender que sou ouvida, lida e amada, quem não quer experimentar uma vez, cara? Faz cinco anos que as funcionárias do estabelecimento insistem em me reservar a saleta dos nunca te vi mais gorda, a cela dos estranhos, as peruas erguem-se da cadeira, vão confirmar com o Papa, retornam meia hora depois, admitindo “a senhora tem razão”. A leitora avalie o bem que me proporcionaria um modesto gesto de carinho, uma aprovação, um assentimento, uma desobediência à toa, um gozo na alma é o homem perceber uma nesga de confiança na sua palavra, por Deus, é a sua palavra. Um dedo de rua e a sombria constatação: a humanidade está programada para foder o irmão, para dificultar o passo das pessoas, seus semelhantes na Terra, já atinou para isso? O prazer supremo, o regozijo de dificultar. O júbilo de encrencar, atravancar os processos. No semblante, pupilas dilatadas, a galera cegueta de pai e mãe, nutrindo distâncias, vertendo abismos de autoridade máxima – “seu coração é uma ilha a centenas de milhas daqui” - no tom da voz, na má escolha do verbo. Impressionante. A coisa mais rara das galáxias é a gente topar com alguém como nós, um peão um tiquim mais antenado nos umbigos diversos, um cadim mais empenhado em promover o visgo, o engate, facilitar, de alguma sorte, o lado frágil, o pedaço de cá, a banda da(e) gente. Simplificar a própria vida e a vida dos outros é o nosso dever e a nossa salvação. É caminhar para o amor, gente. Fico atarantada com essa fartura de falta. Falta de quê? Da ideologia do contato, porra. De projeto humano efetivo: afetivo, solidário, coletivo. De ponte, de calço, de impulso, de aproximação, de dendrito, gente! A quantas anda a conexão de almas na sua jurisprudência?

4 comentários:

  1. Não tem como ler seu texto e não lembrar do triste caso que ocorreu hoje no Rio, falta de respeito e de humanidade tão grandes que me fizeram ler a manchete da notícia mais de uma vez pra ter certeza que não tava doido. A moça, mãe de 4 filhos e que cuidava de mais 4 sobrinhos se foi por motivo de uma bala perdida disparada pela PM que a atingiu na cabeça e no tórax. Os polícias a jogaram, veja bem, JOGARAM no PORTA MALAS do carro (provavelmente ainda viva) para leva-la ao hospital. No meio do trajeto o porta malas abriu e seu corpo ficou pendurado pela roupa fazendo com que fosse arrastado por cerca de 250 metros. Esses homens são humanos?

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  2. Ando assim, cada vez mais assustada...é a todo momento, seja na fila do mercado, seja no trabalho, na porta da escola do filho....as pessoas parecem fazer questão de deixar o outro desconfortável, ou pior, aproveitam de qualquer brecha para se "dar bem" sobre o outro. É tão absurda a situação que quando vc fala com educação e abre um sorriso, a pessoa estranha, te espreita da cabeça aos pés...tenho que certeza que pensa: "só tá me levando pra jantar antes de me foder????" rs Triste.

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  3. Minha querida, seus textos sao simplesmente o máximo. ADORO!! Voce tem o dom, menina!! Beijos! Sil

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  4. Lindo, tia!
    Falo sobre isso direto.
    Cidadania ZERO para qualquer lugar que vamos.
    Pessoas estacionam onde querem, trancam os outros, dificultam a vida dos outros... Uma carência absurda de ser humano. Absurda!
    bjos
    Manu

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