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sábado, 15 de março de 2014

A casa da palavra

-Alô?
-Quem está falando?
-A senhora quer falar com quem?
-Fernando.
-Aqui não mora nenhum Fernando, senhora.
-A senhora tem a voz parecida com a dele.
Minha voz é idêntica à voz de Fernando, um contribuinte da família de Anderson Silva, parente próximo do mito, muito possivelmente, rarará. Fernando, meu camarada cabra macho, vai falar fino assim em Las Vegas, Estados Unidos do Barak!!, rarará. Parece que Anderson mudou-se de mala e cuia, tomou casebre por lá, soube recentemente, meu desinteresse por esse cara chega a ser desconcertante. Aliás, ando mais desinteressada de coisas desinteressantes do que nunca, a leitora experimente adoecer seriamente de qualquer doença muito da chique, veja multiação, vigilante, o que se passa. Contrariando a recomendação clínica, o doutor insiste, eu desconverso: por isso que ainda bebo tanto. Por isso, também, não tão bem quanto gostaria, escrevo, escrevo de empenar o chifre, e toda semana é a palavra para sempre varrida do solo marfim, uma lástima, a palavra cigana, bandoleira, desaparecida das areias que pisei descalça, esfolando a planta, justo aquelazinha, a palavra do clímax, a palavra do cigarro, a de burilar a pedra, suavizar o contorno, a palavra de aparar as pelancas do eterno texto. Escrevo, moço. Escrevo. Se está incomodado, achando a conferência ruim para cacete, o jovem mancebo dê seu jeito. Escrevinho sinceras abobrinhas de mentira, o povo aposta na invencionice, “Adriana inventa, Adriana inventa!”, batata. A mulher desligou e ligou de novo, Ronaldo que atendeu, bom é ter testemunha, Ronaldo voltando pra cozinha, morrendo de rir: a mulher tá doidinha pra conversar com Fernando bico fino, rarará. Obviululantemente, pois, tudo a mais cândida verdade. No pequeno dia em que a minha pobre alma atormentada faltar com ela, a minha poeira de verdade, terei faltado comigo, a falta mais grave. Comigo nunca mais fico em falta, acordo interestelar, pro Das Esferas já fiz promessa. “A mentira é uma verdade que ainda não aconteceu”, com isso Mestre Quintana e eu concordamos.
“Failure to prepare is preparing to fail”. Máxima da escola de grife onde trabalhei quase vinte anos, avolumou-se-me tamanho trauma de excelência, o bichão instalou-se na medula das entranhas, decerto por causa disso mesmo, hoje compreendo. Meus amigos guardavam cadernos e mais cadernos de planos bem sucedidos, lesson plans certificados, pau de sangrar doido, minhas folhas avulsas morriam na lata do lixo, a demora era o sino bater. Por quê? Porque eu abro espaço. Porque eu confio no presente. Porque eu descarto aqui para colher adiante. Era tanto planejamento, moçada, papéis, papéis, meus inconsistentes planos de aula à janela indiscreta, olhos duros, cascos rijos, patas estritas, calosas, implacáveis, desacostumadas à humildade, à partilha e à ternura, meio mundo de gente pitacando, apalpando minhas carnes, com que direito, meu Deus? A gente pode interferir no coração da ideia do outro, cara? Que o infeliz tenha a oportunidade de crer no sonho capenga, de tentar uma manobra radical, um giro de dança, rarará, de quebrar a fuça e os dentes, de que outro modo se aprende? Há que se respeitar as ideias alheias, existem outras cabeças menos brilhantes, vivinhas da silva, espermatozoides menos espertos que deram a maior sorte, cruzaram antes a linha de chegada, rarará, de repente, pimba!, um belo e forte rebento, a gente vai afogar no lago porque não pariu a criança, pereba? A madame, por acaso, num relance, perguntou aos botões da blusa como é que não enlouqueceu até agora, do pé à ponta, com as cobranças malucas e despropositadas, filhotinhos legítimos da frescura com pedigree, do orgulho e da vaidade, a senhora dimensionou como não pirou com as mais estúpidas demonstrações de poder de isopor, no decorrer da sua nada mole trajetória profissional?
Para não espalhar que não mencionei as flores, tenho arrebentado a boca do balão no planejamento para as aulas de alfabetização de Maria, a dona da história, a minha doce assistente para assuntos aleatórios: “Maria, o teu nome principia na palma da minha mão”. Arregaça, Maria. Maria percebeu que tudo é pedaço de som enlaçado, significando o pote do seu alcance e o baú que ela ainda não descobriu, tempo haverá para revolver e afagar a terra. Sílaba, Maria. Sílaba. A gente tem que se entender com as letras, Maria, que, sem as letras, essas belezuras que mamãe beijou, sem as letrinhas, a gente não pode enxergar esses sons, a gente não enxerga nada. E no som se pode viajar, Maria. Todas as palavras são suas, o desenho, a melodia, cada sentido e apelo, tudo seu, jamais se esqueça. Nisso não consinta que alguém se meta. Todas as palavras são suas, Maria. Conto com você para encontrar a minha.

3 comentários:

  1. Não existe definição melhor, "poder de isopor", é isso. Mandar pro quinto dos infernos toda a sanidade e educação com o aluno que pede revisão de nota é mostrar o poder de isopor.

    Vou acompanhar essa história da Maria de perto!

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    1. Maria é muito inteligente, muito dedicada, 'pinto no lixo' com as tarefas debaixo do braço... Vai longe, aposte. :)

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  2. Maria tá dando mais IBOPE que a Copa !!! rsrsrs

    "Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
    Uma força que nos alerta
    Uma mulher que merece viver e amar
    Como outra qualquer do planeta
    Maria, maria, é o som, é a cor, é o suor
    É a dose mais forte e lenta
    De uma gente que ri quando deve chorar
    E não vive, apenas aguenta

    Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
    É preciso ter gana sempre
    Quem traz no corpo a marca
    Maria, Maria, mistura a dor e a alegria
    Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
    É preciso ter sonho sempre
    Quem traz na pele essa marca
    Possui a estranha mania de ter fé na vida"

    Evelyn

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