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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Grafite

Parece que vou soltar o verbo na banguela, queda livre e desimpedida, sem atrito, rarará. Fico abismada com todo aquele que padece estertores até para rabiscar um recadinho de geladeira, três vivas para o Poderoso Rabi lá de cima, distribuindo óbices e talentos, rarará, ninguém na vida é perito em coisíssima nenhuma, minha senhora, o pavão misterioso estufa, avoluma-se, quando dá fé, pimba!, é a desagradável surpresa de um bloqueio maciço no meio dos cornos – ‘não consigo fazer, caramba!’ - simples assim, desce uma cortina fosca de incapacidade, de repente não mais que de repente, que é pro pavão deixar de ser estrela. Resta ao ego do animalzinho ferido baixar a bola, Deus sabe demais arrumar as coisas, a gente se vangloria de saber tudo e sabe nadica de nada, fruindo ingênua algumas habilidades triviais, acanhadérrimas, aqui e acolá, para ajudar a tocar o barquinho carregado de insipiência, rarará, no frigir dos ovos, madame, pelo que dou graças, ninguém é perfeito. Queixo caído com quem empaca na hora de dissertar acerca de um tema qualquer: lei seca, inundação, breve chuva de verão, o raio que o parta, sinceramente. Nove entre dez queridos camaradas de caminhada concordam que minha munheca é de respeito, assinalam que levo muito jeito para a atividade, os textos resultam fluidos, redondinhos, consistentes, sustentados por uma argumentação enxuta, segura, pertinente, etc. Pela lente do amor, enxergo em tudo a grande oportunidade de uma pequena crônica vicejar serena, decerto. Presumo que predomine mesmo, no mais íntimo de mim, o dom da redação, essa facilidade para o caça-palavras e seu leque infinito de possibilidades de arranjo, rarará. Escrever abobrinhas convincentes, sem chefe e sem compromisso, acaba sempre triunfando, rarará, prevalece, de fato, sobrepujando todas as tarefas meia-boca que realizo mal para cacete, ínfima, modesta, assaz mediocremente. Trinta dinheiros à vista e divulgo a lista das minhas inoperâncias, a devotada leitora quer ver? Primeiramente, meus parcos conhecimentos de informática facultam-me o mínimo dos mínimos: acesso a contento a internet para ler o que não existe nos livros da estante, digito provas e causos, desde que não haja a necessidade de produções spielberguianas mirabolantes, faço uma apresentação básica das básicas em PowerPoint, tiro foto no espelho pra postar no Facebook e baixo música para minhas despretensiosas aulinhas de Inglês. Besides, não falo lhufas de Francês, nem de Alemão, nem de Portunhol eu entendo. Arranho a língua do patrão e olhe lá, quilômetros aquém do desejado. Zerada para trabalhos manuais, zerada para culinária, zerada para instrumentos musicais. Matemática, Física e Química sempre me causaram gastrite, vexame e perplexidade. Não troco lâmpada e não troco resistência. Não emendo, não conserto, não reparo, não pondero. Misturo as taças, subverto, sem cerimônia, a ordem dos talheres à mesa. Não sei jogar cartas, não sei pintar as unhas nem o olho, não sei andar de salto alto, não sei paquerar, não sei concatenar os primários movimentos de um polichinelo. Sequer sei dançar, uma calamidade. Acrescente-se a isso uma indisposição vitalícia e renitente para aprender as novidades da moda, tão complexas quanto desinteressantes. Em se tratando de contar historinha, entretanto, a cup of tea, a piece of cake, tudo é muito diferente. Estou tão familiarizada com a solidão do papel, com o desafio pontiagudo do lápis, desde meu mais remoto tempo de menina. Chega de longe, no vento, o testemunho: a linguagem, o balé de frases, a trança dos enredos. Não tenho como partilhar a fórmula, conceder a preciosa dica, madame, somente porque ignoro completamente de que sentido, de qual porão subterrâneo, feito um suave murmúrio de braços abertos e mãos estendidas, a palavra amiga, impreterivelmente, vem. Leio a entrelinha nas palmas. Daí, boto fé na oração: escrevo.

3 comentários:

  1. Por mais que eu retorça as tripas até sair sangue não sou lá de escrever história. Sou de escrever sobre história, isso sim hahaha. Eu me dou bem em falar do que já está aí, saltando aos olhos, pulando na frente de todo mundo e até gosto! Gosto de mostrar meu ponto de vista, mostrar as relações disso com aquilo e aquilo outro e ainda exercitar o miolo mole. Agora falar do que está escondido aqui e acolá, tão escondido que só existe na cabeça da gente... aí eu travo.
    A sorte grande e ter no mundo gente de quem ler, você que tem o dom de escrevinhar tão bem, por exemplo. Não é pra qualquer um essa história de escrever não!

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    1. Escrever e coçar, meu querido Philips, é só começar! Nem vem, que você é craque! Beijo da Gorda.

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  2. Linda crônica! Aliás, "metacrônica". Delicada declaração de amor ao grande "herói e bandido" de quem ama as palavras como "fazer poético", como libertação e cura: o ato de escrever(-se). E, por mais que você banque o mais obstinado Judas Iscariotes de suas próprias qualidades ("Não tenho como partilhar a fórmula, conceder a preciosa dica, madame..."), sem ganhar nem uma moedinha de prata pelo serviço de autotraição (alta-traição!), a gente vai saboreando suas histórias, suas metáforas, sua poética nessa espécie de "Chá Maluco" das sextas-feiras. "- Solta aí mais um 'cup of tea' e uma 'piece of cake' pro freguês!"

    "- I'll be back!"

    Bruno

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