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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Quadrilha

“Família, família, papai, mamãe, titia... Vive junto todo dia, nunca perde essa mania”. Eu nem sou muito fã dessa música, nem sei quem canta, Titãs, arrisco um palpite. Entretanto, vira e mexe, cantarolo esse pedaço, o único que decorei, com aquela cara de quem curte Titãs adoidado, mas é mentira minha. Da banda, eu só conheço bem mesmo é aquela música que diz que o cara não botava nem o pé na escola, trabalhava sem se distrair e só via carne, se roubasse um frango, “Marvin, agora é só você, eu fiz o meu melhor, e o seu destino eu sei de cor”, essa aí é genial, admito. Falta agora eu googlear a letra, para descobrir, abismada, que a letra nem é coisa de Titã nem nada, melhor deixar isso de lado e levar o barco, devagar. A minha patética ignorância no assunto, aliada ao meu estúpido preconceito com relação ao roque nacional, que eu não sou perfeita, eis o que me impele a prosseguir, tocando o barco em águas rasas, prefiro não aprofundar a pesquisa. Nem fazer projeto de pesquisa eu sei, avalie o despreparo. Tem música que não serve para coisíssima nenhuma, é ruinzinha de dar dó, daquela de romper a membrana do tímpano, coitada, mas a gente mal ameaça investigar quem envernizou a barata, a bicha gruda no juízo da gente, a gente canta a bicha todo dia, canta que se espanta. Um tempo desse,  ano passado, por causa de um comercial de cd da banda Calypso, flagrei-me a repetir “tome chá de maracujá, que essa loura aqui não vai te acalmar, sai de mim”, blá blá blá, pelo menos três vezes ao dia, um mês inteirinho. A mídia adverte, subverte, perverte, converte o que você não imagina, naquilo que você, nem de leve, suspeita. A mídia é um perigo. “Família, família, papai, mamãe, titia...” A gente sabe que “a roupa suja da cuja se lava no meio da rua, ...despudorada, dada, à danada agrada andar seminua... E continua”. “Que o Chico Buarque de Holanda nos resgate... E xeque-mate”.
Família serve para fazer raiva e para fazer falta, um velho sábio de Ouricuri revelou, certa vez. Eu escutei o velho sábio e concordei com a pessoa dele, em grau, em gênero e em número, até que a morte me separe deles, o clã dos Oliveira. A intrépida trupe é numerosa. Vinda dos que vieram antes dela, Dona Rita inaugurou a nova leva. Rebentou oito vezes, deve ter engravidado umas dez ou doze, sete vidas vingaram, sete é conta de mentiroso, mas é a mais pura verdade, sendo eu a problemática caçula raspa do tacho, e Tia Iêda, mãe de todos, a problemática primogênita. Os preás do meio deram cria que deu cria, de modo que, assim por alto, descontando a minha má-temática, o saldo é quase trinta, até o momento, isso porque eu desconsiderei os agregados, aderentes e simpatizantes, excluí os vindouros filhos dos netos ainda solteiros porém enamorados, esses também já se coçando para contrair matrimônio e perpetuar a espécie, as tais alminhas ainda penduradas, futuro do presente, presente do futuro, sei lá. Crescei e multiplicai-vos, ordena o livro santo. Seu Biu e Dona Rita, dois santos seres de luz, trezentos e oito andares acima, vez por outra, debruçam-se sobre o parapeito da janela do céu, para olhar a prole, proliferando feito mato rasteiro, porteira afora. Quando a molecada ultrapassa todos os limites do razoável e do execrável, Seu Biu mais Dona Rita, muito bem assessorados por Cristiane (a menina santa, a galega intérprete da mocidade independente, o anjo porta-voz da juventude transviada), a superpoderosa santíssima trindade intervém, manda seus recadinhos do coração, via Tia Isis, a paranormal correspondente internacional  interplanetária da família. A comunicação abunda, clara e direta, em high definition. Tia Isis acessa uma planilha reencarnatória pormenorizada só dela, e elucida todas as sem razões inerentes ao milagre de estarmos todos enlaçados, aqui, agora e depois, tudo junto e misturado, na perfeita harmonia do desequilíbrio da carne convulsa, sem vestígio de viabilização de escapatória, quem quiser que fuja, o reencontro é certo como a lua, chega me dá um frio na barriga. Pode acreditar, todo aquele que, piamente, acredita. Eu, de minha parte, acredito em tudo que desejo, sobretudo na magnânima, porque generosa e benevolente, herança genética - salve Mendel, salve ela! -  herança atávica, vislumbrada no açúcar e no sal, no fortuito gesto, na fibra do cabelo, no tom da voz, no olhar, no queixo, na graça e na teimosia.
Desde que nos mudamos para cá, a pousada dos Barroso está a todo vapor. Gente da família visita muito a nossa casa. Penso se o paraíso somos nós, os melhores anfitriões que conheço, ou é o lugar, pois moramos onde as pessoas passam férias, lê-se nos adesivos dos carros da vizinhança. Habitar o paraíso é uma faca de dois legumes, os radicados nos Lagos cariocas compreendem a minha língua, sabem muito bem do que estou falando. No verão, peça para morrer. Armazene comida para três meses, os supermercados recebem apenas turistas, de dezembro até fevereiro, noutras palavras, nem no estacionamento você consegue entrar. Vá relaxar na cozinha, congelando o almoço e a janta para os três meses de sol a pino, os restaurantes recebem apenas turistas, não existe vaga para o seu carango nos oito quarteirões em torno. A vaga restante é a sua própria garagem, e vão lhe custar dez reais as duas horas de permanência. Caminhe até a praia, sem reclamar da vida, é verão. Chegando lá, permaneça de pé, contemplando o mar azul, a orla recebe apenas turistas, não sobra areia para acomodar o seu traseiro. Se dirigir, beba muito mais do que o permitido, sóbrio, meu bem, você não vai sobreviver aos engarrafamentos diários. A contrapartida é a delícia de surpreender-se com a visita das crianças. Criança tem essa capacidade de abalar as estruturas da casa, se a casa tiver cachorro, principalmente. Gente que não se amarra em criança misturada com cachorro, pra mim, é gente em quem a gente não pode, nem deve, confiar.  Semana passada, hospedamos, mais uma vez, meu sobrinho Eduardo e a mulher. A novidade foi o kit completo: ele, ela e  a duplinha Lara e Duda, minhas sobrinhas-netas. Vocês me perdoem a franqueza, meus outros tantos adoráveis parentes visitantes ocasionais, minha franqueza ainda vai acabar comigo, mas as meninas são divertidas demais. Rir é o melhor remédio. Ri muito, Ronaldo riu ainda mais.  Eduarda e Valentim se estranhavam todo dia, aterrorizados, um com o outro, protagonizando as cenas mais hilárias, inesquecíveis. Nunca vi meu cachorro tão desparafusado, maluco, histérico, latindo de rachar, quanto mais velho, mais descompensado fica o meu pobre cachorro, ele é igualzinho à dona. Eduarda fugia dele como o diabo da cruz, ele marcando em cima, rosnando, avançando no calcanhar dela, uma correria, uma algazarra, um pastelão. Foi dela a célebre frase, no momento em que, segurando as lágrimas, despedíamo-nos: ‘ninguém precisa chorar, Tia Adriana já vai pra Recife mesmo... Vó é que vai chorar que só, mas quando Tia Adriana voltar pra cá de novo’, disse isso com aquela carinha linda, rindo-se toda, os dentinhos separados à mostra, eu achei a coisa mais linda. Durante a ceia de Natal, Lara, a irmã de Eduarda, que acabara de experimentar rabanada, encarou Ronaldo, abrindo o sorrisão de dentinhos separados, as duas saíram ao pai, os mesmos dentes separados, Lara disparou: ‘Tio, você pode guardar umas dessas ranabadas pra gente levar na viagem, por favor?’ Ele riu de perder o tom. Todos rimos. De perder o fôlego. No dia em que as duas tomaram banho juntas, aqui embaixo, Eduarda percebeu que esquecera o xampu no outro banheiro; Lara, sabida, desenrolada de carteirinha, tranquilizou a outra: ‘Não tem problema não, Duda! A gente usa os de Tia Adriana, olha só, ela tem vários!’. Dessa história eu só soube à noite, de volta pra casa, do trabalho. Vânia, a madrasta-mãe, foi que escutou a conversa e me contou, também entre risadas. Que menina mais engraçada! 
Família serve para fazer raiva e para fazer falta. As crianças partiram, os cães sossegaram, foi-se o que era doce: o rebuliço e a euforia. Instalou-se aquela paz fastidiosa,  desconfortável e intrusa que teríamos preferido desabrigar do nosso teto. Não vejo a hora de ter um neto. Aguardo, ansiosa, a notícia da gravidez de Erika, a sobrinha carioca que Deus me deu sem eu pedir, uma pessoa de quem gosto tanto, que é como nossa filha querida, vivendo ali, pertinho da gente. Ela me confidenciou, na festa do casamento, seu plano infalível, tomara..., de maternidade, para breve. Vinde a nós os pequeninos. Vinde a nós o seu bendito fruto, filha, com muita saúde. “Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Rita que amava Dito que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava toda a quadrilha”. “Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família”. À família. Ao milagre de estarmos todos enlaçados. Depois, aqui e agora.

2 comentários:

  1. Muito lindo tia!
    A nossa família é um enorme laboratório. Povo doido arretado. kkkkkkkkkkk Que encanto!
    bjs
    Manu

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  2. Ronaldo disse: "Famulus", termo do latim que significa "escravo doméstico" na Roma antiga. Um modelo de vínculos intersubjetivos narcísicos e objetais, do qual emergirá a representação do antepassado que desperta identificações cheias ou ocas, estruturantes ou aniquiladoras.Família, em síntese, é tudo, é você, é o meu amor por você que é o meu tudo. Seu escravo doméstico - Ronaldo.

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