O
que não tem remédio, remediado está.
Amanheci
de cabeça quente, abacaxi para todos os gostos, daiquiri matutino sem açúcar,
azedando a minha doce sexta-feira, meu mel, meu favo, o dia da graça.
Desmantelada, pintei de azul meus sapatos, ilustríssimo conterrâneo Carlos
Pena Filho. Tomei o rumo da rua, andei por andar, andei. Todos os caminhos
convergiram para ela, minha mãe, a matriarca da turba desvairada, a senhora do
meu destino. Dona Rita tinha pouca escolaridade e muito juízo. Sabidinha da
Silva, confiou seus rebentos aos cuidados da sabedoria popular, uma decisão
muito acertada, Deus fala pela boca do povo, ela sempre soube. Pois bem, os
ditados certeiros de Dona Rita perseguiram-me no trajeto de volta para o meu
canto, desassossegados, uma enxurrada, uma avalanche - sinal de que devo
compartilhar o ensinamento. Aos meus mais íntimos tormentos respondia, só para
citar um exemplo: o que não tem remédio, remediado está, Adriana, apenas dê
tempo ao tempo.
Tempo
ao tempo. Nunca ouvi verdade mais verdadeira. Se
angústia e desespero resolvessem meus problemas, querida, minha vida seria um
mar de rosas cor-de-rosa, que de chororô e de esperneio, vamos combinar, eu
entendo. Outro dia, conversava com Manuela, minha adorada afilhada e sobrinha,
exatamente sobre a onipotência do Master of Universe – o Tempo. Manuela e o
irmão cresceram na discórdia, inimigos mortais, um precisando do extermínio do
outro para sobreviver, a relação de amor e ódio mais absurdamente complexa e dolorosa
que tive a oportunidade de acompanhar de perto, entre pessoas do mesmo sangue, completamente
dissuadida já, de alguma possibilidade de entendimento, de uma nesga de
harmonia dentro daquela casa assombrada. Sofri demais por minha irmã Nilde, a
mãe dos dois, uma mulher de muita fibra, de muita coragem e de muita fé, que
viveu para os filhos, para criá-los para o bom e para o bem, ela e o esposo,
Manuel, um dos homens mais extraordinários da minha convivência. Dê
tempo ao tempo. Pois bem, venho, por meio desta, anunciar, nó na
garganta, que o inimaginável aconteceu: a paz. O tempo tudo acomoda, e não é
porque a gente esquece. É porque a gente envelhece.
O
errado é da conta de todo mundo. Outro dia, corrigindo
provas, surpreendeu-me um desenho de bruxa, mais um palavrão bem cabeludo,
justamente ao lado do meu nome, na prova escrita de uma aluna, isso
recentemente, aqui na escola do Rio. A bruxa era eu. Senti-me esbofeteada na face,
fiquei estupefata com o atrevimento da moça, achei aquilo tão desrespeitoso, ainda
mais assim, rabiscado em um documento, decidi conversar com ela na aula
seguinte. Pois bem, a sabidinha da moça, que não é besta, escafedeu-se, na aula
seguinte. Contei o ocorrido a seus colegas, sem omitir uma vírgula, abri o
coração, exteriorizei todo o meu sentimento de indignação e tristeza sobre a debochada
atitude, falei e pronto, lavei e enxaguei a égua. O errado é da conta de todo mundo, minha mãe soprando ao pé do
ouvido. Repeti, palavra por palavra, quando a tal moça, nariz empinado, veio
queixar-se, uma semana depois: o errado
é da conta de todo mundo. Portanto, caros leitores do meu delírio, quem sai aos seus, não degenera,
herdada a herança, viva a vida num BBB, como se lhe vigiassem cada soturno passo, andando na linha, agindo reto, ainda
que sozinho e no breu da noite. É da conta de todo mundo, aquilo que se faz
fora do certo.
O
risco que corre o pau, corre o machado, a viga mestra do meu bem
sucedido matrimônio, um relacionamento fechado a sete chaves, advirto-os, para
começo de conversa. É provérbio da minha santa mãezinha, a respeito de como
conduzir um casamento. A máxima, com a qual concordo, do dedão do pé até o alto
do cocuruto, é feijão com arroz sobre o linho do leito conjugal em que dormimos
meu marido e eu, Dona Rita e Dona Conceição, minha sogra, uma mulher que admiro
sem ver. Nós quatro sabemos que para um
doido, outro na porta. Quem com
ferro fere, com ferro será ferido, as tentações pululam nas esquinas do
cotidiano. O que equilibra um chifre é outro, de igual envergadura, Ronaldo que
nunca se esqueça disso.
Em
terra de sapo, de cócoras com ele. Curto e grosso. Nunca
descobri maneira mais eficaz de um filho assimilar a noção de hierarquia. Galo onde canta, janta. Isso era mainha
sugerindo qualquer coisa que lhe conviesse, uma danadinha. Do ditado, a gente
entendia o que ela queria. Esse servia para ensinar que, para o sujeito cantar
de galo, o sujeito precisa antes fazer a feira e pagar as contas. Primeiro a
independência financeira, depois a desobediência às regras que não lhe
parecessem justas. Justíssimo. Para mim, tudo fez e faz todo o sentido. Servia também para a gente entender que ela
não pretendia preparar comida depois dos pratos lavados e da cozinha arrumada.
Os retardatários que comessem alhures, retornassem ao lar de barriga cheia. Mato tem olhos e paredes têm ouvidos. Casa
de ferreiro, espeto de pau. Escreveu, não leu, o pau comeu. Muito riso, pouco
siso. Sua alma, sua palma. Ruim com ele, pior sem ele. Quem muito se baixa, o
fundo aparece. Gaiola bonita não dá de comer a passarinho. Roupa suja, lava-se
em casa. Tudo demais é veneno. Água morro abaixo, fogo morro acima e mulher
quando quer dar: ninguém segura.
Quem
boa Maria faz, em sua casa está em paz. Fui menina e fui moça,
escutando a frase, acolhendo cada fonema, compreendendo tudo, perfeitamente.
Dona Rita nunca gostou de ver a prole por aí, espalhada pelo oco do mundo.
Queria os pintos debaixo da asa. Um belo dia, inventei de alisar banca de
escola, fui bater na universidade, um desperdício. Uma professora dessas que
não pisam no assoalho, uma sem graça de carteirinha, nem me lembro do nome da
insossa antipática, um belo dia, sem mais nem menos, o pavão metido a cavalo do
cão quebrou o encanto: boa romaria faz
quem, em sua casa, está em paz, corrigiu. A senhora, por acaso, dependia
dessa informação para seguir vivendo? Nem eu. Fica o dito por não dito. O melhor deles, o
mais impactante, guardei para o fim, para suas reflexões mais (im)pudicas, esse me cai como uma luva: língua
falou, cu pagou. A minha cara. Minha velha temia pela indefectível
dobradinha tagarelice – abigobalice, a qual, desde cedo, caracterizou, insígnia distintiva - verruga - a natureza de
sua caçula. Sabe-se lá o que será de você, Adriana, tão avoada, e com essa língua
de passadeira de igreja. Nunca lhe tirei
a razão, jamais poderia.
SONETO DO DESMANTELO AZUL
SONETO DO DESMANTELO AZUL
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas
por não poder de azul pintar as ruas
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
A minha mãe sempre solta um "Boa Maria faz, na sua casa está em paz".
ResponderExcluirFelipe S.
A sabedoria popular tem seus encantos "que a própria ciência desconfia"; mais realmente a mais difícil de cumprir, mas é a mais sábia, em minha opinião, é:"de tempo ao Tempo", pois ele tudo resolve. Diante dele somos impotentes.
ResponderExcluirBoa noite.
Um grande abraço de sua nova seguidora Lílian Cortines
Como posso não ter lido a crônica que eu esperava em tempo hábil de ser a primeira a comentar?! Eu tô doente com isso!!
ResponderExcluirConversava com Silvana ontem, no café São Braz, sobre o que vc falou na crônica, tia.
Falei até de vó Rita, que não pensava duas vezes antes de distribuir tapa nos rebentos sem querer saber se cometia injustiça ou não. Hoje os filhos falam sobre isso sem mágoas, eles brincam! Ninguém usa isso para falar que é infeliz...
Pq eu, que também quero ser forte, ficaria escondida atras de uma idiotice qualquer?!
“Quem vive de passado é museu.“
Passei a caminhar mais leve quando resolvi levar tudo de ruim que sentia na brincadeira e acreditem, fiquei até menos burrinha depois disso. A pior coisa do mundo é não enxergar o outro. Alguém aqui se atreva a chamar meu irmão de feio!
Bjus
Manu ;D
Parabéns pela crônica, tia! Muito boa, aliás, como todas que li até agora. Os ditados realmente fazem parte de nossa vida, repassados de pai para filho (ou de mãe para filho kkkkkk) e acredito que serão transmitidos para as próximas gerações, mesmo que de forma indireta.
ResponderExcluirPosso perceber isso claramente em nossa família, os caminhos são diferentes, mas os traços de uma base comum são evidentes. Uma base sólida de amor e sabedoria que nos permitiu crescer com segurança. Onde ensaiamos os primeiros passos, sempre amparados, experimentamos vitórias e derrotas, decepções, acertos e tropeços, até que pudéssemos caminhar firmes na direção do futuro. Um terreno fértil que permitiu que as sementes brotassem, se desenvolvessem e dessem bons frutos, cada uma ao seu tempo. "Dê tempo ao tempo", afinal ele é um sábio compositor de destinos.
Muito bom o trecho que fala do relacionamento, concordo plenamente! "O risco que corre o pau, corre o machado,... para um doido, outro na porta. Quem com ferro fere, com ferro será ferido.". E, gostei mais do último, que não conhecia: "O que equilibra um chifre é outro, de igual envergadura" kkkkkkkkkk
Também achei linda a definição de Manu: "Passei a caminhar mais leve quando resolvi levar tudo de ruim que sentia na brincadeira e acreditem, fiquei até menos burrinha depois disso. A pior coisa do mundo é não enxergar o outro. Alguém aqui se atreva a chamar meu irmão de feio!". Uma verdadeira lição da maturidade que adquirimos com os anos. Um tesouro que não se compra na esquina, é preciso viver, amar, correr riscos e, porque não, sofrer pra aprender de verdade!
Só senti falta de um: "Vão se os anéis, ficam os dedos.". Quem sabe não é o tema para uma outra crônica hehehehehe
Beijão tia e parabéns pelo belo trabalho,
Guga :D
também achei lindo, manuca: alguem se atreva a chamar meu irmao de feio!! linda demais vc... tambem aprendi e aprendo cada dia a me transformar enxergando o outro... e o que tem de ruim em nós, o budismo me ajuda a enxergar que a flor de lotus nasce da lama, do lodo.. dali consegue brotar a flor.. um beijo querida! e tia, obrigada pela lembrança terna de vovó rita,... ;))
ResponderExcluirum dia mainha me disse: a gente vai perdendo o medo da morte sabe como? quando muitos dos nossos queridos partem para lá... ai dá vontade de encontra-los de novo, ou entao a gente pensa... lá nao deve ser ruim, tem painho, mainha me esperando...
enfim, coisas da minha mae... eu disse se apresse naum, mainha, deixe eles esperando mais um pouquinho... kkk
outro beijo