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sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Tem o dito

O que não tem remédio, remediado está. Amanheci de cabeça quente, abacaxi para todos os gostos, daiquiri matutino sem açúcar, azedando a minha doce sexta-feira, meu mel, meu favo, o dia da graça. Desmantelada, pintei de azul meus sapatos, ilustríssimo conterrâneo Carlos Pena Filho. Tomei o rumo da rua, andei por andar, andei. Todos os caminhos convergiram para ela, minha mãe, a matriarca da turba desvairada, a senhora do meu destino. Dona Rita tinha pouca escolaridade e muito juízo. Sabidinha da Silva, confiou seus rebentos aos cuidados da sabedoria popular, uma decisão muito acertada, Deus fala pela boca do povo, ela sempre soube. Pois bem, os ditados certeiros de Dona Rita perseguiram-me no trajeto de volta para o meu canto, desassossegados, uma enxurrada, uma avalanche - sinal de que devo compartilhar o ensinamento. Aos meus mais íntimos tormentos respondia, só para citar um exemplo: o que não tem remédio, remediado está, Adriana, apenas dê tempo ao tempo.
Tempo ao tempo. Nunca ouvi verdade mais verdadeira. Se angústia e desespero resolvessem meus problemas, querida, minha vida seria um mar de rosas cor-de-rosa, que de chororô e de esperneio, vamos combinar, eu entendo. Outro dia, conversava com Manuela, minha adorada afilhada e sobrinha, exatamente sobre a onipotência do Master of Universe – o Tempo. Manuela e o irmão cresceram na discórdia, inimigos mortais, um precisando do extermínio do outro para sobreviver, a relação de amor e ódio mais absurdamente complexa e dolorosa que tive a oportunidade de acompanhar de perto, entre pessoas do mesmo sangue, completamente dissuadida já, de alguma possibilidade de entendimento, de uma nesga de harmonia dentro daquela casa assombrada. Sofri demais por minha irmã Nilde, a mãe dos dois, uma mulher de muita fibra, de muita coragem e de muita fé, que viveu para os filhos, para criá-los para o bom e para o bem, ela e o esposo, Manuel, um dos homens mais extraordinários da minha convivência. Dê tempo ao tempo. Pois bem, venho, por meio desta, anunciar, nó na garganta, que o inimaginável aconteceu: a paz. O tempo tudo acomoda, e não é porque a gente esquece. É porque a gente envelhece.
O errado é da conta de todo mundo. Outro dia, corrigindo provas, surpreendeu-me um desenho de bruxa, mais um palavrão bem cabeludo, justamente ao lado do meu nome, na prova escrita de uma aluna, isso recentemente, aqui na escola do Rio. A bruxa era eu. Senti-me esbofeteada na face, fiquei estupefata com o atrevimento da moça, achei aquilo tão desrespeitoso, ainda mais assim, rabiscado em um documento, decidi conversar com ela na aula seguinte. Pois bem, a sabidinha da moça, que não é besta, escafedeu-se, na aula seguinte. Contei o ocorrido a seus colegas, sem omitir uma vírgula, abri o coração, exteriorizei todo o meu sentimento de indignação e tristeza sobre a debochada atitude, falei e pronto, lavei e enxaguei a égua. O errado é da conta de todo mundo, minha mãe soprando ao pé do ouvido. Repeti, palavra por palavra, quando a tal moça, nariz empinado, veio queixar-se, uma semana depois: o errado é da conta de todo mundo. Portanto, caros leitores do meu delírio, quem sai aos seus, não degenera, herdada a herança, viva a vida num BBB, como se lhe vigiassem cada soturno  passo, andando na linha, agindo reto, ainda que sozinho e no breu da noite. É da conta de todo mundo, aquilo que se faz fora do certo.
O risco que corre o pau, corre o machado, a viga mestra do meu bem sucedido matrimônio, um relacionamento fechado a sete chaves, advirto-os, para começo de conversa. É provérbio da minha santa mãezinha, a respeito de como conduzir um casamento. A máxima, com a qual concordo, do dedão do pé até o alto do cocuruto, é feijão com arroz sobre o linho do leito conjugal em que dormimos meu marido e eu, Dona Rita e Dona Conceição, minha sogra, uma mulher que admiro sem ver. Nós quatro sabemos que para um doido, outro na porta. Quem com ferro fere, com ferro será ferido, as tentações pululam nas esquinas do cotidiano. O que equilibra um chifre é outro, de igual envergadura, Ronaldo que nunca se esqueça disso.
Em terra de sapo, de cócoras com ele. Curto e grosso. Nunca descobri maneira mais eficaz de um filho assimilar a noção de hierarquia. Galo onde canta, janta. Isso era mainha sugerindo qualquer coisa que lhe conviesse, uma danadinha. Do ditado, a gente entendia o que ela queria. Esse servia para ensinar que, para o sujeito cantar de galo, o sujeito precisa antes fazer a feira e pagar as contas. Primeiro a independência financeira, depois a desobediência às regras que não lhe parecessem justas. Justíssimo. Para mim, tudo fez e faz todo o sentido.  Servia também para a gente entender que ela não pretendia preparar comida depois dos pratos lavados e da cozinha arrumada. Os retardatários que comessem alhures, retornassem ao lar de barriga cheia. Mato tem olhos e paredes têm ouvidos. Casa de ferreiro, espeto de pau. Escreveu, não leu, o pau comeu. Muito riso, pouco siso. Sua alma, sua palma. Ruim com ele, pior sem ele. Quem muito se baixa, o fundo aparece. Gaiola bonita não dá de comer a passarinho. Roupa suja, lava-se em casa. Tudo demais é veneno. Água morro abaixo, fogo morro acima e mulher quando quer dar: ninguém segura.
Quem boa Maria faz, em sua casa está em paz. Fui menina e fui moça, escutando a frase, acolhendo cada fonema, compreendendo tudo, perfeitamente. Dona Rita nunca gostou de ver a prole por aí, espalhada pelo oco do mundo. Queria os pintos debaixo da asa. Um belo dia, inventei de alisar banca de escola, fui bater na universidade, um desperdício. Uma professora dessas que não pisam no assoalho, uma sem graça de carteirinha, nem me lembro do nome da insossa antipática, um belo dia, sem mais nem menos, o pavão metido a cavalo do cão quebrou o encanto: boa romaria faz quem, em sua casa, está em paz, corrigiu. A senhora, por acaso, dependia dessa informação para seguir vivendo? Nem eu. Fica o dito por não dito. O melhor deles, o mais impactante, guardei para o fim, para suas reflexões mais (im)pudicas, esse me cai como uma luva: língua falou, cu pagou. A minha cara. Minha velha temia pela indefectível dobradinha tagarelice – abigobalice, a qual, desde cedo, caracterizou, insígnia distintiva - verruga -  a natureza de sua caçula. Sabe-se lá o que será de você, Adriana, tão avoada, e com essa língua de passadeira de igreja.  Nunca lhe tirei a razão, jamais poderia.

SONETO DO DESMANTELO AZUL


Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

5 comentários:

  1. A minha mãe sempre solta um "Boa Maria faz, na sua casa está em paz".

    Felipe S.

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  2. A sabedoria popular tem seus encantos "que a própria ciência desconfia"; mais realmente a mais difícil de cumprir, mas é a mais sábia, em minha opinião, é:"de tempo ao Tempo", pois ele tudo resolve. Diante dele somos impotentes.
    Boa noite.
    Um grande abraço de sua nova seguidora Lílian Cortines

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  3. Como posso não ter lido a crônica que eu esperava em tempo hábil de ser a primeira a comentar?! Eu tô doente com isso!!
    Conversava com Silvana ontem, no café São Braz, sobre o que vc falou na crônica, tia.
    Falei até de vó Rita, que não pensava duas vezes antes de distribuir tapa nos rebentos sem querer saber se cometia injustiça ou não. Hoje os filhos falam sobre isso sem mágoas, eles brincam! Ninguém usa isso para falar que é infeliz...
    Pq eu, que também quero ser forte, ficaria escondida atras de uma idiotice qualquer?!
    “Quem vive de passado é museu.“
    Passei a caminhar mais leve quando resolvi levar tudo de ruim que sentia na brincadeira e acreditem, fiquei até menos burrinha depois disso. A pior coisa do mundo é não enxergar o outro. Alguém aqui se atreva a chamar meu irmão de feio!
    Bjus
    Manu ;D

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  4. Parabéns pela crônica, tia! Muito boa, aliás, como todas que li até agora. Os ditados realmente fazem parte de nossa vida, repassados de pai para filho (ou de mãe para filho kkkkkk) e acredito que serão transmitidos para as próximas gerações, mesmo que de forma indireta.

    Posso perceber isso claramente em nossa família, os caminhos são diferentes, mas os traços de uma base comum são evidentes. Uma base sólida de amor e sabedoria que nos permitiu crescer com segurança. Onde ensaiamos os primeiros passos, sempre amparados, experimentamos vitórias e derrotas, decepções, acertos e tropeços, até que pudéssemos caminhar firmes na direção do futuro. Um terreno fértil que permitiu que as sementes brotassem, se desenvolvessem e dessem bons frutos, cada uma ao seu tempo. "Dê tempo ao tempo", afinal ele é um sábio compositor de destinos.

    Muito bom o trecho que fala do relacionamento, concordo plenamente! "O risco que corre o pau, corre o machado,... para um doido, outro na porta. Quem com ferro fere, com ferro será ferido.". E, gostei mais do último, que não conhecia: "O que equilibra um chifre é outro, de igual envergadura" kkkkkkkkkk

    Também achei linda a definição de Manu: "Passei a caminhar mais leve quando resolvi levar tudo de ruim que sentia na brincadeira e acreditem, fiquei até menos burrinha depois disso. A pior coisa do mundo é não enxergar o outro. Alguém aqui se atreva a chamar meu irmão de feio!". Uma verdadeira lição da maturidade que adquirimos com os anos. Um tesouro que não se compra na esquina, é preciso viver, amar, correr riscos e, porque não, sofrer pra aprender de verdade!

    Só senti falta de um: "Vão se os anéis, ficam os dedos.". Quem sabe não é o tema para uma outra crônica hehehehehe

    Beijão tia e parabéns pelo belo trabalho,
    Guga :D

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  5. também achei lindo, manuca: alguem se atreva a chamar meu irmao de feio!! linda demais vc... tambem aprendi e aprendo cada dia a me transformar enxergando o outro... e o que tem de ruim em nós, o budismo me ajuda a enxergar que a flor de lotus nasce da lama, do lodo.. dali consegue brotar a flor.. um beijo querida! e tia, obrigada pela lembrança terna de vovó rita,... ;))

    um dia mainha me disse: a gente vai perdendo o medo da morte sabe como? quando muitos dos nossos queridos partem para lá... ai dá vontade de encontra-los de novo, ou entao a gente pensa... lá nao deve ser ruim, tem painho, mainha me esperando...
    enfim, coisas da minha mae... eu disse se apresse naum, mainha, deixe eles esperando mais um pouquinho... kkk
    outro beijo

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