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sexta-feira, 7 de setembro de 2012

À vida como ela é

Conforme acordo firmado entre vocês e a minha envaidecida vaidade, na auriverde alvorada da Independência, com o coração estofado de clorofiladas esperanças de melhores dias para a brava gente brasileira, longe vá, temor servil!, reabro, britanicamente pontual, os trabalhos bloguísticos da sexta-feira. Estaria na maciota, ainda que a sexta-feira em curso não fosse sexta-feira de vadiagem, meus venerados leitores sabem que minha semana é inútil até a quinta-feira, o dia seguinte amanhece baiano, debochado e indolente, sob medida para a potencialização da imaginação desocupada, a fonte da vida. Confio cegamente no poder da imaginação desocupada para o resgate do planetinha azul e para a salvação da humanidade.  Da ociosidade vai nascer a novidade, podem apostar. Na condição de capricorniana pessimista por natureza, desconfio que esse privilégio agoniza, rumores anunciam  um futuro sombrio, lombos açoitados de segunda à noite da sexta-feira, que é pau para comer sabão e pau para saber que sabão não se come, eu não mandei a senhora dar parte ao povo dessa folga tanta, desse seu flozô, agora aguente o tranco, salário digno a senhora já tem faz é tempo, o governo que o diga. Um pé-de-moleque autêntico para quem sabia que ‘ficar de flozô’ é ficar enrolando, fazendo porra nenhuma, de papo para cima, azeitando o eixo do sol. Pernambucolismo saudoso. Pernambucanês é lindo.
Paulinho da Viola é o mais doce, elegante e requintado representante da música brasileira. Tirei o popular porque popular virou sinônimo de lixo. Popular agora é qualquer porcaria sem letra, sem harmonia, sem melodia, droga das brabas, vírus letal, devastador e hipnotizante, que lhe usurpa o bom gosto e o bom senso, assumindo ares de hit no som do seu carango e do seu computador. Sou maior e vacinada. Quando eu era muito jovem, a estante da sala de estar da casa de Candeias abrigava um tesouro, inúmeros sensacionais LPs de música brasileira, preciosidades que, no correr dos anos, lapidaram meu ouvido e paladar, sutil, irrevogavelmente. Meu peito estofa igualmente a papo de peru, sinto-me cevada de orgulho dessa herança. Havia um disco do Paulinho chamado Memórias Cantando, na capa, um bebê, vestido de arlequim, erguia os bracinhos para um pássaro pousado ao alto, um disco espetacular, revolucionário na poesia e na delicadeza, sei todas as letras de cor... Ó, dona dos sonhos, ilusão concebida, surpresa que a vida me fez das mulheres, há, no meu coração, uma flor em botão que abrirá se quiseres... Mente ao meu coração, que, cansado de sofrer, só deseja adormecer na palma da tua mão... Lágrimas no colo e arrepios na pele ao recordar as canções. Também nele, a extraordinária Coisas do mundo, minha nêga, hoje eu vim, minha nêga, querendo aquele sorriso que tu entregas pro céu quando eu te aperto em meus braços... Essa não me sai da cabeça, vocês entenderão por quê. Ou não.
A minha labirintite é figurinha repetida da crônica anterior, a fonte secou? . Por causa dela, visitei meu querido oftalmologista, Dr. Eduardo, ontem pela manhã, só para saber que o mal é da idade que vive a tal menina. Conversamos longamente, a recomendação foi a consulta a um neurologista e os oclinhos de leitura, aqueles de Dona Benta do Sítio, a senhora deve se lembrar. Caminhar para os cinquenta anos não tem sido tarefa das mais confortáveis para a minha pessoa, mas não entrego os pontos. Doravante, serei esses seis olhos pendulares, barco embriagado ao mar, é doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar. Quanto mais óculos, melhor para a minha tão desgastada imagem madura. Preciso impor o mínimo de respeito, oras. Na saída, entrei numa lanchonete para o tradicional cappuccino da semana, mais uma coxinha gigante, que não sou de ferro. Um aviso me chamou a atenção, até anotei num guardanapo, a reprodução é, portanto, fidedigna:  Sr. Cliente, ao sair, confira sua mesa, pois não nos responsabilizamos pela perca dos seus pertences. Obrigado. A gerência. Ao pagar a conta, comentei o deslize bem baixinho, hesitante, com a jovem do balcão. Ela me sorriu e disparou, categórica, peremptória: - Não, senhora. É perca mesmo. A assertividade que, em 47 primaveras de existência quase medíocre, jamais tive. Não peguei minha viola, parei, olhei, fui-me embora, ninguém compreenderia um samba naquela hora. Voltei para casa a pé, cantarolando Paulinho, cuidando para não perder o equilíbrio e cair, pela enésima vez, feito uma jaca podre, protagonizando outra risível cena de tombo, minha especialidade, para deleite dos transeuntes, sempre os há, e às pampas.  As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender.

Hoje eu vim, minha nega
Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mãos a mesma viola onde eu gravei o teu nome

Venho do samba há tempo, nega
Vim parando por ai
Primeiro achei zé fuleiro que me falou de doença
Que a sorte nunca lhe chega
Que está sem amor e sem dinheiro
Perguntou se não dispunha de algum que pudesse dar
Puxei então da viola
Cantei um samba pra ele
Foi um samba sincopado
Que zombou de seu azar
Hoje eu vim, minha nega
Andar contigo no espaço
Tentar fazer em teus braços um samba puro de amor
Sem melodia ou palavra pra não perder o valor
Depois encontrei seu bento, nega
Que bebeu a noite inteira
Estirou-se na calçada
Sem ter vontade qualquer
Esqueceu do compromisso que assumiu com a mulher
Não chegar de madrugada
E não beber mais cachaça
Ela fez até promessa
Pagou e se arrependeu
Cantei um samba pra ele que sorriu e adormeceu
Hoje eu vim, minha nega
Querendo aquele sorriso
Que tu entregas pro céu
Quando eu te aperto em meus braços
Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço
Por fim eu achei um corpo, nega
Iluminado ao redor
Disseram que foi bobagem
Um queria ser melhor
Não foi amor nem dinheiro a causa da discussão
Foi apenas um pandeiro
Que depois ficou no chão
Não tirei minha viola
Parei, olhei, fui-me embora
Ninguém compreenderia um samba naquela hora
Hoje eu vim, minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo a forma de se viver
As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender 

3 comentários:

  1. A assertividade da balconista é chamada pelo Nelson Rodrigues de o "Poder Jovem", que pode muito bem ser traduzida como o ímpeto, a inflexão de uma ignorância cheia de si, orgulhosa de si. Diante dela só nos resta mesmo pôr a viola no saco e seguir nos equilibrando pelo caminho: "Coisas do mundo". A respeito das crônicas, acho que, na ocasião do lançamento de sua coletânea, deveria fazê-la acompanhar de um CD, com a leitura delas e partes cantadas. Pois a marca estilística delas é serem sempre musicadas. Pronto: você inaugurou o (trans)gênero "crônicas-cantadas". Beijos pra você e pro Ronaldo tb. Bruno Pereira.

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  2. Concordooooooooo com Bruno!
    É marca, tia.
    Aliás, você fala cantando.
    Influenciou e muito o gosto musical dos sobrinhos que cresceram com os olhos e ouvidos grudados.
    Quem não lembra das carraspanas regadas a muito som, risos e lágrimas?!
    Sensibilidade é tudo!
    Amo
    Bjim
    Manu ;D

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  3. E haja saco para tanto balconista que vemos por aí !!! E essa publicação sai quando, hein? Posso me candidatar para tratar dos direitos autorais? rsrs Bjo Evelyn

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