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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Estrangeira

Vinícius de Moraes escreveu uma CRÔNICA, assim mesmo, CRÔNICA, com todas as letras em tamanho GG, da qual jamais teria tomado conhecimento, certeza absoluta fincada a ferro e fogo na minha congênita vagareza para a leitura de tudo, leio pouco e lentissimamente, sou e sempre fui assim, devagar quase parando, meu juízo toda vida pegou no tranco, muito mais releio as historinhas de minha preferência, as do fundo do baú das quinquilharias fundamentais para as minhas modestas alegrias... e opulentas tristezas, muito mais releio que inauguro novos chamegos literários. Releio tanto que decoro, uma doidice. Isso de ler para bem escrever é uma balela para boi da cara preta fazer a sesta, conheço gente que lê de cegar e não salta de um tamborete para redigir uma lista de supermercado, concorda? Tenho para mim que o buraco é muito mais embaixo. Ou não. O gentílimo gigante Bruno, sempre gerando gentileza, é da natureza do gigante Bruno gerar gentileza, Bruno Giga fez a gentileza de me arrumar uma cópia da extraordinária CRÔNICA - O exercício da crônica, datada dos gloriosos idos de 1960 e máquina de escrever. Nela, nosso imenso poeta Vininha, homem devidamente prevenido valendo por cento e vinte e dois, recomenda a produção de crônicas antecipadas, “o ideal para um cronista é ter sempre uma ou duas crônicas adiantadas. Mas eu conheço muito poucos que o façam... Se ele é um verdadeiro cronista, um cronista que se preza, ao fim de duas semanas, estará gastando a metade do seu ordenado em mandar sua crônica de táxi”. A senhora deve pensar com seus botões que isso não me diz respeito, a senhora sabe das coisas. Estou virgem donzela da experiência de realizar uma tarefa antes do prazo, ponto pra senhora. Vou lhe revelar meu mais íntimo segredo: eu queria ser cronista. Tem mais: eu queria ser cronista dona de uma majestosa Remington, com pedigree, em 1962. Mais ainda: eu queria essa magia, essa adrenalina. Eu queria mandar minha crônica de táxi, lançá-la ao misterioso mar, no derradeiro instante, feito uma boia salva-vidas, para o desacreditado resgate do náufrago moribundo, para ter “um certo prazer em imaginar o suspiro de alívio e a correria que ela causa quando, tal uma filha desaparecida, chega de volta à casa paterna.” Vinícius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô, a bênção.
Hoje nem é sexta-feira, muito pelo contrário. Nenhuma múmia se mexeu. Nenhum milagre da ciência aconteceu. Nada de bom. Nada de mau. Hoje somos eu, meus braços, minhas pernas, meu pensamento e minha vontade de partir. Longe de casa, não posso querer ser nada. Saudade nua e crua. Ainda ontem, comecei a farejar-lhe o azedo ao redor de mim, apeou sorrateira, disposta, entretanto, a fazer estrago, justamente na saída da escola pública onde justificamos, eu e Ronaldo, as nossas ausências cívicas, uma vergonha, uma temeridade. Atravessei o portão esbravejando que aquela seria a última vez, a pessoa tem de ajudar (ou atrapalhar) a eleição para prefeito da cidade onde, assim ou assado, a pessoa vive a vida, ora essa. Meu marido não quer transferir seu título para Cabo Frio. Meu marido deseja transferir seu título para Recife, meu bem, você sabe lá o que é isso? Meu marido adotou a minha numerosa e destrambelhada família, a minha cidade, o meu Estado e seus brasões – um amor de história. Consentida. Com sentido. Os pais de Ronaldo estão mortos. A única irmã de Ronaldo mora em Jacarepaguá, na companhia do filho. A única sobrinha, também afilhada, casou-se, acomodou-se por lá, a dez minutos da casa da mãe, e exerce agora o seu principal papel, o de mãe zelosa da pequena Laura, nossa bonequinha. É gente bacana à beça, em seu inconfundível jeito carioca de ser. Carioca faz uma zoada da peste, mas não se entrelaça não. Tratam-nos a pão de ló os da Praça Seca, na palma da mão, desde que sejamos nós a caravana a arrastar o bonde para o Rio de janeiro, para mais uma cordial visita. Minha cunhada esteve aqui uma única vez, e, acreditem, despediu-se desculpando-se por ter vindo, um acontecimento inédito para a minha brejeira nordestinidade.com. Fiquei besta com a cena, de queixo caído. Pernambucano é diferente. Pernambucano se aprochega na manha, certíssimo, porém oferece, para além dos minguados cômodos, a alma escancarada. Pernambucano fisga no visgo do caju, tece a rede de pescar e prende. Minha irmã, Tia Dau, desde que nos mudamos, é pra cima e pra baixo, feito couro de pescoço de peru, isso para não dizer outra coisa, toda hora aparece, parece que vem a pé, da rua de trás, um negócio lindo, impressionante. I just called to say I love you, I just called to say how much I care. No dia internacional da ressaca e da preguiça, para encurtar a conversa sem sal da segunda-feira, Ronaldo, vez por outra, sem constrangimento algum, pega um aeroplano e empina a coruja pras bandas da Veneza brasileira, ele e o anjo da guarda, vão os dois passar férias aconchegados, no bem-bom, infiltrados no clã dos Guimarães de Oliveira (sofre a tua dor, resignadamente...), no colo de Pernambuco, enquanto eu bamboleio a valer na jovem escola fluminense, desatarraxada do chão, esfolando as varizes e as cordas vocais, tonta, desatinada de saudade, contando os anos que faltam para voltar.

3 comentários:

  1. Como eu estava falando, perdi o meu comentário luuuuuxo por causa de um telefonema. Vou explicar. Eu fico curiosa para ler o blog e acesso pelo celular(e eu detesto ler pelo cel), acabo querendo comentar logo. Não é a primeira vez que isso ocorre: No meio da minha inspiração, alguém liga.
    Ainda bem que alguém liga para mim. E liga muito, dessa vez foram três insistentes ligações. Não vou reclamar! O problema é que não consigo ter inspiração como você, tia... Agora lascou!
    Bom, mas eu dizia que ontem no aniversário de 80 anos de tia Marcília, uma convidada falava que o pernambucano era muito besta e outra imediatamente revidou falando que o pernambucano era bom, acolhedor e amigo.
    Eu amo o jeito maluco dos cariocas, o barulho que eles fazem, a beleza dos palavrões que soltam. São iguais aos nossos, mas eles falam com mais beleza. Dá é gosto de ouvir. Agora, o que mais me encanta no carioca é a leveza, a liberdade e o fato de não terem tanto preconceito como em outros lugares. Observe, um lugar que a galera hasteia uma bandeira do orgulho gay no meio da praia e ninguém vai lá encher o saco... Sinceramente, eu fiquei muito encantada. Isso ainda não é possível por aqui. Uma avó toda tatuada indo buscar a netinha na escola... Também não é comum por aqui.
    Mas também tive a impressão de que é tudo passageiro. Parece mesmo que todo carioca é geminiano, né não?!
    Aqui os amigos dos nossos já caminham pela cozinha como se fossem de casa.
    A cozinha é um lugar sagrado e que outro animal permite que cheguem perto do seu alimento com tanta facilidade? Só o pernambucano. A gente gosta de comungar.
    A cozinha do pernambucano é um confessionário. Quantas cervejas ou cafés um Oliveira é capaz de tomar, enquanto a dona da casa lava os pratos, filosofando sobre a máquina de fazer dinheiro que um tio paraibano construiu no quintal de casa?! Isso rendia uma tarde inteira, tô mentindo?! É choro, é reza, é riso...
    A infância, as tragédias, as alegrias, muitas mágoas, esses ditados todos, as músicas... Ô povo sofrido e sabido!
    E quando a gente sabe que estão mexendo com um dos nossos?! A vontade é de ir resolver logo. Pernambucano é arisco também.
    Ontem eu ri muito com as loucuras dos meus primos paternos, mas voltei para casa pensativa e com muito medo.
    Eu senti medo do espelho se quebrar e da gente perder essa fonte tão rica que a união dessa família pernambucana oferece ou ofereceu um dia.
    Eu senti medo dessa tecnologia toda, dessa modernidade toda que faz a gente pensar que está junto do outro, mas na verdade não está. Eu tive medo da gente não sentir mais falta de comer bolo e tomar café a tarde inteira se confessando na cozinha. Quem danado precisa de padre?!
    Pois venha logo visitar a sua raça que a saudade tá grande! :D
    Bjim
    Manu

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    1. Deixo que as águas invadam meu rosto... Obrigada, Manu...

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  2. Linda, linda crônica. Pegando o bonde do comentário anterior, eu também odeio ler no celular, mas não é só no celular. É em qualquer aparelho eletrônico, essa cisma vai desde os lindos e caríssimos tablets até inocentes smartphones. Talvez seja minha "alma de velho", tão falada por aí, ou simples aflição com essas telas reluzentes de alta definição, perfeitas demais pra abrigar uma boa história. As coisas perdem a graça lá dentro, ou ganham muita graça. Junto com várias outras coisas, daí eu não presto atenção em mais nada. Pra mim, nada substitui um bom e velho livro, pode ser até um livro velhinho mesmo, rabiscado, com a capa amassadinha, nem ligo pra essas coisas, o importante é ter folhas. Se tiver pixels meus olhos vão fazer pirraça,com certeza.

    -Felipe Santos

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