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sexta-feira, 8 de março de 2013

Falta de ar

Os ignorantes usufruem dessa extraordinária vantagem, absurdamente vantajosa, sobre todos os seres humanos e desumanos megainteligentes da Terra, é um privilégio rutilante o sujeito não entender bulhufas a respeito dos assuntos comprovadamente importantes e relevantes da vida e da morte, um sonho isso do sujeito não codificar as querelas fundamentais do ser ou não ser, ainda sob cuidadosa análise propedêutica, epistemológica e hermenêutica – processo para lá de inconclusivo, perda de tempo e de alegria - morro de pena dos racionais Mc's, dos obstinados pesquisadores de carteirinha, dos intelectuais de grife, nem chego muito perto por causa da urticária, adivinho de longe mesmo, entretanto, aquele olhar distante, de urso panda insone, o cenho plissado, a cara encerada; prosseguem verticais os meus diletos amigos, melancólicos e verticais, ad infinitum (confere, Poeta?), tão sobrecarregados, coitadinhos, das profundas reflexões sociológicas, culturais, psicológicas, matemáticas, metalinguísticas e metafísicas e o raio que o parta, três vivas para a profusa cascata de compêndios devorados com o paladar apurado, saliva doce, doce mel de livros, livros, livros à mancheia, as caraminholas todas a lhes empenar o eixo do juízo, a desconfortável armação dos óculos fundo de garrafa, pedindo outra faz é tempo (ou diáfanas lentes de contato gravidade zero, para anteontem, por favor), o par de óculos ferindo a pele, pesando chumbo por cima do pau da venta (venta é nariz, a senhora aprendeu!), uma calamidade. Deus me conceda a graça de passar ao largo. Somente os insipientes com firma reconhecida são felizes, eu penso desse jeito. O sujeito sofre na moita, entocado e humilde, sofre resignadamente, sem saber a fórmula, sofre as suas dores mais secretas, sofre as fugazes felicidades, chora os cravos e as pitangas, exulta, inocente de pai e mãe, cada desconhecimento é um flash, desenha na areia seus pobres passinhos empíricos, o rastro da inconsistência, vai experimentando, a brisa do mar soprando o leve suspiro da saudade, o sujeito toca o barco, ruminando as dúvidas e distendendo lento o velho espírito aprendiz, sem a complexa interferência dos achaques da ciência.
Rapaz, eu vi um filme que acabou com a minha natureza. Cibelle trouxe de Sampa e me deu, ou me emprestou, e eu achei que era presente, ando muito à flor do pano, dependente e carente, naquela base do só vou se você for, na maré de retribuir sorrisos alheios, devidamente endereçados ao próximo da lista, a senhora sabe como é, a pessoa abre o sorriso para o seu vizinho, a senhora vai logo escancarando o seu, acenando muitos tchaus e mandando um caminhão de beijos pelo ar, mico bom é mico gigante, fale a verdade, aqui a senhora precisa concordar. Não gosto de estragar prazeres, sou competentíssima escrevinhadeira de causos para boi dormir, fuxico é comigo, esse causo dessa fita não conto, entretanto, a vaca pode tossir de vomitar, tem coisa que só vendo, minha senhora, Amour é amor para mais de metro, uma película que só vendo, nem adianta o sujeito arriscar-se a comentar, fracassará no melhor estilo, quando o sentimento extrapola o enredo, fica maior que a história, maior que a sala, maior que a gente, que a rua, maior que as barbas brancas de Deus até, convém ao verbo, calar. Um dos protagonistas de Amour, a propósito, ensina essa lição bem direitinho, no momento em que procura relatar para a esposa um acontecimento, ele esqueceu os detalhes da história, mas sente tudo, pode chorar por ela, a história, com o mesmo desatino, com o mesmo sentimento, uma coisa linda. A questão é que existem os críticos de cinema, uma raça superior, uma categoria exibida como o diabo (vade retro, satanás!), uma pedra no meio do caminho e dentro do sapato do respeitável público, público vão e vasto como as galáxias, haja tutano, haja personalidade para o reles mortal peitar o festival de idiotice certificada que assola os cadernos de cultura e entretenimento dos conceituados jornais do país. Li, casualmente, nem foi no jornal, li por aqui na internet, um artigo a respeito do filme, uma besteira com pedigree. O cara já começa empostado, dando aula, um entojo, tenho ojeriza a quem fala e escreve como quem discursa ou palestra, eis um negócio que me obstrui os canais da compreensão, minha estupidez agiganta-se de uma tal maneira, não enxergo um palmo adiante. Pois então, o sujeito amanheceu disposto a dirigir-se apenas ao escol da classe, aos diplomados no riscado cinematográfico, na minha opinião, uma burrice sem precedentes, não tinha nada que inacessibilizar uma resenha virtual, um texto supostamente destinado a qualquer criatura bê-a-bá-zada da rede, bastava que o sujeito publicasse, para a posteridade, uma imponente obra sobre o berço esplêndido da sétima arte, os interessados que pelejassem para juntar os trocados de comprar o valoroso exemplar. O sujeito encontrou mais de sete erros no desenho animado do austríaco Haneke, o discípulo de Bergman. Nunca quis aprofundar os cornos na tela de Ingmar Bergman, nunca vi esse sueco, não vi nem comi, só ouço falar, minha irmã erudita arrasta um trem por um tal Morangos Silvestres, não sei que gosto amaro ou agridoce os morangos têm, desisti de provar os frutos dessa safra, meu irremediável afã de simplificar atravanca demais o meu progresso, é de matar. Aprendi muito cedo a olhar e interpretar, conforme o viés dos meus sentidos e do meu destino, pela graça divina: Amour é um derrame de afeto, um espetáculo delicado e avassalador, um átimo da soturna beleza de que ninguém deve prescindir; a vida, minha senhora, é triste e extraordinariamente bela. Meu único, tão querido irmão - o avô, o pai, o varão, afinal, ansiosamente aguardado por Dona Rita (que jamais te abandonou, irmão, não há de ser agora...), o espírito santo - o homem de Dona Júlia, o homem da casa, o homem dessa sui generis família (clã de doces bárbaros desajustados), o homem da alma dessas seis mulheres de aço e de bola de sabão, apresentou um quadro isquêmico grave, complicado, que inspira enormes cuidados, e está no hospital, a senhora já foi informada, aposto, as notícias boas e más circulam rapidamente, a solidariedade entre iguais também, pelo que agradeço tanto, com a frágil força do meu coração machucado. Estranham-me os acidentes automobilísticos, aéreos e vasculares, mano. De onde estou, Ivomar – meu débil palhaço, meu tonto bailarino - aspiro num soluço a tua falta de ar, apenas aperto tua mão; compartilhemos, néscios, triviais, meramente fraternos, a fatal vulnerabilidade, sou capaz de amá-lo tanto, meu amor, hoje e sempre. Muito, muito mais que antes. 

7 comentários:

  1. Você falou tão bem do filme "Piano" naquela aula de sábado que eu fiquei muito curioso, vou assisti-lo assim que tiver um tempinho. Deve ser muito bom, o enredo é interessantíssimo!

    Confesso que o final dessa crônica é de dar nó na garganta, aperta o coração. Desejo tudo de bom ao seu irmão Adriana, as coisas vão melhorar. Os bons vão ficar.

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  2. No livro "A arte de ler", que tô lendo por esses dias, o autor fala isso aê que você disse na crônica acima sobre a figurinha chata do crítico:
    "(...)o crítico não sabe ler para seu próprio prazer e não ensina aos outros a ler para o deles. Ele ensina ao leitor a ler como crítico. Ora, ler como crítico não é um prazer, ou pelo menos é um prazer muito particular, mesclado de muita aridez. (...) Isso não é mais ler; não é mais se abandonar; é reagir (...)".
    Diante de um bom filme, cumpre esqueçer os críticos de cinema, ao menos enquanto durar o efeito "enlevação", ou durar a pipoca.
    Melhoras para o Ivomar, o magnífico clown de Shakespeare.
    Beijo,
    Bruno.
    P.S.: Neste mesmo livro, há um trecho que li e lembrei-me imediatamente de você, fala a respeito dos escritores, destemida raça que se arrisca a pensar por escrito: "As contradições são os acidentes geográficos de um grande pensador".
    Escritores de todo mundo, corramos o risco, contradigamo-nos!

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    1. Kkkkkkkkk... Ah, meu querido Bruno... Grande pensadora de reles abobrinhas malucas e contraditórias, isso eu sou mesmo, kkkkkkkk... Ainda bem que existem os fuchiqueiros de grife - o providencial 'upgrade' deste espaço de asneirar a vida... Muito obrigada, fuchiquetes! Sem vocês, meus amores, eu não sou ninguém...

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  3. Chorei muito!
    Lindo d+, tia!
    Bruno arrasou.
    É isso.

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  4. Esqueci de assinar
    bjs
    Manu

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  5. Ai meu nó na garganta... O filme, gostei do "espetáculo delicado e avassalador, fui segurando, segurando, até que despenquei de choro no colo do Zé,como ele diz "só bebendo", rs.

    Que tenhamos a fé de Ronaldo!!
    Beijos!
    Cibi

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  6. Muito bom...muitas verdades...e o nó na garganta aqui foi brabo de segurar, vc sabe !!! Bjo ! Me empresta o filme? quero muito ver. Evelyn

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