Valentim despertou cochilando em sua (e)terna morada –
seu porto seguro, seu tépido paradeiro: o meu regaço, decerto. O dia varou as
tripas da noite sem uma nesga de sol, a senhora acredita, madame? Uma judiação
para quem, igualmente à escrevinhadeira que ora lhe dirige o bote salva-vidas
da palavra, apostou todas as fichas no calor e na claridade (três vivas à
providencial folga no laço!) para a feriada caminhada matutina: acontecência de
virar auê, a santa ceia, um quadro, a tradicional pintura sobre a mesa de jantar: o
inefável jardim do paraíso, a mulher madura, seu jovem e garboso cachorrinho – trinca
sagrada, de bicho-gente, de bicho-bicho e de mar azul infinito - a mãe, o filho, o espírito de tudo; resoluta marcha
domingo afora, nas vigas do vácuo, à pata e a pé: a trindade ungida na inabalável
confiança em indissolúvel parceria. Prevalece a existência algodão-doce na
sombra, life of pie, rarará, o haver
de tudo, comungando a cega fé no poder do afeto sem muros, ninguém se perca de si, muito menos dos
seus amores, no ranger da tempestade, na solidão do naufrágio, no desespero vigente; ninguém se desconstrua, por gentileza, por mais que doa a dor, não enlouqueça. Bem-querer, bem-querer. Por pamonha, Pedro, pedra, parque, paz, piscina
e pergaminho. O Richard Parker da minha humilde residência já compreendeu que
hoje não rola passeio; autônomo quando lhe convém, bem entendido, a independência
de Valentim depende, rarará, Valentim é o senhor dos anéis de petisco sabor
churrasco, Valentim manda na própria vontade e na minha, manda no solar dos Guimarães
de Oliveira Barroso, manda no chefe da família, manda em Nicolau, manda em Andreia,
nossa querida faxineira, Valentim manda e desmanda nesse prestigiado circo
mambembe à beira-mar, no magote de mamulengos todos doidos varridos por ele,
Valentim é o cara, a cara da sem-vergonhice, a maior cara de puta que vai com
quem dá mais, Valentim acaba de dar de ombros, numa boa, desprezou, sem culpa, a
mordomia do meu colo quente, decidiu espalhar-se mesmo foi no coração solitário
do sofá da sala, a senhora jamais confie no lânguido olhar do seu adorável espécime
canino, Valentim nem se despediu de mim,
nem se despediu de mim, já chegou contando as horas, bebeu água e foi-se embora,
rarará, seguiu floresta adentro, sequer voltou-se um instante, olhou para trás.
Minha nobre intenção, nessa azeda manhã mofada e cinzenta, era distrair o
leitor entediado até a raiz dos cabelos, enchendo miolo de pote, conversando
miolo de pote, As Aventuras de Pi na algibeira, about As tais Aventuras de Pi, filme a que assistimos, em dimensões
bastante limitadas, rarará, ontem à noite, no cinema em casa, foi no quarto do
casal, pronto falei, não posso lhe faltar com a verdade dos fatos, madame,
ainda mais agora, a essa altura da nossa intimidade. O fuxico da badaladíssima
película do diretor Ang Lee, um sujeito que só comecei a respeitar depois
daquele estouro de boiada, o memorável O Segredo de Brokeback Mountain (um filme
maiúsculo, bom para cacete, que inscreveu, a propósito, na história da
humanidade, em letras fulgurantes, o nome do saudoso, vário, inesquecível Heath
Ledger, cabra macho, a lenda – um minuto de respeitoso silêncio em sua
homenagem...), o fuxico da recém-lançada película Life of Pi correu terras, céus e oceanos
do mundo inteiro, rendeu-me uma pulga das mais avantajadas, por trás da orelha,
quem me conhece mais ou menos, minha amiga, sabe do meu cacoete ácido, o intransigente
e incorrigível defeito de fabricação, sofro dessa mania de preferir a poeira
devidamente assentada, para fins de frio julgamento, apreciação que ninguém
nunca solicita, rarará, melhor passar sem ela, garanto, nem sei por que insisto
nessa genuína, progressiva perda de vista e de hora, um desperdício, uma
completa inutilidade. Existe um filme anterior, de Ang Lee, um filme velho, também ganhador
dos bonecos de Tio Oscar, inclusive, que mexeu com tigre, certeza absoluta, um tigre, dois
tigres, três trigues, essa história de tigre é recorrente, rarará, com tigre e
com dragão, não sei se a senhora teve oportunidade de pelejar para chegar ao
final feliz dessa fita, por Deus do céu, me lembro de que fiquei ali na sala de
projeção, elencando, na lousa do juízo, um rol de alternativas de
entretenimento de que dispunha, rarará, àquele suplício, na ocasião, vejamos:
um consagrado livro de crônicas, ao pôr-do-sol; uma sobremesa hipercalórica extraordinária,
vagarosamente degustada sem piti, sem sobressaltos de avaliação nutricional na
academia, ao pôr-do-sol; uma cerveja, sorvida lenta, ao pôr-do-sol; um sono reparador,
repleto de sonho bom, ao pôr-do-sol; um rolé pelas ruas do Recife, espiando as
belezas que apenas o pôr-do-sol acende, ao pôr-do-sol; uma pesquisa enjoada de
geografia, ao pôr-do-sol; até uma desagradável coceirinha de micose, na unha do
dedão do pé, ao pôr-do-sol, qualquer coisa surpreendentemente máxima ou mínima,
minha senhora, teria me proporcionado maior prazer, mais deslumbramento. Não
guardo, portanto não demonstro, qualquer simpatia, nem adianta insistir, por exímias
lutadoras voadoras de olhinhos puxados, em câmera lenta, ainda por cima, só
Jesus, misericórdia. Não abandonei o recinto porque, diante da inacessível obra-prima
(não deu pra minha emoção, não formou!), escolhi manter a linha, a atitude de profundo
respeito à sétima arte, no frigir dos ovos, o respeito vigora, não tem jeito, devemos
isso à magnificência daquela telona, sempre ela, a senhora do destino. Com As
Aventuras de Pi, minha amiga, não foi muito diferente, confesso. Mantive-me
atenta, ligada nas paradas, querendo presenciar um grande espetáculo, naquela
expectativa de dar de comer à alma atormentada, adiando o cheiro no cangote, o
beijo na boca, o inevitável chamego de sábado de madrugada, olha o filme, olha o filme!, ligada nas
paradas, esperando aquela fisgada, o soco no estômago, o nó na goela, que é
quando o enredo come suas vísceras num golpe, numa dentada. Penso que faltou
3D, só pode, consequentemente, o reconhecimento da perfeição dos efeitos
especiais, ah, os efeitos especiais!, a
mais avançada das mais avançadas das tecnologias! Quem sabe. Faltou segurar as pontas, 'prumode' entender o fio da meada, talvez, se eu fizesse uma lista do que desentendo, Iaiá, era de pasmar, acredite. Faltou inteligência, meu horizonte intelectual é uma ninharia, não dobra a esquina; faltou sensibilidade,
faltou sensibilidade, o pulo da zebra, da hiena, faltou o pulo do gato. Faltou religiosidade nas entranhas. Ou sobrou, não sei, deuses demais para a minha vã
filosofia de pára-choque de jamanta dourada, venerando Ganesha. A impressão que deixou foi a de que passou do ponto,
é isso. O mais engraçado é que, na pomposa festa da entrega do Oscar, esculhambei o José Wilker, baixei o sarrafo, achei que o esnobe vestira o fraque da arrogância, um chato de galocha, um pedante de carteirinha, rarará, por
causa daquele sorriso amarelo e daquela pose de bunda mole, por sua visível, indisfarçável reticência, pela antipatia, ao
comentar o famoso filme. No wonder he did not support it... Nem aqueceu os panos, escancarou aos quatro cantos que não gostara da brincadeira oito mil léguas submarinas, corretíssimo. Também não curti não. Não mesmo. Mera questão de opinião, coisinha à toa, direito que, cedo ou tarde, aos trancos e barrancos, se conquista.
"deuses demais para a minha vã filosofia de pára-choque de jamanta dourada, venerando Ganesha" (pausa de 5 minutinhos pra rolar de rir)
ResponderExcluirOlha, o spoiler foi muito bem vindo! Eu não tinha assistido a esse filme (assim como todos os outros da leva de 2013 do Titio Oscar hahaha) e não vou ver não... Tinha lido sobre ele e visto algumas imagens das gravações e de cenas do filme. Achei de uma falta de graça tão grande! Prefiro contar os azulejos do banheiro kkkkk. Sem falar que eu ainda pensei que o filme era indiano. A imagem que eu tenho sobre o cinema indiano não é nada boa, se quiser compartilhar dessa imagem é só pesquisar no Youtube. São tantas obras de arte, você vai chorar... De tanto rir. É uma cena mais tosca que a outra! É claro que deve ter coisa boa lá no meio (tem que ter, Deus é mais!), só que essas coisas boas ainda não chegaram até mim. Os indianos ainda vão conquistar seu espaço no cinema mundial, mas precisam crescer um pouquinho mais.
Sobre o desprezo pontual de Valentim, fique sabendo que eu compartilho da mesma dor. Já tive 4 gatos até hoje. Todos eles trocavam meu colo por um barulho de pratos batendo na cozinha... fazer o que né? Pra chamar de volta, só com fortíssimos trabalhos de macumba kkkkkkkk. Somos todos mamulengos na mão dos nossos bichinhos. Beijão Drica!
PS: O Fuxique está lindo de roupa nova!
Cara, kkkkkk, Richard Parker é o tigre do filme, um gatinho muito malvado, kkkkkk... O bicho não dá nem as horas pro pobre do Piscina, kkkkkkkkk... Faz parelha com teus felinos, kkkkkk!!! Beijo!
ExcluirÔ tia!
ResponderExcluirGostei da crítica. Delicada, inteligente... Ainda não assisti ao filme, mas vou assistir mesmo assim.
Outro dia, li um comentário aqui mesmo no blog e gostei muito. Não lembro de quem foi, mas ele citava um trecho do livro "A arte de ler": "(...)o crítico não sabe ler para seu próprio prazer e não ensina aos outros a ler para o deles. Ele ensina ao leitor a ler como crítico. Ora, ler como crítico não é um prazer, ou pelo menos é um prazer muito particular, mesclado de muita aridez. (...) Isso não é mais ler; não é mais se abandonar; é reagir (...)"
Eu estava abrindo mão de assistir a alguns filmes após ler as críticas, mas estar do outro lado da moeda não é fácil.
Além do mais, eu estava me privando de ter opiniões próprias sobre as obras.
Não vou reagir. Vou fazer exatamente como você fez. Ignorar as críticas e assistir.
Hoje de manhã saiu uma crítica horrorosa no JC sobe a nossa peça... Fazer oq, né? Fernando Limoeiro, diretor e autor pernambucano, escreveu uma crítica em janeiro tão linda, tão poética, tão emocionante, apontando as falhas de forma tão elegante, que a de hoje, escrita por não sei quem, nem fedeu e nem cheirou.
E no mais, optamos pela exposição, certo? :D
Bjinho
Manu
A opção pela exposição custa os olhos da cara, kkkkk... Sinto muito orgulho de você, Manu... Beijo de amor.
ExcluirDe Valentim a comentarista do Oscar !!! Bem vindos ao Fuchique...bem vindos ao Fantástico Mundo de Adriana ! Bom demais...Bjos. Evelyn
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