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domingo, 24 de março de 2013

Life of pie

Valentim despertou cochilando em sua (e)terna morada – seu porto seguro, seu tépido paradeiro: o meu regaço, decerto. O dia varou as tripas da noite sem uma nesga de sol, a senhora acredita, madame? Uma judiação para quem, igualmente à escrevinhadeira que ora lhe dirige o bote salva-vidas da palavra, apostou todas as fichas no calor e na claridade (três vivas à providencial folga no laço!) para a feriada caminhada matutina: acontecência de virar auê, a santa ceia, um quadro, a tradicional pintura sobre a mesa de jantar: o inefável jardim do paraíso, a mulher madura, seu jovem e garboso cachorrinho – trinca sagrada, de bicho-gente, de bicho-bicho e de mar azul infinito - a mãe, o filho, o espírito de tudo; resoluta marcha domingo afora, nas vigas do vácuo, à pata e a pé: a trindade ungida na inabalável confiança em indissolúvel parceria. Prevalece a existência algodão-doce na sombra, life of pie, rarará, o haver de tudo, comungando a cega fé no poder do afeto sem muros, ninguém se perca de si, muito menos dos seus amores, no ranger da tempestade, na solidão do naufrágio, no desespero vigente; ninguém se desconstrua, por gentileza, por mais que doa a dor, não enlouqueça. Bem-querer, bem-querer. Por pamonha, Pedro, pedra, parque, paz, piscina e pergaminho. O Richard Parker da minha humilde residência já compreendeu que hoje não rola passeio; autônomo quando lhe convém, bem entendido, a independência de Valentim depende, rarará, Valentim é o senhor dos anéis de petisco sabor churrasco, Valentim manda na própria vontade e na minha, manda no solar dos Guimarães de Oliveira Barroso, manda no chefe da família, manda em Nicolau, manda em Andreia, nossa querida faxineira, Valentim manda e desmanda nesse prestigiado circo mambembe à beira-mar, no magote de mamulengos todos doidos varridos por ele, Valentim é o cara, a cara da sem-vergonhice, a maior cara de puta que vai com quem dá mais, Valentim acaba de dar de ombros, numa boa, desprezou, sem culpa, a mordomia do meu colo quente, decidiu espalhar-se mesmo foi no coração solitário do sofá da sala, a senhora jamais confie no lânguido olhar do seu adorável espécime canino, Valentim nem se despediu de mim, nem se despediu de mim, já chegou contando as horas, bebeu água e foi-se embora, rarará, seguiu floresta adentro, sequer voltou-se um instante, olhou para trás. Minha nobre intenção, nessa azeda manhã mofada e cinzenta, era distrair o leitor entediado até a raiz dos cabelos, enchendo miolo de pote, conversando miolo de pote, As Aventuras de Pi na algibeira, about As tais Aventuras de Pi, filme a que assistimos, em dimensões bastante limitadas, rarará, ontem à noite, no cinema em casa, foi no quarto do casal, pronto falei, não posso lhe faltar com a verdade dos fatos, madame, ainda mais agora, a essa altura da nossa intimidade. O fuxico da badaladíssima película do diretor Ang Lee, um sujeito que só comecei a respeitar depois daquele estouro de boiada, o memorável O Segredo de Brokeback Mountain (um filme maiúsculo, bom para cacete, que inscreveu, a propósito, na história da humanidade, em letras fulgurantes, o nome do saudoso, vário, inesquecível Heath Ledger, cabra macho, a lenda – um minuto de respeitoso silêncio em sua homenagem...), o fuxico da recém-lançada película Life of Pi correu terras, céus e oceanos do mundo inteiro, rendeu-me uma pulga das mais avantajadas, por trás da orelha, quem me conhece mais ou menos, minha amiga, sabe do meu cacoete ácido, o intransigente e incorrigível defeito de fabricação, sofro dessa mania de preferir a poeira devidamente assentada, para fins de frio julgamento, apreciação que ninguém nunca solicita, rarará, melhor passar sem ela, garanto, nem sei por que insisto nessa genuína, progressiva perda de vista e de hora, um desperdício, uma completa inutilidade. Existe um filme anterior, de Ang Lee, um filme velho, também ganhador dos bonecos de Tio Oscar, inclusive, que mexeu com tigre, certeza absoluta, um tigre, dois tigres, três trigues, essa história de tigre é recorrente, rarará, com tigre e com dragão, não sei se a senhora teve oportunidade de pelejar para chegar ao final feliz dessa fita, por Deus do céu, me lembro de que fiquei ali na sala de projeção, elencando, na lousa do juízo, um rol de alternativas de entretenimento de que dispunha, rarará, àquele suplício, na ocasião, vejamos: um consagrado livro de crônicas, ao pôr-do-sol; uma sobremesa hipercalórica extraordinária, vagarosamente degustada sem piti, sem sobressaltos de avaliação nutricional na academia, ao pôr-do-sol; uma cerveja, sorvida lenta, ao pôr-do-sol; um sono reparador, repleto de sonho bom, ao pôr-do-sol; um rolé pelas ruas do Recife, espiando as belezas que apenas o pôr-do-sol acende, ao pôr-do-sol; uma pesquisa enjoada de geografia, ao pôr-do-sol; até uma desagradável coceirinha de micose, na unha do dedão do pé, ao pôr-do-sol, qualquer coisa surpreendentemente máxima ou mínima, minha senhora, teria me proporcionado maior prazer, mais deslumbramento. Não guardo, portanto não demonstro, qualquer simpatia, nem adianta insistir, por exímias lutadoras voadoras de olhinhos puxados, em câmera lenta, ainda por cima, só Jesus, misericórdia. Não abandonei o recinto porque, diante da inacessível obra-prima (não deu pra minha emoção, não formou!), escolhi manter a linha, a atitude de profundo respeito à sétima arte, no frigir dos ovos, o respeito vigora, não tem jeito, devemos isso à magnificência daquela telona, sempre ela, a senhora do destino. Com As Aventuras de Pi, minha amiga, não foi muito diferente, confesso. Mantive-me atenta, ligada nas paradas, querendo presenciar um grande espetáculo, naquela expectativa de dar de comer à alma atormentada, adiando o cheiro no cangote, o beijo na boca, o inevitável chamego de sábado de madrugada, olha o filme, olha o filme!, ligada nas paradas, esperando aquela fisgada, o soco no estômago, o nó na goela, que é quando o enredo come suas vísceras num golpe, numa dentada. Penso que faltou 3D, só pode, consequentemente, o reconhecimento da perfeição dos efeitos especiais, ah, os efeitos especiais!, a mais avançada das mais avançadas das tecnologias! Quem sabe. Faltou segurar as pontas, 'prumode' entender o fio da meada, talvez, se eu fizesse uma lista do que desentendo, Iaiá, era de pasmar, acredite. Faltou inteligência, meu horizonte intelectual é uma ninharia, não dobra a esquina; faltou sensibilidade, faltou sensibilidade, o pulo da zebra, da hiena, faltou o pulo do gato. Faltou religiosidade nas entranhas. Ou sobrou, não sei, deuses demais para a minha vã filosofia de pára-choque de jamanta dourada, venerando Ganesha. A impressão que deixou foi a de que passou do ponto, é isso. O mais engraçado é que, na pomposa festa da entrega do Oscar, esculhambei o José Wilker, baixei o sarrafo, achei que o esnobe vestira o fraque da arrogância, um chato de galocha, um pedante de carteirinha, rarará, por causa daquele sorriso amarelo e daquela pose de bunda mole, por sua visível, indisfarçável reticência, pela antipatia, ao comentar o famoso filme. No wonder he did not support it... Nem aqueceu os panos, escancarou aos quatro cantos que não gostara da brincadeira oito mil léguas submarinas, corretíssimo. Também não curti não. Não mesmo. Mera questão de opinião, coisinha à toa, direito que, cedo ou tarde, aos trancos e barrancos, se conquista. 

5 comentários:

  1. "deuses demais para a minha vã filosofia de pára-choque de jamanta dourada, venerando Ganesha" (pausa de 5 minutinhos pra rolar de rir)

    Olha, o spoiler foi muito bem vindo! Eu não tinha assistido a esse filme (assim como todos os outros da leva de 2013 do Titio Oscar hahaha) e não vou ver não... Tinha lido sobre ele e visto algumas imagens das gravações e de cenas do filme. Achei de uma falta de graça tão grande! Prefiro contar os azulejos do banheiro kkkkk. Sem falar que eu ainda pensei que o filme era indiano. A imagem que eu tenho sobre o cinema indiano não é nada boa, se quiser compartilhar dessa imagem é só pesquisar no Youtube. São tantas obras de arte, você vai chorar... De tanto rir. É uma cena mais tosca que a outra! É claro que deve ter coisa boa lá no meio (tem que ter, Deus é mais!), só que essas coisas boas ainda não chegaram até mim. Os indianos ainda vão conquistar seu espaço no cinema mundial, mas precisam crescer um pouquinho mais.

    Sobre o desprezo pontual de Valentim, fique sabendo que eu compartilho da mesma dor. Já tive 4 gatos até hoje. Todos eles trocavam meu colo por um barulho de pratos batendo na cozinha... fazer o que né? Pra chamar de volta, só com fortíssimos trabalhos de macumba kkkkkkkk. Somos todos mamulengos na mão dos nossos bichinhos. Beijão Drica!

    PS: O Fuxique está lindo de roupa nova!

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    1. Cara, kkkkkk, Richard Parker é o tigre do filme, um gatinho muito malvado, kkkkkk... O bicho não dá nem as horas pro pobre do Piscina, kkkkkkkkk... Faz parelha com teus felinos, kkkkkk!!! Beijo!

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  2. Ô tia!
    Gostei da crítica. Delicada, inteligente... Ainda não assisti ao filme, mas vou assistir mesmo assim.
    Outro dia, li um comentário aqui mesmo no blog e gostei muito. Não lembro de quem foi, mas ele citava um trecho do livro "A arte de ler": "(...)o crítico não sabe ler para seu próprio prazer e não ensina aos outros a ler para o deles. Ele ensina ao leitor a ler como crítico. Ora, ler como crítico não é um prazer, ou pelo menos é um prazer muito particular, mesclado de muita aridez. (...) Isso não é mais ler; não é mais se abandonar; é reagir (...)"

    Eu estava abrindo mão de assistir a alguns filmes após ler as críticas, mas estar do outro lado da moeda não é fácil.
    Além do mais, eu estava me privando de ter opiniões próprias sobre as obras.

    Não vou reagir. Vou fazer exatamente como você fez. Ignorar as críticas e assistir.
    Hoje de manhã saiu uma crítica horrorosa no JC sobe a nossa peça... Fazer oq, né? Fernando Limoeiro, diretor e autor pernambucano, escreveu uma crítica em janeiro tão linda, tão poética, tão emocionante, apontando as falhas de forma tão elegante, que a de hoje, escrita por não sei quem, nem fedeu e nem cheirou.
    E no mais, optamos pela exposição, certo? :D
    Bjinho
    Manu

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    1. A opção pela exposição custa os olhos da cara, kkkkk... Sinto muito orgulho de você, Manu... Beijo de amor.

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  3. De Valentim a comentarista do Oscar !!! Bem vindos ao Fuchique...bem vindos ao Fantástico Mundo de Adriana ! Bom demais...Bjos. Evelyn

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