Aos ingênuos e
inapelavelmente ignorantes, aos burrinhos de presépio - os de coração bobo, coração-bola, coração-balão
inadvertido, os cornos mansinhos, os subservientes de dar dó, tadinhos... - aos
ingênuos e inapelavelmente ignorantes, deixo o legado, a maior herança: uma
eternidade de saúde, paz, incontáveis alegrias
e a minha incondicional, preciosíssima amizade. Amizade é diamante. Os
altruístas e benevolentes de fé, os conciliadores e condescendentes, os seres
fluidos e diáfanos, os positivíssimos, os acolhedores, os babacas de plantão,
os caramelados de enfarar o bolo, os titulares da primeira divisão dos afetos
desgovernados e sem ferrolho, sobretudo os doces bárbaros resilientes, os
resilientes devidamente certificados, dando a volta por cima, cabendo em todas
as molduras do mundo que sobrevive de mudança - resiliência, aliás, tinha de
ter daquela em pó, encapsulada, eu acho, resiliência injetável, emplastro de
resiliência, unguento de resiliência, chá de resiliência, elixir de resiliência
para o sujeito consumir diuturnamente, gota a gota, feito um floral de Bach,
impensável que um cientista jamais tenha cogitado uma coisa assim tão
formidável... Os simpáticos empáticos, os ligados na parada de sucesso do
fracasso contíguo, quem sabe proliferando no pomar vizinho, os distraídos mais
atentos às insignificantes mazelas alheias, os hipersensíveis ao quiçá
inexplorado universo do que não lhes contorna a beira do próprio umbigo, essa
gente nobre e elegante, circulando incógnita, vivendo essa longa avenida de gás neon, pele humana disfarçada de
qualquer um, nos vãos de escada da estrada da gente, a gente não dá um pastel
de vento pelos anônimos faróis ardendo iluminados, essa gente, entretanto,
ilustríssima leitora do meu padecer, essa gente é luz, é raio, estrela e luar, tocha cintilante, feixes de amor
aceso, reverberando na noite insana e infinita, permeando os eventuais
percalços de existir de outra tanta gente. Acomodo, neste velho e sofrido peito,
pouquíssimos empreendimentos pelos quais assumo valer a pena, de fato,
consumir-me, desfrutar felicidade, por exemplo, eis uma atividade que de prazer
me consome. Inspiro e expiro, sem açodamento, os fatos graúdos e miúdos,
ambicionando cada dia menos: menos competitividade, menos confrontos inúteis, menos
conflito, menos maldade, menos rancor, menos discórdia, menos inveja, menos
veneno: menos, cada dia menos. Uma das minhas pretensões da segunda-feira, por
que mato e morro neste exato instante, é a de dirigir-me, grata e comovida, a
essa brava gente amiga da gente.
Momento de luto e de ferrenha
luta, parceiros adorados. Persevero porque conto com o privilégio de escolher,
dentre canteiros de olhares fraternos, mãos solícitas, ombros acolchoados e cálidos
regaços, conto com o privilégio de escolher em quais braços-barcos,
ocasionalmente, desmaiar, disponho, pela graça divina, de lauto amparo para a
dificílima trajetória que ao findar vai
dar em nada, nada, nada do que eu pensava encontrar. Entendo que esta pequena
morte também vai passar, esbanjo experiência de morrer em vida. Sinto, dentro
do espírito, por outro lado, como se a dor, a cada amanhecer, mais e mais se
enraizasse. Sempre supus que despedir-me de minha fase fértil, portanto
reprodutora, seria um episódio para a posteridade, um lance complexo e
profundamente delicado. Alguns anos atrás, na curva perigosa dos quase
quarenta, decidi que seria mãe a qualquer custo, de qualquer maneira, uma
intimidade dessas bastante íntimas, que sooner
or later encontram espaço para, publicamente, revelar-se. Um amigo desses
que amam a pessoa perdidamente, tenho tantos amigos me amando perdidamente, a
senhora não faz ideia, madame..., um dos meus diletos amigos – amigo de cama,
mesa e banho, amigo de devaneio, amigo de rinha, amigo debaixo d’água e no meio
dos infernos – meu amigo, de repente, fez-se apaixonado amante, a gente tentou
tanto, a gente desejou tanto que essa criança acontecesse, nove meses de ácido
fólico, sexo, sonho e carinho se passaram, não engravidei, não consegui, “o filho que não fiz, hoje seria homem... não me percebeste, contudo
chamava-te... interrogo meu filho, objeto de ar: em que gruta ou concha quedas
abstrato? Às vezes o encontro, num encontro de nuvem”... Quando a conversa
encaminhou-se para as bandas das avançadas das mais avançadas das mais
avançadas das tecnologias, minha senhora, o meu amigo - pai de dois rapagões,
esperançoso de criar uma menininha - partiu para um doutorado longe de minhas
vistas, ocupou-se com alguma coisa verdadeiramente importante para o futuro da
ciência e da humanidade, decerto, minha natureza de mulher estéril,
acabrunhada, retraiu-se, fugi feito o diabo escapole da cruz, contrariada nas minhas
legítimas, honestíssimas expectativas de maternidade simples: coito, gestação,
parto normal e farto aleitamento. Coube a Ronaldo, Ronaldo meu marido, Ronaldo
meu amor, Ronaldo meu camarada, Ronaldo meu chapa, Ronaldo comprovadamente
estéril, os exames confirmaram, coube a esse companheiro absolutamente
extraordinário, a vigília: escoltar meu climatério, a menopausa – a revolução
dos bichos das minhas vísceras, da minha cabeça inchada, do meu inconsciente. “Não nos afastemos muito, vamos de mãos
dadas”, meu mais leal e devotado amigo.
Os hipersensíveis ao quiçá
inexplorado universo do que não lhes contorna apenas a beira do próprio umbigo,
aqueles para quem a vida extrapola o ego esdrúxulo – sombrio, infeliz,
amargurado, aqueles para quem a vida pulsa vida, vida vivida além do seu quadrado, essa gente nobre e elegante vem
protagonizando demonstrações efusivas de identificação, de compreensão
emocional, de aceitação, de zelo, de apreço, de solidariedade, de camaradagem, tenho
recebido tanto dengo, tanto mimo, tanto cafuné – aconchego real, aconchego
virtual - sou-lhes tão reconhecida, tão agradecida por tudo. Para não dizer que
não falei das flores, houve um comentário dissonante, aqui no bloguinho,
recentemente, uma fístula, uma perebinha à toa, cuja razão de ser escapa à
minha precária interpretação, encabeço a lista dos inapelavelmente ingênuos e
ignorantes, a senhora já viu como é, malogro formular uma teoria chinfrim, até
porque o leitor é um vulto esparso, prefere ocultar a face e o nome, deixemo-lo assim: pálido, inerte, esmaecido, inofensivo, se é de sua honrosa predileção. Relações subitamente descontinuadas provocam reações inesperadas, trata-se de perder a convivência comigo, o sujeito pira na batatinha, quem sabe. Quem me
vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Tô me guardando pra
quando o carnaval chegar. Vai passar.
Toma que é tua, Ronaldo querido.
Toma que é tua, Ronaldo querido.
"Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Tô me guardando pra quando o carnaval chegar. Vai passar." Que lindo, absolutamente sem palavras.
ResponderExcluirÉ uma honra poder participar, mesmo que a distância, do que se passa na sua vida. Pra quem vive fora do seu mundinho particular isso é uma bênção. Escancarar suas idéias, os pensamentos, as inseguranças e o bom humor na rede não é pra qualquer um não, tem que ser forte.
Estar sempre presente por aqui no blog é muito mais que um deleite por ler essas crônicas maravilhosas, é participar um pouquinho da vida alheia, é ser expectador, assistir de longe a vida acontecer, isso é bom demais. É essa a intenção do "Fuchique" né? Pois bem, objetivo alcançado. O resto é resto.
Tão sensível, tão ingênuo, tão ignorante, kkkkkk... Tão criativo! Os criativos, sabe como é, das dez, erram nove vezes, acertam uma! Esse único acerto, entretanto, abre caminho para a humanidade. Abrindo caminhos, você vai muito longe, meu querido Felipe, vai muito longe na vida... Não tenho a menor dúvida disso... Muito obrigada.
ExcluirRonaldo disse: Pode alguém aquecer por dentro sem pegar fogo? Pois a língua é o chicote do corpo! A língua destila fel em todas as direções, esquecendo a lei do retorno! Sejamos ingênuos e ignorantes, conclamo! Vivamos a vida de bem com a vida! Linda crônica, amor! Linda, linda!
ResponderExcluirTe amo.
ExcluirMaravilhosa!!!...como sempre! Linda crônica, fiquei comovida com os desajustes do climatério, claro, encerramento de um ciclo lúdico, talvez de desejos maternais, mas longe de ser o fim da linha...nunca, nunquinha!! Estamos aqui e o que nos move é a paixão pela vida, infelizmente, às vezes, laudeadas de imbecis. Mas é assim mesmo, o importante é não perder a ternura, jamais! bjs
ResponderExcluirMônica Athayde
É essa a grande diferença de você, grande mulher (não estou falando do físico, ok ! kkkk) e dos(as) anônimos que aprecem por aí...felicidade, bom humor, vida. Meus grandes e verdadeiros amigos, fico meses e em alguns casos até ano sem vê-los, mas sei bem quem são e onde estão e eles também. Siga assim, minha senhora...como já diz Caetano:
ResponderExcluir"Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada"
Beijo grande.
Evelyn
Concordo totalmente com Monica.. fim de um ciclo, recomeço.... mas que captação de sentimentos !!! perfeitas descrições desse momento de mudanças .... emoção viva !
ResponderExcluirParabens
Walkiria