A
gente não sabe o lugar certo onde colocar o desejo.
Minha gana é escrever diariamente, confesso, muito por conta da
desobrigação, não resta sombra de dúvida. Tivesse o esporão de uma coluna
semanal, num jornaleco indigente, rarará, o relógio batendo e o diabo
latejando, esfolando a planta do pé, pagava para ver quanto tempo flamejaria no
rabo esse foguinho de palha. A mente da gente é um passarinho cego sobrecarregado de
asinhas afoitas. Percorri milhas e milhas antes de
dormir, eu nem cochilei, pensando na historinha da vez. O gênero é isso
mesmo, coisinha pouca, tímida avezinha pousando aqui e adiante, bastante
esporadicamente vira textículo que preste. Adoro. A gorda palerma da novela das
nove, por exemplo, aquela otária do horário nobre, vou dizer, Perséfone me dá
tanta raiva, acho o argumento tão patético, alô,
alô, marciano, aqui quem fala é daTerra! Minha vontade é descer o sarrafo
no miolo mole do autor, na entoca, claro, protegendo os dentes, rarará, tudo no
quadradinho branco do meu bloguinho singelo que ninguém dá fé. Um breve
telefonema para a minha pessoa peso pesado desde sempre, a gulosa maior
especialista no assunto, minha senhora, e o Walcyr teria construído um
estereótipo irrepreensível, Fabiana Karla podia encomendar o vestidinho de gala
XXG: dentro de um folhetim Global de meia pataca, não haveria ‘performance
medida certa’, rarará, que lhe arrancasse das mãozinhas balofas o troféu melhores do ano do Faustão, a deusa de assombrosas tetas podia apostar
seu majestoso queixo duplo, na merecida vitória.
Modéstia à parte, de música popular brasileira eu manjo litros, meus alunos sabem. Eu canto em sala de aula todo santo dia, e não é
para me exibir, que não gosto disso. A questão é que tudo, absolutamente tudo,
tudinho que acontece me lembra um pedaço de canção, um negócio impressionante.
Paro de realizar meu fidalgo ofício na hora, vá se queixar para o bispo, ando tão
saturada da língua do patrão, só vendo. Ademais, tem o seguinte: para cantar nada era longe, tudo tão bom.
Viro a diva dos palcos, a molecada olhando, abismada, escutando poesia que
nunca ouviu na vida caloura, inocente. A
gente nunca sabe mesmo o que é que quer uma mulher. Desde segunda-feira,
desejando abrir alas para o Poetinha passar: Vininha, o branco mais preto do
país, na linha direta de Xangô. Saravá! São
demais os perigos dessa vida para quem tem paixão, principalmente, quando uma
lua chega de repente e se deixa no céu, como esquecida, e se ao luar que atua
desvairado vem se unir uma música qualquer, aí então, é preciso ter cuidado
porque deve andar perto uma mulher, deve andar perto uma mulher que é feita de
música, luar e sentimento, que a vida não quer de tão perfeita, uma mulher que
é como a própria lua, tão linda, que só espalha sofrimento, tão cheia de pudor,
que vive nua. A inveja é a chaga da humanidade. Rapaz, eu gostaria de ter
juntado exatamente assim cada palavra dessa letra. Entre os encarnados
estivesse, o ilustre libriano Vinícius de Moraes celebraria cem anos no próximo
sábado. É preciso amar como se não houvesse amanhã. Consta nos astros que o verbo de Libra é amar.
Todo
homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome. O
desaparecimento do celular de Matheus não me diz respeito, claro. Tenho plena
consciência de que não é minha responsabilidade vigiar os badulaques dessa
moçada sem lenço e sem documento, ainda mais quando o sujeito demonstra tanta
desconsideração pelo meu trabalho, sequer me dando as horas, tem hora que eu
esqueço que o menino estuda comigo, vamos combinar. Conto nos dedos os raros
momentos nos quais Matheus participou, efetivamente, com algum interesse, da
minha aula. Deve ter os seus motivos, imagino. Entretanto, o desaparecimento do
celular de Matheus prevalece, paira espesso sobre quaisquer fofocas, impedindo
outro fuxico de deslanchar. Denso, inerte, posso tocá-lo. Todo corpo em
movimento está cheio de inferno e céu. Leonardo Boff diz que é o outro que
faz emergir a ética em nós. Bingo. A madame e os seus botões podem aprontar o
que bem entenderem, decerto. Na relação com o outro, é diferente. O outro nos
força a assumir uma atitude face ao mundo, uma conduta. Boa ou má. Digna ou
indigna. Decente ou indecente. Moral ou imoral. Honesta ou desonesta. Humana ou desumana. O outro
não vive para ser julgado. O outro vive para eu compreender quem eu sou, para
eu construir um jeito honrado de interagir com ele, uma índole, um caminho, um destino
pessoal inclusivo, agregador, para eu perceber até onde vai a minha capacidade
de comunhão acima das afinidades. Para eu aprender uma convivência possível. Ou resgatamos o
caráter, feito uma irrisória flor no lodo, do íntimo desses meninos, ou
aguardemos, bracinhos cruzados que não é comigo, o pior dos futuros. O que fazer com o que Deus nos deu? O que foi que nos aconteceu? Sensação desconcertante de fracasso. Sinto-me
desconfortável, desacomodada, calçada de vergonha alheia. Inconcebível admitir
que a lição de quarta-feira seja ‘estejam atentos, diligentes, pois seus
pertences podem ser roubados, por seus semelhantes, nesse ambiente’. Não. Sou sem filhos a quem deixar a herança, o legado da minha miséria, distinto Machado. Porém, educadora de nascença. Absolutamente nada justifica que você se aproprie do que
não é seu. Obediência, submissão, reverência solene diante do que não é seu. Sempre. Sempre.
Não estamos cercados de estranhos numa loja de departamentos frango com tudo dentro, dando sopa, mano. Pai e mãe, somos
uma escola!
PECADO ORIGINAL
(Caetano Veloso)
Todo dia, toda noite
Toda hora, toda madrugada
Momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vivem a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo beijo, todo medo
Todo corpo em movimento
Está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto
Todo pranto, todo manto
Está cheio de inferno e céu
O que fazer com o que DEUS nos deu?
O que foi que nos aconteceu?
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo homem, todo lobisomem
Sabe a imensidão da fome
Que tem de viver
Todo homem sabe que essa fome
É mesmo grande
Até maior que o medo de morrer
Mas a gente nunca sabe mesmo
O que é que quer uma mulher.
A linha tênue que divide o humor em iconoclastia e reforço de esteriótipos é tênue. A Globo nas novelas e no Zorra Total (blergh!) só reforça os mais puros e muitas vezes inconscientes preconceitos que estão aí espelhados Brasil à fora. A internet tem se tornado o refúgio do humor que desafia, que incomoda, que não tem papas na língua e que pode até parecer meio reacionário às vezes.
ResponderExcluirMais uma qualidade sua, além de lembrar de músicas a cada duas palavras, é saber o signo de tudo e de todos hahaha (até Vinicius de Moraes!)
Mexer com HUMOR é coisa muito séria. Beijos, Felipe.
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