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sábado, 12 de outubro de 2013

Pecado original

A gente não sabe o lugar certo onde colocar o desejo. Minha gana é escrever diariamente, confesso, muito por conta da desobrigação, não resta sombra de dúvida. Tivesse o esporão de uma coluna semanal, num jornaleco indigente, rarará, o relógio batendo e o diabo latejando, esfolando a planta do pé, pagava para ver quanto tempo flamejaria no rabo esse foguinho de palha. A mente da gente é um passarinho cego sobrecarregado de asinhas afoitas. Percorri milhas e milhas antes de dormir, eu nem cochilei, pensando na historinha da vez. O gênero é isso mesmo, coisinha pouca, tímida avezinha pousando aqui e adiante, bastante esporadicamente vira textículo que preste. Adoro. A gorda palerma da novela das nove, por exemplo, aquela otária do horário nobre, vou dizer, Perséfone me dá tanta raiva, acho o argumento tão patético, alô, alô, marciano, aqui quem fala é daTerra! Minha vontade é descer o sarrafo no miolo mole do autor, na entoca, claro, protegendo os dentes, rarará, tudo no quadradinho branco do meu bloguinho singelo que ninguém dá fé. Um breve telefonema para a minha pessoa peso pesado desde sempre, a gulosa maior especialista no assunto, minha senhora, e o Walcyr teria construído um estereótipo irrepreensível, Fabiana Karla podia encomendar o vestidinho de gala XXG: dentro de um folhetim Global de meia pataca, não haveria ‘performance medida certa’, rarará, que lhe arrancasse das mãozinhas balofas o troféu melhores do ano do Faustão, a deusa de assombrosas tetas podia apostar seu majestoso queixo duplo, na merecida vitória.
Modéstia à parte, de música popular brasileira eu manjo litros, meus alunos sabem. Eu canto em sala de aula todo santo dia, e não é para me exibir, que não gosto disso. A questão é que tudo, absolutamente tudo, tudinho que acontece me lembra um pedaço de canção, um negócio impressionante. Paro de realizar meu fidalgo ofício na hora, vá se queixar para o bispo, ando tão saturada da língua do patrão, só vendo. Ademais, tem o seguinte: para cantar nada era longe, tudo tão bom. Viro a diva dos palcos, a molecada olhando, abismada, escutando poesia que nunca ouviu na vida caloura, inocente. A gente nunca sabe mesmo o que é que quer uma mulher. Desde segunda-feira, desejando abrir alas para o Poetinha passar: Vininha, o branco mais preto do país, na linha direta de Xangô. Saravá! São demais os perigos dessa vida para quem tem paixão, principalmente, quando uma lua chega de repente e se deixa no céu, como esquecida, e se ao luar que atua desvairado vem se unir uma música qualquer, aí então, é preciso ter cuidado porque deve andar perto uma mulher, deve andar perto uma mulher que é feita de música, luar e sentimento, que a vida não quer de tão perfeita, uma mulher que é como a própria lua, tão linda, que só espalha sofrimento, tão cheia de pudor, que vive nua. A inveja é a chaga da humanidade. Rapaz, eu gostaria de ter juntado exatamente assim cada palavra dessa letra. Entre os encarnados estivesse, o ilustre libriano Vinícius de Moraes celebraria cem anos no próximo sábado. É preciso amar como se não houvesse amanhã. Consta nos astros que o verbo de Libra é amar.
Todo homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome. O desaparecimento do celular de Matheus não me diz respeito, claro. Tenho plena consciência de que não é minha responsabilidade vigiar os badulaques dessa moçada sem lenço e sem documento, ainda mais quando o sujeito demonstra tanta desconsideração pelo meu trabalho, sequer me dando as horas, tem hora que eu esqueço que o menino estuda comigo, vamos combinar. Conto nos dedos os raros momentos nos quais Matheus participou, efetivamente, com algum interesse, da minha aula. Deve ter os seus motivos, imagino. Entretanto, o desaparecimento do celular de Matheus prevalece, paira espesso sobre quaisquer fofocas, impedindo outro fuxico de deslanchar. Denso, inerte, posso tocá-lo. Todo corpo em movimento está cheio de inferno e céu. Leonardo Boff diz que é o outro que faz emergir a ética em nós. Bingo. A madame e os seus botões podem aprontar o que bem entenderem, decerto. Na relação com o outro, é diferente. O outro nos força a assumir uma atitude face ao mundo, uma conduta. Boa ou má. Digna ou indigna. Decente ou indecente. Moral ou imoral. Honesta ou desonesta. Humana ou desumana. O outro não vive para ser julgado. O outro vive para eu compreender quem eu sou, para eu construir um jeito honrado de interagir com ele, uma índole, um caminho, um destino pessoal inclusivo, agregador, para eu perceber até onde vai a minha capacidade de comunhão acima das afinidades. Para eu aprender uma convivência possível. Ou resgatamos o caráter, feito uma irrisória flor no lodo, do íntimo desses meninos, ou aguardemos, bracinhos cruzados que não é comigo, o pior dos futuros. O que fazer com o que Deus nos deu? O que foi que nos aconteceu? Sensação desconcertante de fracasso. Sinto-me desconfortável, desacomodada, calçada de vergonha alheia. Inconcebível admitir que a lição de quarta-feira seja ‘estejam atentos, diligentes, pois seus pertences podem ser roubados, por seus semelhantes, nesse ambiente’. Não. Sou sem filhos a quem deixar a herança, o legado da minha miséria, distinto Machado. Porém, educadora de nascença. Absolutamente nada justifica que você se aproprie do que não é seu. Obediência, submissão, reverência solene diante do que não é seu. Sempre. Sempre. Não estamos cercados de estranhos numa loja de departamentos frango com tudo dentro, dando sopa, mano. Pai e mãe, somos uma escola!

PECADO ORIGINAL
(Caetano Veloso)

Todo dia, toda noite
Toda hora, toda madrugada
Momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vivem a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã

Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo

Todo beijo, todo medo
Todo corpo em movimento
Está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto
Todo pranto, todo manto
Está cheio de inferno e céu
O que fazer com o que DEUS nos deu?
O que foi que nos aconteceu?

Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo

Todo homem, todo lobisomem
Sabe a imensidão da fome
Que tem de viver 
Todo homem sabe que essa fome
É mesmo grande
Até maior que o medo de morrer
Mas a gente nunca sabe mesmo
O que é que quer uma mulher.

2 comentários:

  1. A linha tênue que divide o humor em iconoclastia e reforço de esteriótipos é tênue. A Globo nas novelas e no Zorra Total (blergh!) só reforça os mais puros e muitas vezes inconscientes preconceitos que estão aí espelhados Brasil à fora. A internet tem se tornado o refúgio do humor que desafia, que incomoda, que não tem papas na língua e que pode até parecer meio reacionário às vezes.
    Mais uma qualidade sua, além de lembrar de músicas a cada duas palavras, é saber o signo de tudo e de todos hahaha (até Vinicius de Moraes!)

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    1. Mexer com HUMOR é coisa muito séria. Beijos, Felipe.

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