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domingo, 9 de dezembro de 2012

A loba da estepe

Baú aberto não protege tesouro. Não é máxima de Dona Rita, minha senhora, o velho ditado, entretanto, manufatura todas as peças originais de fábrica para sê-lo. Mainha preferia aquele do mosquito zunindo zangado, tão equivocadamente barrado nos salões de festa da boca fechada, um mosquito de tanta categoria, barrado no baile, a senhora se lembra? Em boca fechada, mosquito não entra. A vida, essa destrambelhada com pedigree. A gente precisa de um filho que ensine à gente que a mãe da gente esteve sempre certa, o mesmíssimo filho que vai subsistir, nutrindo-se de pantim, de insubordinação, de rebeldia sem causa, bradando, às quatro quinas deste mundo e dos outros, que a gente ensina tudo errado, até que o amanhã, o que será?, venha surpreendê-lo com o agridoce mistério de cuidar do seu próprio rebento, uma dureza, a vida sempre repete o dever de casa, à vida, essa destrambelhada! Sem herdeiro para fazer um chá e assumir a inadimplência, uma pena, sigo apostando minhas mínimas posses no palpite: é assim mesmo que toca a banda e o espetáculo acontece. Dona Rita só errou quando não me criou na rédea curta, segurando a minha língua de trapo, tirando isso, foi primeiríssima de classe, no peito a reluzente medalha de honra ao mérito de fazer dos guris buchudos, os grandes homens e mulheres que ora, incontinenti, perdem a memória, o viço e a flexibilidade, sem complacência. A senhora calcule aí, a caçula da família sou eu, quase cinquenta anos no origami da cara, a encostada no meu sovaco fez sessenta já, no talo, a mais velha inteirou setenta primaveras e um quebrado para o santo, envelhecemos dignos, os filhos de Rita, em comitiva (acalanto...), na marra, sem subterfúgios e sem consolo.  
Só mudo de assunto por causa das sucessivas encomendas à minha humilde pessoa, não sei o que deu na humanidade, todos desejam reconhecer-se na lata ou nas entrelinhas do meu diário de bordo, tenho três historinhas engatilhadas, apontadas para o coraçãozinho esperançoso de cada requisitante, meu receio é desapontar a galera, perder o fio da espontaneidade característica deste braço de rio da integração nacional, rá rá rá, temo é findar incógnita, hermeticamente lacrada, chorando no leito as pitangas derramadas, com os mansos burros n’água, sem açúcar e sem acesso à passagem secreta para o crivo do respeitável leitor – a indiferença, a censura, a absolvição pretendida, ocasionalmente, negada.  Minha saudosa mãezinha não tinha nada de besta, não mesmo, enxergava além do horizonte, expunha a pamonha fumegante, a gente ainda tateando as espigas para o strip-tease. Curioso como ela zelava por minha boa imagem, apreensiva com meu verbo solto, suscetível, em boca fechada, mosquito não entra. Insisti na falação, deu nisso, agora, desobediente, se arrebente!
Luciana, posta em desassossego, rá rá rá, quer que eu escreva sobre ter quarenta anos, a bichinha está prestes a inaugurar a nova idade, aquieta a periquita, Luciana, quem não fez quarenta, vai fazer, tudo uma questão de tempo passado e presente. Malogro, rá rá rá, juro que esqueci, urge aguardar a ginkco biloba surtir algum efeito. Mentira, Lu. Sei muitíssimo bem a quantas andava a minha dor, a minha alegria, quando virei a loba ali-babá dos quarenta ladrões. Sinceramente, mulher, é um sonho de valsa dissolvendo no céu da boca. Toda mulher é, de fato, uma loba, quando tem quarenta anos, se avexe não, a bronca é safada, os ganhos, infinitamente superiores, são tantas as recompensas da gente ser dona do nariz e do salto alto. Lembro-me de que dispunha de disposição para tudo, do direito até o avesso, passando pela sala de aula e pelos ilusoriamente pacificados complexos dos bares, dos lábios sôfregos, eita!!, do sexo sem nexo. A bem da verdade, enfrentei três violentas crises existenciais, no decorrer desse folhetim barato, a minha nada mole vida. Crises em nada relacionadas à consciência da cinza das horas, hoje sei. Meu primeiro desmoronamento, deu-se quando era menina e fiquei, subitamente, órfã, as mamães postiças, minhas irmãs queridas, combinaram de tomar casa e constituir as próprias famílias, a coisa mais natural de acontecer, saíram do meu alcance, praticamente no mesmo instante, adormeci no calor do ninho, amanheci no sereno, insana e sozinha. Minha intimidade com o pranto vem daí, quem me conhece, sabe, sei chorar choro desatinado, até com o sopro do vento. O segundo abalo sísmico, o mais trágico deles, foi a perda de Seu Biu e de Dona Rita, na minha curva dos trinta, uma mutilação seguida da outra, sem chance da chaga aberta cicatrizar, a minha mãe me pediu perdão por não ser a minha mãe, deu dois suspiros, depois morreu. Desnecessário descrever o sentimento, quem desconhece, um dia vai sofrer, as favas estão contadas. Às vezes, minha nêga, não dá nem para sacudir a poeira, a foice escapole, decepa, prematuramente, pela raiz, o pé da bela flor recém-florida. Da ausência de Cris, o meu amor profundo, nunca mais vou me recuperar, o futuro promete o alívio que não consegue cumprir, cansei de, resignadamente, aguardar. O terceiro baque foi o diagnóstico da artrose generalizada, acompanhada da velha artritezinha rara e complicada, alojada nas articulações do extenso corpo desvalido, na sacro-ilíaca, inclusive, porque eu sou chique, bem, quarenta e cinco dias de impressão da ossatura esfarelando, dor física de endoidecer, dessas que o sujeito sequer desconfia que possa vir a experimentar um dia, por baixo do tapete da pele, dor de querer desistir de ser.
Sinto-a pronta para viver a sua melhor idade, esperar não é saber. Eu acho que o show está recomeçando, sob nova direção, Luciana, a sua. A faca, a goiabada-cascão e o queijo estão sobre a sua mesa. O convidado de honra chegou, no frescor da madrugada, o a(o)caso já lhe apresentou, fez a sala. Fico feliz que você tenha mencionado filho, em um de seus recentes comentários, não cometa o erro crasso de partir daqui sem contribuir com um filho para a roda-viva do mundo, o giro do mundo requer pessoas e mais pessoas, uma nova legião de gente boa, entre elas seu filhinho, da barriga, do coração, da intuição, sei lá, um filho para amar, a quem contar fábulas de amor, um filho para (des)orientar, que, de grandes intenções, o inferno anda superlotado, né, rá rá rá? Ele saberá que você esteve sempre certa, quando ele crescer... e aparecer. Eduardo contribuirá, decerto, com um pequeno e definitivo verso, como faz Ronaldo, meu marido, que Deus escondeu debaixo das longas barbas brancas, toda essa eternidade, graças a Deus, para ser o dono de mim. Um beijo. Boa sorte. 

4 comentários:

  1. Nunca imaginei a vida por esse lado. Os filhos se rebelam contra os pais, pensando que tudo é injusto, falso e antiquado e acabam virando a imagem dos pais quando mais jovens. Minha mãe sempre me diz que eu deveria ser um filho melhor, que "no tempo dela as coisas eram diferentes", bom, deviam ser mesmo, mas ela já foi como eu algum dia, tenho certeza kkkkkkkkkk

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  2. Quando penso que já esgotei minha cota de lágrimas por essa vida, me deparo com uma citação, tão sutil, tao delicada. Só magoa se a ferida estiver aberta né? Dedo fincado em cicatriz fechada nem causa desconforto, nem causa lágrimas. Sabe tia Drica, quando viajamos transcendentalmente pela mente e corpo de outras pessoas, imaginando como é sentir e ser alguém. Não sei se a senhora já teve essa sensação? Eu já, e é ruim demais. Fiquei hoje aqui, lendo e relendo essa parte, refletindo e pensando sobre cada letrinha que me chamou atenção, lembrei de tudo que fiz questão de enterrar, viajei na mente e senti o sentimentos de algumas pessoas.
    Posso parecer insano, mas juro, que senti tudo isso.
    E pode deixar, sou cabeça dura, mas escuto aqueles que tem mais chão pisado que eu.
    Obrigado tia Drica.
    Ótima crônica, como sempre.

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  3. Chorei, viu?!
    Não sei que danado foi isso que as mulheres dessa família não quiseram procriar.
    Eu agora ando apavorada com o tempo e querendo muito...
    Lindo d+ tia!
    Bjs
    Manu

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