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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Quatro patas inquietas

Depois que a gente se mudou para cá, para os Lagos, Nico ficou mais suscetível a doenças de toda sorte, a veterinária explicou. Ele levava uma vida plácida, naquele gelo ártico de Friburgo, ocupado em comer e dormir, e cavucar as coisas da rua muito de vez em quando, protegido de todos os males da terra e do ar, debaixo daquela coberta encardida, isso quando ele só contava com o pai, porque eu, a essa altura da história, nem sonhava que a gente nunca pode dizer ‘dessa água não beberei’, então eu repetia essa babosice todo dia, porque ter idade não tem nada a ver com ter maturidade. Aliás, quando eu penso que estou madura, alguma intercorrência cotidiana que nem é coisa muita, já me derruba da sela, eu caio do cavalo e me sinto uma minhoca com tosse completamente incapaz de dar um passo, nem para trás, nem para adiante. Aí eu penso ‘como eu sou imatura!’, e choro até ficar entorpecida.  Eu não sabia que eu ia ganhar um cachorro de presente, para eu amar e respeitar todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe. Deus me despachou de uma vez só, um marido e um cachorro. O marido veio cardíaco, cheio das isquemia já, e eu, do dia para a noite, virei essa mulher grave e atenta, diligente e vigilante, usuária dependente de fluoxetina diária na máxima dose.  O cachorro, com dois dias de praia, adoeceu feio. Mais dois dias, e o bicho estava com os dias contados.  Tem uma médica veterinária aqui, que fez o curso por correspondência, aposto, e sentenciou, categórica: ‘eu acho melhor vocês adotarem outro cão, Nico tem um tumor de fígado com metástase no pulmão. Ah, e tem um sopro no coração’. Ao meu bem mostrarei o coração, um sopro e uma ilusão, eu sei. Na idade em que estou... A especialista em questão descobriu isso tudinho enquanto tratava a doença do carrapato que acometeu meu velhinho, enfermidade essa que eu desconhecia, bicho pra mim era de pelúcia, estão lembrados? Eu nem me lembrava de que os carrapatos e eu coabitamos o planeta. Pra resumir, a gente gastou o que tinha e o que não tinha para salvar Nicolau da terra das pata junta.  A gente chorou o que tinha e o que não tinha de lágrimas sentidas e a gente trouxe pra casa outro salsicha, esse sem grife, um vira-lata muito do cafajeste, que atende pela graça de Valentim.  Aliás, não atende, porque ele é muito sem vergonha e sem limite e não escuta ninguém. O nome fui eu quem escolheu, é o nome de um dos vinte e sete filhos de Dado Dolabella, eu li numa revista de fofoca, adorei, achei que era forte, garboso, não pensei sequer por um momento na personalidade e no caráter do ator, cantor, compositor, etc. Agora nem adianta mais conjeturar a respeito dessa escolha. Faz exatos dois anos que a gente confirma que Nick não era um paciente tão terminal assim, e ficou claro para mim, naquele olhar opaco que ele nos lança do sofá, olhar perdido conquistado com os anos, opaco porque ele tá cegando, o que não é de todo mau, certas coisas na vida é melhor um animal não ver, o quanto ele despreza o irmão. Valentim já é adulto e gasta todas as vinte e quatro horas do dia enchendo o saco dele. O caso é tão sério, tão desesperador, que a doutora, outra doutora, bem entendido, que daquela lá eu não quero ver nem a sombra, a fabulosa doutora que agora toma conta deles, a Drª Érica prescreveu para ele um remedinho de seis milhões de dólares, um antioxidante, condroprotetor, umas cápsula com ômega 3 e umas raspinha de ouro dentro, só pode ser, pra ver se ele sobrevive.  ‘Valentim é um cachorro sem mãe’, meu marido brada aos quatro cantos deste modesto lar todas as manhãs. Valentim dorme debaixo do sovaco do meu marido todas as noites, sobrou para mim o bagaço esporádico de um sábado ou outro, e é só porque tem noite que eu abro o fole, grito, esperneio, ameaço voltar para Recife no primeiro trem, deixar esta casa para as traças. Enquanto crescia, Valentim destruiu pelo menos oito das minhas sandálias arezzo, sete havaianas que não soltam as tiras, mais dois sofás, um celular, um pé de mesa, três cadeiras, dois pés de cama, dois pares de óculos, seis almofadas, três cobertores e duas fronhas. Valentim comeu meu coração de galinha num xinxim, ai de mim. Um dia desses, quando Raul chegar, porque é certo como a morte, que um dia eu vou ter um cachorro que vai se chamar Rauuuuul, Valentim vai saber o que é ser velhíssimo. E ter um irmão sem pai. Nem mãe. Ah, se vai.

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