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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Ilusão

Eu tenho muitas coletâneas de crônicas, muitos livros. Não sei direito se sou preguiçosa para os romances, eu sou preguiçosa para tanta coisa, mas, de fato, as histórias curtas me pegam de jeito. Toda vida fui assim. Acho de uma competência brutal o sujeito dar o seu recado, entrar para a rol dos bons de pena, na linha vim, vi e venci, informando, inventando, integrando, inflamando, e inspirando - tanto que estou aqui a postar estas mal traçadas - na imensidão de duas páginas impressas. É o que me faz também, em igual medida, leitora de poesia. Cabem dez livros num poema, eis o que penso. Por essas e outras, conheço crônica de tudo quanto é idade e procedência. Conheço As cartomantes, de Olavo Bilac, um diamante no gênero, uma preciosidade do primeiro ao último parágrafo. “O conto-do-vigário nasceu ontem, e a polícia ainda não conseguiu extingui-lo. O jogo do bicho é um vício infante, e a polícia ainda nada pôde contra ele. Por quê? Porque não é difícil prender e castigar o passador do conto-do-vigário e o banqueiro do jogo do bicho; mas é impossível exterminar a raça dos tolos; e, enquanto houver tolos que queiram ser enganados, eles próprios inventarão quem os engane”. “A superstição é velha e eterna como a inteligência”. Dá-lhe, Bilac.
Eu não creio em bruxas, mas... Já visitei uma penca de videntes lá em Recife, desvendadores dos mistérios escondidos nas cartas, nas linhas da mão, nos búzios, nas runas, na tolice de quem quer crer, “como mentiam as cartomantes, como eram falsas as bolas de cristal”. Em Petrolina e no Rio de janeiro também. As ciganas leram meu destino, alhures, e eu fiquei sempre só sabendo da parte boa, a ela me agarrando com unhas e dentes, que além de preguiçosa, sou medrosa de dar dó. Não posso falar pelos outros, conheço muita gente que esbanja coragem, e segurança, e auto-suficiência, e fé na vida, no homem e no que virá, e o raio que o parta, mas a criatura que vem lhes relatar agora um acontecido, é uma criatura mergulhada nas mais profundas águas das incertezas da existência, uma pobre alma atormentada, debatendo-se nas movediças areias do hoje e do amanhã, e temendo-as por demais.
Chegou um momento na minha vida em que eu decidi ser par, me apaixonar por um  heterossexual solteiro, uma empreitada praticamente impossível, fadada ao malogro, na curva perigosa dos quarenta anos, porque é justo aí quando os heterossexuais solteiros do pedaço querem permanecer solteiros até o seu desencarne, veja bem quão simples era a minha aspiração, eu planejava me apaixonar por um homem, fazer deste homem um homem também apaixonado por mim, apaixonado a ponto de querer casar-se comigo, de papel passado, no civil e no religioso, para viver com ele, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, além da morte física, a mais bela e doce história de amor de que se tem notícia. Tomada a decisão, fui a uma consulta com uma taróloga, uma velha linda, muito meiga, muito sábia, uma mulher que as estrelas me apresentaram, ou foi a lua, ou foi Deus, uma antiga moradora de uma ladeira de Olinda. Olinda, tens a paz dos mosteiros da India. Minha consultora para assuntos esotéricos também.
Nas cartas estava escrito assim, que era para eu me preparar para a minha primavera, pois um longo, rigoroso e necessário inverno de desventuras em série  findara, abrindo portas e janelas para os floridos, coloridos canteiros da vida. Me lembro como se fosse hoje, ela me perguntou: você está vendo este imperador carregando uma flor de lótus na mão? Pois ele vem carregá-la nos braços, com a mesma delicadeza e cuidado. Tolamente, acreditei?
O tempo passou, passou, passou, e eu achei que o imperador vinha de jegue, haja vista a demora. Um dia eu arranjei um namorado pela internet, mas eu achei que ele não podia ser o  tal imperador, porque ele morava muito, muito longe de mim... E era carioca. Cariocas são bacanas, cariocas são sacanas. O namorado desabalou-se do Rio de Janeiro pra Recife pra me dar um nome e um novo estado civil, e eu comecei a reconhecer naquela calvície sedutora, naquela charmosa protuberância abdominal, nos olhinhos infantis, o príncipe encantado do reino de São Sebastião do Rio de Janeiro, para mim designado pelas altas esferas do imponderável. Deu-se que o príncipe era funcionário da Justiça do Estado, impedido, portanto, de morar em outra cidade, a menos que se mudasse desempregado, mas aí não tem conto de fada que perdure mais de vinte dias, vamos combinar. Porque sou funcionária pública federal, ih, foi mal, resolvi tentar uma transferência de emprego, já estava casada, muito bem obrigada, só faltava mesmo o comer sal junto, como se diz na minha terra. Num é que a coisa deu pra trás? Ninguém me amava, ninguém me queria na Guanabara. O desespero foi tanto que eu telefonei para a taróloga, aos prantos, desatinada, implorando uma consulta de emergência, me lembro como se fosse hoje, ela, de dentro da paz, uma paz que eu desconheço, me dizendo “venha, conversaremos”.
Nas cartas estava escrito assim, que era para eu sossegar, a solução vai chegar sem você arredar um pé de onde está. Não há quem possa interferir na missão que lhe coube, Adriana. Nada impedirá. Eu não acredito em bruxas, mas... Dias depois, a colega do RH me ligou, eu estava na minha própria casa, contando a novidade,  a publicação no Diário Oficial.
A vida é uma biribinha. Tem dias que eu fico pensando na vida e, sinceramente, não vejo saída diferente de viver e arriscar todas as cartas, numa fé improvisada.  Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Entardeceu enquanto eu escrevia, o imperador chegou do trabalho, subiu pra tocar violão, não sem antes me beijar apaixonadamente, eu nem pedi, tão entretida fofocando, ele beijou porque quis mesmo, todo dia é isso. “É impossível exterminar a raça dos tolos”. A missão é secreta até para mim, não sei, não quero saber, tenho raiva de quem sabe. Eu não acredito um tico na ciência das cartomantes. É primavera. Te amo.

4 comentários:

  1. Professora, que surpresa linda ver a sua leveza pernambucana transposta em palavras. Em verdade, pra uma pessoa como eu, ler esses textos é como um sopro de vida numa alma tempestuosa, um alívio gostoso, certo e cheio de inveja (boa, é claro) por querer sentir as coisas assim, como você.
    Agora vou roubar mais um pouco da sua leveza em outros textos, mas não sem antes dar-lhe os parabéns, escreve muitíssimo bem.
    Beijos (e saudades)

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  2. RONALDO BARROSO (IMPERADOR). CERTAMENTE É PRIMAVERA E QUEM TEM CIÊNCIA SABE REALMENTE DAS COISAS. É MÁGICO, AS COISAS ACONTECEM, DENTRO E FORA DA GENTE. A MATERIALIDADE É DEUS, O DIVINO, A FLOR DE LOTUS, É SIMPLES ASSIM...

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  3. "É impossível exterminar a raça dos tolos".. lindo. Eis mais uma tola, que vos fala, e acredita, sempre, sempre.
    Beijos!! Até breve, para mais um encontro mágico. Com carinho, Lu

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  4. Sempre fico hipnotizada ouvindo essa histórica e ela ficou muito linda contada assim!

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