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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Quatro patas

A Lygia Fagundes Telles me contou uma história uma vez, a mim e a cada criaturinha do planetinha azul que também leu a história no livro dela, óbvio e ululante que a Lygia Fagundes Telles nunca tomou conhecimento de conversa alguma que jamais houvesse tido com a minha humilde pessoa, é tudo viagem dessa minha cabeça ociosa, a quem a greve concede mais e mais ócio ainda, pela graça divina. Uma história sobre um padre velhinho que ela encontrou numa viagem (era uma vez uma viagem...). Ela ficou muito impressionada que o padre se despedisse dela dizendo ‘até logo’, porque o padre era muito, extraordinariamente velho, ela tinha tanta certeza de que não retornaria àquele lugar tão cedo, como é que um velho tão velho, desses que perdeu o bonde do tigrão da morte porque o motorneiro queimou a parada, despedia-se das pessoas assim desse jeito leve de quem vai viver mil anos.  Tinha de ser ‘adeus’, meu senhor, mas ‘até logo’? Peraí, né? Eu vou procurar direitinho pra postar o relato aqui fidedignamente, sem aumentar um ponto, Deus o livre. Trata-se de uma crônica memorável, muito reveladora, pelo menos, assim o foi para mim, na ocasião da leitura.
Nem pense que você sabe alguma coisa da sua vida porque você não sabe. Esse mote despertou comigo. O marido, os meus adoráveis cães e o mote. Todo mundo anda de saco cheio dessa minha conversa de cachorro. Menos eu, que estou no mundo, e não esgotei o assunto. Você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui. Eu nem cochilei. Nas noites escuras de frio, chorei, ei, ei, ei. Desde pequena, eu achava que essa coisa de bichinho era coisa pra retardado. Bicho perto de mim, de pelúcia e olhe lá. Quando eu vim para esse mundo, eu não atinava em nada. Meu pai e minha mãe, que Deus os tem, deram graças a Deus dos demais filhos serem adultos, a caçula contava treze anos, de maneiras que gente em casa não ia faltar pra tomar conta. Cresci assistida por quatro ou cinco mães postiças, a mãe de verdade guardou uma segura distância de mim, já naquela idade, pariu a raspa de tacho com quase quarenta e cinco anos, para ela pareceu-lhe o melhor a ser feito, e eu compreendo. Pois muito bem. Ninguém cogitou me arranjar um animalzinho. Podem não acreditar, mas guardo uma foto, essa vai para a posteridade, uma foto minha com uns cinco, seis anos de idade, eu muito bem penteada, muito da sisuda, vestida pra festa, muito bem sentada numa cadeira muito da chique, olhando um livro de João Cabral, salvo engano. Não era Rex que eu mantinha envolvido em meus braços, nunca houve Rex, nem Teco, nem Filó, nem Totó, nem Rim-tim-tim. Não é minha mentira não, no dia que eu mentir o mundo se acaba.
O tempo passou e eu completei quarenta e dois anos de idade. Arrumei um marido pela internet. Enquanto o marido era namorado virtual, eu vivia sobressaltada, pensando que tava namorando um ET, porque o marido, até aquele momento um reles namorado virtual, era um sujeito que preferia não ter face nem nome. No dia em que eu pedi a ele que por Jesus crucificado ele me enviasse uma foto, ele, o marido namorado virtual, me enviou o retrato do cachorro mais sensacional de todos os tempos, um sonho tão completamente meu, trancafiado a dezessete chaves dentro do meu peito de menina, meu amado, meu idolatrado, salve salve Nicolau, o meu cachorro. Me chamo Ronaldo e quero que você conheça  Nicolau, o meu melhor amigo. Goste dele. Nem pense que você sabe alguma coisa da sua vida porque você não sabe. Nicolau saltou daquele retrato para o meu colo. Nicolau transpôs todas as intransponíveis muralhas do tempo para lamber a minha cara de cinco ou seis anos naquele outro retrato. Nenhuma criança do mundo merece ser uma criança madura para a idade. Nenhuma criança do mundo merece tomar refrigerante só aos domingos.  Nenhuma criança do mundo merece que algum débil mental lhe diga que ela já é uma mocinha. Ou um rapazinho. Nenhuma criança do mundo merece ser uma criança que não pode amar um cão, trazê-lo, com todos os germes e bactérias que lhe são intrínsecos (e transferíveis, e daí?), para dentro de sua própria casa, para rolar com ele pelo chão até cansar e dormir ali mesmo abraçada a ele, seu amigão. Pobre de quem se rende aos encantos de um cão. Esse vai ser gente. Esse nunca mais vai ser sozinho. Um cachorro faz um homem. Um cachorro faz um homem virar outro homem. Meu cachorro é a cara de Deus.
Nicolau tem quatorze anos e um irmão, mas essa já é outra história.

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