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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Tropeços

O gigante Bruno, meu amigo, o maior e melhor ficcionista da América Latina, que está organizando uma oficina de conto lá na escola, me contou uma coisa que eu não sabia. Existe uma formulazinha infalível para a pessoa escrever um conto. Se eu, com essa minha memória precária, conseguir decorar a tal formulazinha, vou me aventurar nesse terreno, porque Bruno tem essa qualidade imprescindível a qualquer professor que pretenda honrar o ofício, ele desmistifica o labirinto, é um facilitador por natureza. Se eu tivesse para onde esticar em termos de estatura, eu queria ficar do tamanho do Bruno. Enquanto o dia de crescer não chega, me esbaldo atirando para todos os lados, impassivelmente desconexa, que ele também me garantiu que a crônica não precisa fazer sentido, ela padece dessa falta de pé e de cabeça, uma hora toda tronco, outra hora toda troncha, inconclusiva, insensata, na medida certa do bel-prazer de quem se arrisca a escrever.
Por causa da queda de ontem, na saída do mercado, hoje decidi confabular sobre os tropeços da vida. Eis uma metáfora redonda. A minha ideia quando cheguei na feira, ontem pela manhã, era comer duas tapiocas de côco e queijo, comprar uma penca de banana prata, mais uma dúzia de tomates para enfeitar a salada, apanhar O GLOBO na saída, voltar para casa ligeiro, passar um café na cafeteira nova e preparar o almoço, ficando essa parte sob a preciosa orientação e astuta e minuciosa vigilância de Ronaldão, o maior e melhor chef de cuisine da América Latina, meu orientador gastronômico-culinário e marido. Saí com a fórmula na ponta da língua, retornei de cara inchada e doente do pé. Levei um tropeção, um tropicão literal, uma topada tão aprumada não sei onde, que o tampo do dedão voou longe, desabei por cima das notícias de última hora, feito uma jaca madura, Martha Medeiros espragatada debaixo do meu abdômen esfolado, romperam-se as sacolas plásticas para a fuga dos tomates, cada qual rolando desembestado para uma esquina da rua, caí e lá fiquei, estatelada, só esperando o anúncio da trombeta, meu anjo descendo por uma vereda de luz, pavimentada, diga-se de passagem, para me alçar, feito um pássaro ferido, para o andar de cima, 'up up and away in my beautiful balloon', isso porque eu acredito piamente que 'love lifts us up where we belong'. A minha vida tem trilha sonora, nessa hora mesmo eu só me lembrava do Rei, “mas se não for por amor, me deixe aqui no chão, me deixe aqui no chão”. Juntou uma plateia de uns vinte machos bons de coração, um mais solícito que o outro, o povo querendo adivinhar meu peso, calcular com justeza a força da roldana para o içamento, eu cega de dor, me acabando de chorar, passaram a mão por baixo do meu sovaco, eu sou uma criatura que não pode ser tocada no sovaco, que eu dou logo um choque, minha gente, uma cena dantesca, uma tela surrealista, que parece que é mentira minha, mas não é, presenciou quem estava lá, e vai viver muitos anos para contar. Pelo amor de Deus, isso era eu ,no calor do desespero, vão em paz, sigam seus caminhos e me deixem aqui no chão. Eu não sei o que acontece com o meu marido quando eu me acidento, parece que ele congela, sobrevém-lhe uma paralisia motora, eu acho que ele fica esperando que alguém resolva, deve ser medo de um desencarne prematuro, meu ou dele, eu não vejo nem a sombra de Ronaldo. Se não é um vizinho, o marido de uma amiga, um transeunte passando por ali para a minha sorte, eu me lasco todinha, só escutando a voz, ele fica mandando eu parar de chorar, é só o que ele sabe fazer nessas horas. Quanto mais ele pede para eu parar, mais eu choro, choro copiosa e escandalosamente, na linha ela desatinou, aliás, se a pessoa quer que eu pare de chorar, fique calada sem dar um pio de pinto, que pode ser que haja a remotíssima possibilidade do silêncio absoluto surtir algum efeito, mas antecipo desde já, que é muito pouco provável.
Do instante da palmadinha na bunda pra gente chorar, gesto amoroso que eu nunca consegui entender, basta deixar o bebê viver, que a vida é que se encarrega de lhe maturar os pulmões, que esse vale é de lágrimas; até a hora da agonia da morte, que eu não sei como é morrer, mas eu tenho certeza de que morrer não é nada fácil; da hora do primeiro buá até a hora de abotoar o paletó, a vida é coice por cima de queda. Eu estou acompanhando a batalha daquela galera raçuda do Fantástico, três fumantes continuamente monitorados pelas lentes do programa, fazendo de tudo para abandonar o vício. Existe esse homem que aparece em família, com esposa e filhos, já o vi no trabalho e já o vi conversando com amigos. Existe uma mulher que apareceu no salão de beleza, arrumando o cabelo, noutro momento ela estava com umas amigas, tomando cerveja e batendo papo. Entretanto, eu estou completamente envolvida com a luta de uma moça em particular, uma gordinha simpática, olha a redundância. Quando a vi, senti que para ela seria muito mais difícil. Acertei em cheio. Das duas uma, ou eu cochilei e perdi um bom pedaço do programa, ou ela é aquela mulher de uma solidão imensa, do letreiro 'eu sou só eu só' piscando na testa, não a vejo acompanhada de outra pessoa diferente do Dr. Dráuzio. A moça tropeçou no sentido figurado do tombo, essa semana, caiu feito uma pata, e bravamente o admitiu, na televisão, em cadeia nacional, numa atitude comovente. Diante de um médico ex-fumante cujo simples olhar é um abraço, ela confessou a recaída. Ela acendeu  um cigarro, deu umas boas tragadas, sentiu-se esquisita, a cabeça rodou, ela estancou, de repente, ou foi o mundo então que... venceu. Ela fumou. Ela deseja do mais profundo da alma que o BRASIL SEM CIGARRO seja para sempre a sua “mãe que dorme olhando os filhos com os olhos na estrada”, a sua pátria-mãe acolhedora e gentil, disposta a lhe dar mais uma chance, se ela vier a sucumbir de novo. Ontem ela conseguiu reerguer-se, sacudir a poeira e dar a volta por cima.O fundo do poço tem mola. Hoje é mais um dia de cada vez. Essa moça jura que não tem ninguém com quem contar, mas ela conta comigo.


Para o meu amigo João, claro.

Um comentário:

  1. Nesses momentos a gente vê que ninguem sobrevive sozinho, não é. Nada como um escorregão, um tropeço, um choque, uma alfinetada, uma crise, um diagnostico, p gente pensar e repensar a vida. É curta, é misteriosa, e muito imprevisísvel. A gente pensa que tem o controle, imagina...
    Tocar o barco, tocar em frente, como um boiadeiro, e no minimo, transformar a vida numa estoria bonita de ser contada, apesar dos pesares.. das quedas e tropeçoes.
    Bom te ver de pé, tia linda. Beijo no coração, Lu

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