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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Know-how needed

Moro numa cidade cheia de ritmos, que sobe e que desce ao som da maré, ela canta, ela dança, ela toca, ela vibra. Meu rincão é o paraíso na terra, não me interessa sair daqui para Nova York, para Milão, para Dubai, nem para a cidade-luz, minha Paris dos sonhos de qualquer um, que conheço como a palma da mão, só de ouvir falar. Quem dispõe de olhos e de ouvidos atentos, como os meus, cruza os sete mares sem sair do lugar. Só deixo o meu Rio de Janeiro de todos os santos, inclusive do meu São Sebastião, no último pau-de-arara, para morrer em Olinda, isso Deus pesando meus pecados bem pesados, e decidindo, em Sua infinita bondade e misericórdia, que eu mereço o merecimento. A cidade do Rio de Janeiro dista 174 quilômetros de onde resido. Isso faz toda a grande diferença. Tenho pra mim que as pessoas que sabem resolver tudo como ninguém, todos os especialistas do que existe nesse mundo véi sem porteira, essas pessoas ficaram todas pela beira da praia de Copacabana e de Ipanema, andando pela praia até o Leblon. Deve ser vontade de topar com Lígia, ou com o velho Chico, incógnito, disfarçado de Tom Jobim, numa caminhada ao entardecer. Topar com o velho Chico é encontrar uma agulha num palheiro, Chico prefere Paris.
Por incrível que pareça, o tema da crônica de hoje é know-how. Ou falta de. A falta de conhecimento operacional das coisas não chega a ser uma calamidade, desde que bem acompanhada de um chope, pra distrair. Eu estou numa idade em que tudo é muito importante, mas nada é tão importante assim. Como diria um colega paraibano, 'minha amiga, eu quero é prazo'. Quando nos mudamos pra cá, nosso primeiro desafio foi achar um abençoado que consertasse uma descarga de banheiro. Recebemos três especialistas, na ocasião, um em cada dia, cada um diagnosticando a seu modo o problema sem solução. Recomendaram-nos um quarto consertador de descarga, o Fusquinha, um cara boa praça, Fusquinha porque o nome dele é Almir Rogério, igual ao nome do cantor do sucesso Fuscão Preto, você é feito de aço, etc. Fusquinha desvendou o mistério da descarga quebrada, fez o reparo sem cobrar uma fortuna... E morreu. Fusquinha dirigia um fusca jurássico, sofreu um acidente na estrada, indo não sei pra onde, partiu dessa pra melhor. Eu não acho que Fusquinha deixou de existir, pra virar purpurina, porque eu acho que a gente não morre nunca. Preciso só de uns esclarecimentos por parte da minha irmã Isis, especialista nos assuntos do além, uma encarnada que transita entre os dois mundos com a facilidade de quem vai na venda comprar uma lata de goiabada e volta já, preciso saber dela se ele ainda é, no andar de cima, o cara competente que o irretocável serviço no nosso banheiro nos revelou, cá embaixo, entre os meros mortais. O trem desunera, em qualquer cômodo do nosso lar, e é tiro e queda, Ronaldo se lembra do Fusquinha, faz um comentário elogioso, emocionado, eleva a Deus uma prece, e a vida segue, meia-boca.
Trouxemos no caminhão, eu e Ronaldo, de Recife e de Friburgo, respectivamente, a voltagem de Friburgo também é 220, uma média de doze eletrodomésticos que nos espiavam das caixas, rindo-se da gente, pois aqui a voltagem é 110. Conversando com os vizinhos, aprendemos que o sujeito pode mexer na voltagem de um pedaço da casa a seu bel-prazer, e foi isso mesmo que fizemos. Depois de muita peleja, Fernando, funcionário da Engeluz, mudou a voltagem das tomadas da cozinha. Comemoramos a data todo ano, juntamente com o aniversário de casamento. Há duas datas comemorativas relativas ao fato, vocês entenderão por quê. Ocorre que a torneira da pia da cozinha estava numa altura impossível da pessoa lavar um prato sem se molhar, da franja até o dedão do pé, a pessoa trazia o xampu e já saía da cozinha com a louça asseada e de banho tomado. Meu ditoso marido teve a brilhante ideia de mexer na altura da torneira da pia da cozinha. Fusquinha, de uns tempos pra cá, presta assistência a São Pedro, é sabido. In other words, fez-se a merda. O especialista da ocasião, pela graça divina esqueci a graça dele, meteu a marreta pra cima, estilhaçou uma grosa de azulejo, virou, mexeu, sacolejou, cimentou, reazulejou, e o balcão ficou um mimo. Ronaldo estava prestes a estourar o champanhe, quando eu alertei: 'not yet, sweetie!, a máquina de lavar quebrou. O acendimento automático do fogão quebrou. A batedeira, a sanduicheira e o liquidificador também. O refrigerador deu o último suspiro'. Teria sido cômico, se a gente não estivesse com todos os nervos à flor da pele. O especialista da ocasião conseguiu desligar todas as tomadas da cozinha e adjacências, nem 11, nem 12, nem 110, nem 220, nem mel nem cabaça, tudo em greve, debaixo da argamassa e dos azulejos reluzentes. Num sábado à tarde. O especialista da ocasião, àquela hora, já estava no bar, gastando com salaminho, cerveja e mulher, a grana preta que levou da gente. O mais extraordinário é que o especialista da ocasião ficou subitamente incomunicável. Fernando da Engeluz retornou de novo, o bom filho à casa torna de novo, na segunda-feira, pra fazer seu serviço de novo, e cobrar de novo, que ele é bom, mas não é besta. É aí que meu coraçãozinho encolhe, vira uma uva-isabel. Um acontecimento desse, uma hora dessa, carrega meu marido pra fazer companhia a Fusquinha, eu fico viúva de pai e mãe, abusando do pretinho básico, que, pelo menos, me cai bem como uma luva.
Há ignorâncias com as quais a gente lida muito mais levemente, entretanto. São as atitudes sem o menor vestígio de technical expertise, mas que não provocam desastre, nem dor, nem sofrimento, nem rombo na conta bancária, nem processo nas pequenas causas. Aquelas bem intencionadas, bonitinhas, ingênuas até, enternecedoras, comuns aqui na região. Ronaldo e eu somos duas formiguinhas fora de forma. Digo isso assim, sem receio, porque a cardiologista dele não sabe do meu blog, nunca vai ler o que ora lhes confidencio. Temos um trato. Pelo menos uma vez por semana, chova ou faça sol, saímos em busca de um novo cappuccino, de uma nova torta, de um lugar diferente pra gente adoçar o lábio e a nossa relação. A gente se lambuza de açúcar, de pôr-de-sol e de poesia, e volta pra casa feliz de ainda não estar no ponto de visitar o amigo Fusquinha. Outro dia fomos atendidos por um veadinho muito simpático, efusivo, num bistrô aqui perto. Eu não tenho um tostão de preconceito, quem me conhece sabe. Tenho tio veado, primo veado, sobrinho veado, amigo veado, ex-chefe veado, cabeleireiro veado, médico veado, aluno veado, vizinho veado, ex-namorado veado, enfim, adoro viver cercada de veado, amo e respeito cada um deles, mas são veados, que se há de fazer? Se o atendente fosse gordo, eu assinalaria um veadinho gordinho. Ou gordo, ou gordão, ou bola, ou bujão, ou rolha de poço, ou moby dick, dependendo da circunferência. Sofro bullying desde o berçario, e sobrevivo, achando que é coisa pouca. Sobrevivo pra contar a história. Pois muito bem, o tal balconista era falante, afetado, já se aproximou assim: 'o que o distinto casal vai escolher hoje? Temos torta crocante, a famosa torta alemã e, ali, à direita, um sublime cheesecake!' Ronaldo optou pela famosa torta alemã, controlando, dentro das possibilidades, a gargalhada. 'A senhora, o que vai querer?'... Eu olhei pra esquerda, vi um bolo lindo, fiquei com água na boca, perguntei, apontando: 'aquele é de chocolate?'. Ele confirmou, balançando a cabeça. Aí eu fiz a pergunta que ele temia: 'o recheio e a cobertura são de quê?' . Ele respondeu: 'essa torta é suprema'. Eu fiquei esperando. Ele acrescentou: 'deliciosa'. Depois: 'muito suculenta'. Depois: 'a senhora não vai se arrepender'. Finalmente: 'fantástica'. Eu tive de pedir uma fatia, ligeiro, virar as costas e explodir na risada. Sentei-me à mesa, frouxa de rir, não conseguia parar. Ronaldo achou pouco e disparou: 'olha, ela tá rindo de você!'. Pra quê? Ele me olhou, querendo saber se havia algum problema, quanto mais ele falava, mais eu ria, fiquei repetindo 'a torta é muito boa, meu filho,e eu não tô rindo de você de jeito nenhum!'. Fui respirando devagar, pra me recompor, mas o cara se aproximou da mesa, me encarou e encerrou o assunto: 'é mesmo esplêndida, não é, senhora?'. Minha gente, eu ri até chegar em casa, o bichinho não entendeu nada, aquilo é que é vestir a camisa da empresa... Ele não conhecia um ingredientezinho sequer da bendita, mas vendeu o peixe, com os adjetivos que conhecia. Não sei de que é feita aquela maravilha, desconfio que nunca vou saber, mas é esplêêêêndida. Assunto encerrado.
Hoje cedo fomos ao mercado Princesa, buscar leite na promoção, e, só pra não perder o costume, batemos o ponto na lanchonete. Estudei a vitrine dos doces, me encantei com uma torta massa, perguntei pra moça: 'essa torta é de quê?'. A menina me lançou aquele olhar 43, meio de lado, já saindo, franziu a testa, ficou repetindo: 'é..., é..., é..., é..., é...', depois saiu da saia justa, muito antologicamente: 'é tipo assim um pé-de-moleque'. Ronaldo sentou pra não desabar no chão. De rir. Nem de pé-de-moleque essa moçada do sul entende, eu não sei de onde ela tirou essa resposta. Desisti, pedi duas empadas e dois cafés. A outra moça entregou as duas xícaras a Ronaldo, uma delas perfeitamente acomodada, a outra não parava no pires, o café derramou pra todo lado. Escolhi a limpinha, obviamente, 'Ronaldo, meu filho, que retardo é esse, isso é parkinson?'. Ele, delicado como a minha pele: 'Parkinson é o cacete, porra! Experimente ajustar essa porra dessa xícara nessa porra desse pires, vá!'. Humanamente impossível, de fato. Eram as duas peças, a xícara e o pires, de dois conjuntos de louça distintos!! Mais risadas incontidas, dois fígados desopilados, beijos na boca apaixonados e assunto encerrado.

Para minhas best friends Adriana, Renata e Jaque. Sem vocês, o blog perderia a razão de ser.

2 comentários:

  1. Ronaldo disse: As pessoas são incríveis, se adaptam a qualquer situação, têm jogo de cintura, fazem o jogo do tudo sei e de tudo entendo, isso pra sobreviver nesse mundo de meu Pai. Caprichar nos adjetivos e esquecer dos complementos, mas todos são assim: Adjetivam para sublimar o que faltou lembrar. Assim sua crônica está "esplêêêndida!!!", "soberba", " "sumptuosa", "pomposa" etc e tal...

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  2. kkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    "especialista nos assuntos do além, uma encarnada que transita entre os dois mundos com a facilidade de quem vai na venda comprar uma lata de goiabada e volta já"...... essa foi demais!! kkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    eu ri muito............
    estás cada vez melhor, tia..
    jajá escreves um livro, sim ;))
    beijo com muita saudade. Lu

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