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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Aliança

Os motes amontoam-se dentro da minha cachola, cada dia é dia de uma boa ideia para a crônica que vai inscrever meu nome no mármore da calçada da fama. Adriana Ninguém, de uma vez por todas, agora e para além da eternidade, no rol dos imortais contadores de historinha pra boi dormir, diga aí. Toda hora eu penso que a hora chegou, quem me vê debruçada sobre o maldito teclado desse maldito computador, sim, meus sete venerados seguidores, mil vezes maldito, porque não existe entre os vivos e os mortos uma pessoa que goste dessa invenção do capeta menos do que eu, quem me vê nesse estado de absoluta contrição e isolamento de marido e de cachorro, jura que a hora chegou. Três ou quatro linhas depois de iniciado o embate, abro as pernas e entrego os pontos, beijo a lona, derrotada. O mais extraordinário do ser humano é o reconhecimento do fracasso. Fracassar com dignidade é uma arte. Perco de novo para Rubem Braga, o maior de todos os maiores. Quem não tem um livro do Rubem Braga, pode até achar que já leu a história mais bonita do mundo, contada do modo mais bonito que uma história pode ser contada, mas não leu. O pobretão infeliz que desconhece Rubem Braga, coitado, no meu modo de ver a vida, ainda nem abriu os olhinhos para a beleza da vida. Existem três assuntos pululando no meu juízo, mas eu não sei por quais cargas d’água, minha língua está coçando para eu lhes revelar, em versão compacta, os melhores lances daquele que foi o casamento do século, o meu. Desconfio que são os piores momentos, não sei, porque se a gente considerar o item superação dos tais percalços matrimoniais, o pior virou melhor, sem sombra de dúvida. Coloquemos assim: intercorrências da cerimônia, relatadas para os filhos, os filhos dos filhos, seus netos e bisnetos, até onde e quando Deus quiser. Não tenho um herdeiro a quem legar a minha miséria, como diria Machado, que, para o meu paladar, não é maior que Rubem Braga, portanto, essa conversa não vai mesmo muito adiante, o que me deixa tranquila e calma para falhar no melhor estilo, se for o caso.
As bodas da nossa querida sobrinha Erika aconteceram em três dias, feito festa de interior, quinta, sexta e sábado passados, lá em Jacarepaguá, onde a menina nasceu, cresceu, enjoou da boneca, tomou corpo, aprendeu para que servem os garotos, consentiu que um deles fizesse do seu coração gato e sapato, namorou com ele pra mais de dez anos, noivou, perdeu o tino e casou-se três vezes, que é pro conúbio vingar na vera e vicejar. Deus permita. Esse cabra tá muito do amarrado, em nome de Jesus. Amém. Se eles não se amam, é melhor internar ambos os dois na clínica psiquiátrica do bairro, três dias de enlace sem amor, é coisa pra doido varrido. O que eu sei é que ela ama muito o meu marido, seu dindo querido, e o meu marido a ama muito, noutras palavras, não me restou alternativa, chorei até ficar com dó de mim. Não procurei esconder, todos viram. Deixei que as águas invadissem meu rosto, as águas da memória me arrastaram para trás, para o miolo do dia 19 de abril de 2009, quando Ronaldão, meu noivo, dentro de todos os conformes como manda o figurino, disse 'aceito', perante a família e os poucos amigos que prestigiaram o evento. Não sei qual foi o santo que baixou nos ausentes injustificados, só sei que muitos amigos deixaram de comparecer, sem jamais pronunciar uma palavra sequer depois, a respeito da ausência tão profundamente sentida pela noiva. Alguns membros do clã dos Oliveira tinham, certamente, compromissos muito mais importantes na data em questão, não deram as caras. Não guardo mágoa nem rancor algum, mas não tenho amnésia.
Eu me casei pela manhã, numa manhã de sol do Recife, em Campo Grande, na igreja onde me batizaram, dentro de um vestido longo branquíssimo, um tomara-que-caia simplesinho, muito clean, entretecido nas costas, feito um espartilho. Simplesinha é a mãe de quem idealizou aquela trança. Eu, desatinada, atrasada como o diabo, tentando acomodar a banha dentro de um corselete. Caralho. Visualize a imagem, se for capaz. Não sou muito fã de igreja não, mas Ronaldo queria porque queria me fazer pagar o mico, eu concordei, pensando que, do contrário, ele poderia me escapar, subir a serra com mais de mil, para nunca, nunca mais. Esse vestido do demo nem foi escolha minha, levei Nilde, minha irmã, no dia de alugar a roupa, ela topou com o vestido e endoidou. O amaldiçoado era tão difícil de ajustar no corpo, ainda mais no meu, com tamanho volume, peito pra dar, vender e emprestar, que eu tive de pagar uma grana preta pra uma quenga duma costureira ficar me olhando nas provas, pra ver se a quenga aprendia a manobrar a porra da tira que cruzava até virar um laço no alto da bunda. A quenga não aprendeu porríssima nenhuma, mas guardou segredo até a hora de me vestir. O vestido não parou no lugar certo nem com a morrinha, eu fiquei parecendo uma cafetina dona de cabaré, as tetas praticamente saltando do tomara-que-caia-cai-a-qualquer-momento, nem sei como o padre concordou com a bênção. O meu cabeleireiro de muitos anos tava drogado, aposto meu salário, me fez um penteado o boi lambeu a testa , a visão do umbral, eu fiquei com uma franja colada na cabeça, até hoje eu pago pra saber qual foi o azeite que aquele filho da puta usou no meu cabelo. Meu juízo foi esquentando, eu rodei minha baiana, a anágua desprendeu-se, a quenga da costureira ajeitou lá como pode, na pressa, o padre veado dando ataque, por causa do atraso, o povo me ligando no celular, eu abri um berreiro, a maquiadora surtou, fez uma meia-sola ligeira por cima do massapê de base, blush e batom, amar é um deserto e seus tremores. Ninguém sabe o que eu sofri. Desaguei o oceano. Cheguei esbaforida na igreja, respirei fundo, com Ronaldo seguro debaixo do braço, caminhei seis quilômetros até o altar. Todo o vivido até ali não passara de um sonho mau. Quisera. O músico, um cara bastante jovem e talentoso com quem combinei todo o repertório da cerimônia e da recepção, todas as canções invariavelmente pagãs, selecionadas e ensaiadas exaustivamente, nos mínimos acordes, o músico resolveu me fazer uma surpresinha. 98,6% dessa juventude é crente, são crentes, sei não, matei essa aula, tem mais crente que gente no meu pedaço, e não é que eu me esqueci desse  pequeno detalhe? Lá pelas tantas, o sujeito atacou de hino evangélico. Fiquei paralisada, com aquela cara de anteontem, meu queixo rolou passadeira abaixo, não entendi patavinas. Tenho horror a hino. Se eu pudesse, despachava todos os cantores e cantoras de hino para o céu, que é o seu lugar. Tive ganas de estrangular o sacana. Não bastasse o exposto, na saída da capela, uma das anáguas escorregou, foi bater no meu joelho, eu empaquei, feito uma mula manca, meu Deus, uma cena dantesca. Mãos diversas por baixo da minha saia, puxa daqui, suspende dali, só me lembro da cegueira, seguida da explosão: arranca esse cacete dessa saia e joga na casa do cão, porra! Em dois segundos e meio o pano tinha desaparecido da minha vista, eu estava recomposta, devidamente sóbria, clássica, sofisticada e elegante, a caminho do salão de festa. Vocês acreditam que o cretino do padre, em nenhum instante, mencionou o forno que era a bexiga do salão de festa? A visita ao espaço ocorrera à noite, à noite os gatos são pardos. À noite... esfria. Meu amigo, é o seguinte: uma hora da tarde, o sol derretendo os telhados e a humanidade inteira, sem piedade, pense num calor de fornalha no subsolo do inferno. Eu com o dom da adivinhação, teria distribuído um lote de abanos na entrada. Entrei e senti a lufada pela proa, aquele bafo quente. Um palavrão bem mandado, no momento exato, acalma, relaxa, te coloca no eixo, dá até sono. Puta que o pariu. Os convidados suavam do suor escorrer face abaixo, as gotículas encharcando os trajes de domingo. Da miríade de refrigerantes e sucos da fruta estocados, não restou um pra fazer um chá. Ah, faltou contar a cereja do bolo. Na hora de sorrir para a foto e partir a primeira fatia, quando eu baixei a vista, tinha uma emenda maior do que eu, uma cicatriz no glacê, na cobertura, sei lá o nome daquele trem. Deduzi que a porra do bolo tinha rachado no trajeto, a galera do bufê certamente se virou nos trinta, improvisou um reboco de açúcar, cimentou na carreira, mas ficou o risco, de alto a baixo. Eu juro por minha mãe mortinha, meu sangue fugiu, eu me senti desfalecer. Mostrei a Ronaldo, ele me disse assim: o que é que a gente pode fazer agora, minha filha? Sorria para a câmera! Puta que o pariu. De novo. Até hoje pago conta feita para o dia 19 de abril de 2009 transcorrer sem quaisquer transtornos ou sobressaltos, juro pela saúde do meu marido, que, aliás, dividiu comigo as despesas. A brincadeira não saiu barato. Teve uma hora que eu parei de somar, com medo de desistir.
Do dia 19 de abril de 2009, ficaram inesquecíveis lembranças de amor pra duzentos anos, garanto-lhes. Os presentes ao nosso casório nos deram de presente a singela discrição. Minha comovida gratidão. Comentou-se muito foi a felicidade em cada canto, a emoção do casal, o júbilo, a luz, o transbordamento de carinho. De fato, erámos um par mais que perfeito. Somos. Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama ainda queima, nada foi em vão. A fé no que virá e a alegria de poder olhar pra trás e ver que voltaria com você, de novo, a VIVER, nesse imenso salão. Entrou pela perna do pinto, saiu pela perna do pato, quem quiser, conte mais quatro.

3 comentários:

  1. Ronaldo disse: Não importa que a mula é manca, mas que ande... E no fim de tantas e tantas coisas, impropérios que a própria vida já traz, decerto que deu tudo certo. Dentre os mortos e vivos, todos sobreviveram. Te amo pra sempre.

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  2. KKKKKK!!!! Como eu estive ausente, por que não nos conhecemos antes, por quê??? Assim como vc em algum momento, dava um salário (sei lá se alguém quer, mas...)para presenciar o evento do século.

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  3. ~transportado diretamente de "A silver lining" porque sou muito curioso~

    A crônica com mais palavrões por palavra digitada foi essa hahahah! Mais que quenga essa moça do vestido hein?! E esses músicos? Querendo mandar no casamento dos outros, olha.... morri de rir. Apesar dos pesares o casamento não desandou né, isso que importa!

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