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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Dona Doida

Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

(Adélia Prado)

De uns tempos para cá, dia sim dia não, vislumbro, quase sem querer, uma leve sombra de apreensão, naqueles outrora descontraídos semblantes dos meus colegas de trabalho. Flagro um discreto soerguer de sobrancelhas aqui, um fortuito ranger de dentes ali, um cerrar de lábios acolá, um sorrateiro apertar de olhos, “um pouco de ruga na vossa testa”, aquele desconforto pretensamente velado, uma urticariazinha, um eczema, penso se somos eu e a minha pontiaguda pena, pobres de nós, os inadvertidos responsáveis pelo que prevalece no recinto. Nem me lembro mais do que foi que me impeliu a criar esse blog, honestamente. No dia que eu mentir, o mundo se acaba. A ideia não pode ter sido minha, que eu sou muito desfavorecida de boas ideias, sempre gastei a fatia mais doce da vida, imitando os outros, mal e porcamente. A sugestão deve ter partido de algum amigo, sei lá, alguém da escola, que me ouviu contar, com todos os mínimos detalhes, a história do meu encontro com meu marido, aquelas minúcias acerca da aproximação virtual, de início, evoluindo para o desejo 'de sermos um corpo querendo outro corpo e uma alma querendo outra alma e seu corpo', como diria a senhora Adélia, a grande dama da literatura brasileira mineira, minha ídala, a mulher mais bela do sistema solar, a mais profusa parideira de versos asfixiantes do mundo. Danei-me a fazer escarcéu, feito uma gralha, tagarelar sobre os preparativos para o casamento, as incertezas quanto a um futuro juntos, na mesma cidade, enfim, eu com a minha boca três vezes maior do que eu, incompetente de pai e mãe para manter dentro da minha imensa boca a minha imensa língua maior do que passadeira de igreja, eu inventei de badalar a história pelos quatro cantos do sistema solar, alguém arriscou: 'por que você não escreve?', eu, envaidecida até a raiz dos ossos, embarquei nessa canoa furada, deu no que deu. Agora, toda hora é isso. Todos temem que um tropeço, um deslize, uma desatenção, uma gafe, um sorriso, uma lágrima, um furúnculo, um chulé, uma patada, uma cantada, o que quer que seja, seja registrado pelos meus tímpanos e retinas, virando pauta de blog. Onde já se viu uma doidice dessa? Tem um cara que eu curto pacas, um cara cujo nome prefiro declinar, que, no meio de uma conversa bacana, engraçada, uma dessas conversas que a gente só tem na casa dos amigos, com velhos amigos que vêm de outra encarnação, de tão queridos, meu querido amigo, do nada, me alvejou com um peremptório 'não ponha isso no blog não, viu?'. Valei-me, Nossa Senhora do Balé Moderno! Chega levei um susto! 'Nem por sonho, fique tranquilo!', emendei, abismada.
Desde ontem, rumino uns sentimentos dentro do meu frágil coração atormentado. Dona Adélia que me ensinou: a coisa mais fina do mundo é o sentimento. Alguém tem que cuidar dos meus, é o que sinto, e se eu não cuidar, ninguém cuida. Mas, eu quero cuidar do sentimento do meu semelhante, também. Perdão foi feito pra gente pedir, eis um primeiro enorme passo. As pessoas de natureza mais irreverente, os gaiatos, gordos, em geral, tendem a ferir o sentimento dos outros, sem perceber, pois abusam do ácido sarcasmo, do deboche e da ironia, meio se defendendo até, das intermitentes pauladas da vida, que vida de gordo não é mole não. Eu sou um arremedo de comediante de quinta. Rir é muito bom, mas 'rir de tudo é desespero', admito. Gostaria de pedir perdão, amigos meus, se em determinadas situações, aluada que sou, eu erro a mão e ofendo, quando a intenção é entreter e distrair. Nesse picadeiro, de cara pintada ou lavada, a protagonista sou e serei sempre eu - bufão, palhaço, chacota, piada – porque cada um sobrevive com as cambalhotas, malabarismos e piruetas que consegue encenar. A um só tempo, protagonista e coadjuvante, desponto para o anonimato, por livre e espontânea vontade. Cada um sabe a dor e a delícia de escrever o que bem entende. Eu escrevo por exigência do verbo. Não é para mim, nem para ninguém. Não é para nada. A contrapartida é o perdão que ora lhes ofereço. A gente querida que me fere, tantas vezes e tão fundo, sem se dar conta, já está toda devidamente perdoada, na boa, com contrato de amizade sincera automaticamente revalidado.
Amor é palavra de luxo, Dona Adélia. “Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear, eu iria... As casas baixas, as pessoas pobres, e o sol da tarde, imaginai o que era o sol da tarde sobre a nossa fragilidade”. Entre as quatro paredes do meu querido diário, aquilo que não for objeto de alegria e risada escrachada, será uma veia aberta e uma declaração de amor. Eu tenho amor para dar e dou amor à gente, bicho, lugar e luar, queiram meus leitores ou não, porque é assim que eu quero. Meu amor saiu de férias, viajou para o nordeste, para o seio da minha família, foi-se embora sem mim, me deixou sozinha, consolando o meu amor desconsolado, e eu chorei choro convulso, sete dias e sete noites, até o dia do meu amor voltar. Mil vezes amo o meu amor e mil vezes o declaro. Amo as nossas afinidades, como amo, em nós, o desigual, vergando-me em côncavo aparato humano, tépida cavidade para o aconchego da  alma diversa, da carne fatigada. Amo a sua calvície e a sua barba e bigode. Amo o seu odor de mogno e de suor. Amo cada refeição compartilhada. O passeio pelo meio da feira, as sacolas plásticas, o café e as tapiocas. Amo você, meu amor, porque é você quem me adormece e me desperta sob a colcha de cama da vida. Amo você porque amar você é meu princípio, meu meio e meu fim. Amo você, meu amor, de pulsante amor real, enquanto eterno amor houver, fora e dentro de mim. 'E este excesso de realidade me confunde'.

Casamento


Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

(Adélia Prado)

3 comentários:

  1. Ronaldo disse: Mil vezes amo amar você sobre tudo o que puder existir nessa vida. O céu, a terra, o infinito de amor que possa existir no nosso mundo de riqueza extrema, sim, riqueza extrema de amor interior para dar as pessoas, assim como você o faz nessa crônica. Amo-te!

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  2. o amor e romantismo estão no ar!
    Lindas as declarações!

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  3. "As pessoas de natureza mais irreverente, os gaiatos, gordos, em geral, tendem a ferir o sentimento dos outros, sem perceber, pois abusam do ácido sarcasmo, do deboche e da ironia, meio se defendendo até, das intermitentes pauladas da vida" (os gordos são sempre os metidos a engraçadinhos né? kkk)
    "Meu amor saiu de férias, viajou para o nordeste, para o seio da minha família, foi-se embora sem mim, me deixou sozinha, consolando o meu amor desconsolado, e eu chorei choro convulso, sete dias e sete noites, até o dia do meu amor voltar"
    "Incompetente de pai e mãe para manter dentro da minha imensa boca a minha imensa língua maior do que passadeira de igreja"
    "Valei-me, Nossa Senhora do Balé Moderno!"
    "A ideia não pode ter sido minha, que eu sou muito desfavorecida de boas ideias, sempre gastei a fatia mais doce da vida, imitando os outros, mal e porcamente" (isso me lembra algo que você já falou em sala de aula: "Na vida nada se cria, tudo se copia" e "Simplificar é caminhar para o amor". Também me lembra "The early bird eat the worm", porque até pra copiar o trabalho precisa ser bem feito! Só pra constar aqui, suas aulas são sempre as mais originais, são dinâmicas, tem música, atividades sem repetição e conversa fiada.)

    Adorei ler essa historinha antiga do começo do blog. Uma declaração de amor sem tamanho. Essa crônica é cheia de pedacinhos lindos, esses aí de cima, uns engrassadíssimos e outros de derreter o coração e falar "OWNNN, QUE FOFO!" KKK.

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