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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Andarilha

Já fui consumista demais, preciso admitir, minha faxineira do apartamento da Caxangá, em Recife, a querida Neide, de quem gosto tanto, nunca mais soube de Neide, de sua filhinha chamada Isabela, por minha causa... Neide não me deixaria mentir, fosse meu desejo convencê-los do contrário. Devidamente asseada, enrolada na toalha, escolhendo o que vestir para o trabalho, gritava:  Neide, me ajuda aqui, que não sei o que usar hoje! Lá vinha Neide, frouxa de rir: “taí um problema que pobre não tem, cadê que perco tempo escolhendo roupa, coisa nenhuma, é uma só, na água e no sal, e acabou-se!” O consumismo desenfreado virou pretérito perfeito e distante, fato. Não deduza tão precipitadamente, dileto leitor, tratar-se de voto de pobreza, filantropia, evolução espiritual, reforma íntima estrutural e estruturante ou coisa que o valha, não vá por aí, aconselho. PTitia Dilma dividiu a classe média de um jeitinho maroto aí só dela, não sei como foi, só sei que foi assim, eu ascendi financeiramente, aparentada a um rojão de festejo junino, fui parar numa categoria especial, já cheirando a franja do patamar de Eike Batista, para seu esclarecimento. Meu salário é especial, privilegiado, a ministra do planejamento jura perante Cristo, na TV. Especial é meu cheque estropiado e menstruado, nunca mais saí do boi bumbá garantido, vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão, coitada. Andei de secar o tornozelo inchado, atrás de comprar uma bolsa boa, uma coisa fina, com pedigree, não consegui, vou andar de bolsa velha, amor, meu rico dinheirinho não deu nem pra primeira parcela.
“Anda, tira essa dor do peito, anda, despe essa roupa preta e manda teu corpo desmembrar... Calma, dê o tempo ao tempo, calma, a alma põe cada coisa em seu lugar, e o dia virá, qualquer dia, virá, sem aviso... Então, anda”. A filha de Elis Regina sabe escolher repertório, fato. Tudo que ela canta me dá esse nó na goela, essa dormência por dentro do organismo, fale dela quem quiser falar, fale toda tolice que lhe der na telha, minha musa Maria Rita não se importa um tico... Nem eu. A verdade sempre desfilou altaneira, bem diante do meu nariz, hoje decifrei-a, de frente para trás e para os lados: enquanto me acontecerem sextas-feiras, crônicas haverá. Depois do advento da sexta-feira, dispo-me desavergonhadamente da roupa preta, de toda e qualquer obrigação, de todo e qualquer compromisso, de toda e qualquer aporrinhação, sempre às sextas-feiras, reservando-me o direito constitucional de permanecer calada, munida de silêncio apenas, e da lauda em branco, cidade afora, deixando o rio da rua me levar. Tem vez que não levo um real na bolsa gasta, vou falar a verdade. É de vinte minutos o trajeto de casa  até o centro. Hoje nem cronometrei, passou de meia hora, decerto, porque demorei para notar a presença desse cachorrinho me seguindo feito uma sombra, um salsichinha caramelo do olhinho claro, vi logo que era cão com dono, eles ficam meio bobinhos, aquela carinha abestada, olhos nos olhos... Fiz foi retornar no ato, ele me acompanhando, avistei um portão, esquecido aberto, provavelmente, emburaquei jardim adentro, meu amiguinho veio junto, a porta da frente escancarada, ouvi vozes, uma visita de cabeça na lua, quem sabe, nem lembrou-se que o bichinho podia fugir, deve ser essa gente que não tem cachorro, nem gosta, dei uma topada numa bolinha plástica, num osso de borracha, disfarcei por ali um instante, brincando, brincando, ele distraiu-se, fiz a volta pelo meio da grama, com mais de mil, saltei para a calçada, fechei o portão. Missão cumprida. Atravessei a avenida, sorrindo, feliz da vida,“ that’s one small step for a man, one giant leap for mankind.”
Toda sexta-feira eu tomo um cappuccino no coração da cidade, sendo três os meus preferidos, o da Livraria Boulevard, o do Parada Obrigatória e o do Rei do Mate, o eleito de hoje. O Rei do Mate fica bem pertinho do lugar onde uma galerinha bem simpática revela foto para minha pessoa também bem simpática, revelar foto é coisa que, aliás, raramente faço, hoje em dia a gente fica com 680.000 fotos no computador, a coisa mais difícil é uma pose especial escapar para um porta-retrato. Vou falar a verdade, só levei para revelar porque Tia Dau é artigo que não se imita, a gente quando promete uma coisa a ela, fica pensando, pensando, ruminando aquilo no juízo e no peito, o jeito é cumprir logo a promessa e experimentar a paz. Tia Dau ainda não informatizou-se, sorte grande a dela. Quando Tia Dau deseja interagir com o povo, ela anda, bota o pé no caminho, bate coxa, vai para onde o povo está, materializa-se diante daquele de quem sente falta, a pessoa querendo ou não, e pronto, acho isso um negócio formidável. Quando menos espero,Tia Dau arria a bagagem na minha sala, falante, disposta, animada, vinda de um Recife teletransportado para a minha esquina, avisto daqui a Guararapes e a Aurora, acho isso um negócio formidável. Pois muito bem, as chapas vão chegar é pelo correio mesmo, dentro de três ou quatro dias. Manuseadas serão, à exaustão, sei demais, parece até que estou vendo as imagens circularem por entre as lentes marejadas e os fungados e mais fungados dos narizes congestionados de saudade. “ Mais uma, Nilde? Por favor, a saideira e a conta.”

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