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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Azul da cor do mar

Dedo-mindinho, seu-vizinho, fura-bolo, cata-piolho e maior-de-todos: o insuperável Francisco Buarque de Hollanda, no som de casa. "Acenda o refletor, apure o tamborim" ! Delirium tremens de manhã cedo... É a abstinência de Chico, assevero-lhes. Muito curioso isso da gente envelhecer sem estar preparada para o baque, para as indesejáveis prioridades inerentes à difícil condição. Um belo dia, a gente entra na fila do idoso e ninguém se sente incomodado, ali fora sempre o seu lugar. No supermercado apinhado, apontam-lhe a preferencial mais adiante, e você tem de sorrir, reconhecida. Não adianta a senhora prometer dignidade, sobriedade e bom senso para os anos de chumbo que se anunciam, isso feito com todos os vincos da mão esquerda (ou será a direita?), solenemente pousados sobre o livro santo, a senhora nem gaste seus breves e cada dia mais preciosos instantes nesse empreendimento, o corpo amado e idolatrado, do dia para a noite, vai desabar, vai encriquilhar feito maracujá de gaveta, do pé à ponta, desembestar na frente do lépido e jovial espírito, despencar ladeira abaixo, cruzar com folga a linha de chegada, a alma e seus combalidos brônquios estufados de poeira, arrastando-se quilômetros atrás. É da senhora surtar, é pagar com os trocados da aposentadoria para ver o desfecho da trama, assombrada, batendo pino. “A velhice é o castigo de se ter vivido”, do auge dos seus 60 e poucos anos de saúde e vitalidade, Tia Dau já sentencia, coberta de razão, a mais nua, crua e flácida verdade.
Os capricornianos nascem velhos, li outro dia, não sei onde, não sei quando, minha memória é fogo, li e concordei de pronto, lembrada de mim. Sou velha desde criancinha, nasci do tamanho de um bebê de dois meses, fui me criando assim, grande para a idade, madura para a idade, lia e fazia conta muito antes do jardim da infância, nem sei por que não assumi o posto da professora, para alfabetizar eu mesma os queridos coleguinhas da sala de aula, estatura e discernimento eu tinha de sobra, muito mais que a tia, teria realizado um excelente trabalho, suponho. Não bastasse tamanha maldição astrológica, cresci cercada de adultos metidos à besta, uma contribuição importantíssima para a minha formação de anciã prematura. No dia em que eu assisti ao extraordinário O curioso caso de Benjamin Button, um filme que, a propósito, recomendo para todas as faixas etárias, do berçário à casa de repouso, chorei, chorei e chorei, "requintada e esquisita como uma dama", explicações aqui obviamente desnecessárias, esclarecer demais é uma coisa que cansa pacas, quem não viu a película, cuide de ver, enquanto há tempo, cinema é a maior diversão.
Na curva perigosa das 47 primaveras ‘de praga’, vez por outra, ansiosa por novidade, buscando ampliar meus horizontes melódicos, reciclar o tom, remoçar  o ouvido, virei cantora meia-boca, não sei se sabem, desprezo Francisco Buarque de Hollanda, aventuro-me por outros oceanos azuis, pesquiso revelações  musicais, escancaro o peito para os jovens intérpretes e compositores nacionais, sem quaisquer entretantos, sem um pingo de preconceito, juro por minha mãe mortinha. Faço descobertas fabulosas, chego a decorar uns versos, para cantarolar depois, alegre da vida, debaixo do chuveiro. Por outro lado, o lado bom da canção, "pra mim basta um dia, não mais que um dia, um meio-dia e eu faço desatar a minha fantasia." Que barcos virão pra resgatar os sobreviventes da paixão?  Francisco Buarque de Hollanda injetável, inoculado nas veias abertas da sexta-feira. A droga é pesada, o bagulho é doido, transcendental, sobrenatural até. Francisco Buarque de Hollanda, o maior de todos os homens do Brasil, recentemente completou 68 anos de beleza e de genialidade, pela graça divina. Vida longa para o rei. Tremo de pensar no seu desencarne, que já esteve bem mais distante, vamos combinar. Tenho certeza igual à certeza de que ambos morreremos um dia, de que jamais haverá, no íntimo das letras brasileiras, uma criatura equivalente, em forma e no conteúdo da redentora poesia.

Para os fãs... de Chico, claro.

Um comentário:

  1. Ronaldo disse: A maturidade é fato. Ficamos mais seletivos, escolhemos melhor as coisas, pessoas, as formas pronunciáveis que não venham a ferir o eterno "tic e tac" da engrenagem terrena. Muito bom. Cada vez melhor.

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