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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Hiato

Cantare per non morire, lembra a velha canção italiana - Tormento d’amore. Estava completamente esquecida dela, vi, por peraltice do acaso, uma nesga da reprise da festa do Criança Esperança, isso domingo passado, liguei minha TV no exato instante em que Agnaldo Rayol (um caramelo toffee para quem conhece Agnaldo Rayol), sobremaneira, arregaçava: cantare per non moriiiiire! Eita! Fiquei espantada foi muito, pensava que o velho Agnaldo já madornava no descanso eterno, na bucólica e indubitavelmente adubada terra dos pés juntos. Liguei o aparelho de TV mesmo na horinha de Agnaldo arrombar o pulmão, juntamente com uma soprano muito da chique, também ela soprando para mais de metro, castigando o órgão vital, sem dó nem piedade, mais a faringe, a laringe, a traqueia e adjacências. Impressionante como a minha pessoa não tolera canto lírico, mórbida ignorância, mediocridade tópica. Iracema, a senhora bem que escutou  through the grapevine, tem saído ao luar com um mímico e ambiciona estudar canto lírico, eu mesma não, nem morta. Como ia dizendo, antes de Francisco Buarque de Hollanda me interceptar o raciocínio (sempre ele, o vingador desmascarado!), a supracitada dupla dinâmica executava justamente a supracitada canção: cantare per non moriiiiiire... A senhora não pense que assisto ao programa, religiosamente, não senhora.Também nunca doei uma moedinha sequer para o projeto, o dinheiro é da senhora, a senhora tem o que é seu e dá a quem quer, a Didi Mocó, a Maria da Graça Meneghel, à gata Marinho, eu mesma não, nem morta.
Cantar para não morrer. Abrir o bico e escapar da embolia. É mágoa, já vou dizendo de antemão, se me encontrar com você, tenho três pedras presas na garganta. Amanheci pesquisadeira, cutucando o pai dos burros, não para escrever elegante, descartei a vaidade da forma faz é tempo, I’ve given up all attempts at perfection. Eu só queria entender direito o significado de uma palavra, porque eu não respeito a individualidade dos outros, um passarinho me contou, hoje cedo. As duzentas e quarenta e três avarias de personalidade eu assumo, essa aí, não, meu violão. Tormento de amor é uma acusação assaz descabida assim. Meus companheiros residenciais são o marido e dois cachorros, a senhora nem carece de ser um expoente da intelectualidade brasileira para perceber de onde saiu a ofensa.  Individualidade. Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar. Comigo é assim, não vejo com os olhinhos de São Tomé, não existe.  Desconfio que Dubai e seus superlativos, por exemplo, nem existem, Dubai é uma superlativa ilusão de ótica. A senhora, por ventura, sabe o que é individualidade? Individualidade é o conjunto das qualidades individuais. E qualidade, sabe não?  Qualidade é a maneira de ser boa ou má de uma pessoa. Diferentemente do que o povo acha, não sou uma criatura das mais inteligentes, a esperteza deu um toque e driblou meu escasso tino, passou por longe. O pouco que aprendi foi pouca conquista a muitas penas, ralei para burro, não sou brilhante, nem estudiosa, se sei, sei mínima, meninamente, por obrigação e com desmesurado sacrifício. Um indivíduo é norte e sul, claro e escuro, azul e amarelo, Tony Bennett e Gilliard, aquela nuvem que passa lá em cima sou eu. Respeito à individualidade é respeito ao aprazível, mas, sobretudo, ao desprezível (nó cego, hein?) que não lhe constitui o espírito - uma via de mão dupla interditada, isso qualquer débil mental afásico depreende. Um bolo de rolo para quem traçar a giz, no chão da sala de estar, o limite individual entre você e ele. Eu, toda vida, suspeitei por demais das relações de inteiros de qualquer fragrância, parcerias libertas, saudáveis, arejadas, bem sucedidas porque alicerçadas no bendito respeito à individualidade das partes envolvidas, lindeza mais linda, acho isso uma balela com pedigree.  Ninguém está fadado a concordar comigo, nem ler o sujeito precisa, se não for do seu agrado, cada um no seu quadrado. No meu quadrado, dileto cidadão do mundo, sou eu que dou o baralho. Duas individualidades nunca trocaram figurinhas de cromo, tomando chope, à beira-mar, a individualidade sobrevive de dicionário, parto acesa em minha defesa. O que vejo da vida são as incompletudes no tudo de cada um, a senhora me desculpe a fra(n)queza. O que vejo da vida são generosíssimas muletas, graças a Deus. Cada indivíduo individe-se, fato, não existe fórmula secreta mirabolante capaz de decompor este composto de mel e de sal. Cada indivíduo, entretanto, é, para sempre será, lamento desalentar...  Metade.  Metade e olhe lá.  Ninguém se iluda, prestes a contrair núpcias (parece que vai é pegar um resfriado, não é?), ninguém aposte suas fichas na roleta do casamento de inteiros e para inteiros, maior roubada. Qualquer associação descrita assim é história da carochinha, vou lhe dizer por quê. Porque a senhora já nasceu subtraindo e subtraída, sweet mystery of  amputação divina. A senhora e a senhora sua mãe eram o supremo ser de pleno amor indivisível, a senhora, do barco à deriva a vela desfraldada ao ventre, súbito desagregada do todo, pela ruptura do cordão perdido. Morrer deve ser tão frio quanto na hora do parto. Neste brevíssimo intervalo, a vida acontece para quem perde o próprio contorno e segue misturando tintas. Desista de remar contra a maré, minha senhora, cedo ou tarde, a senhora dependerá do colo cúmplice para aninhar-se, dormir e sonhar em ser. Para providencial alívio da insofismável solidão humana.  

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